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Lição irresistível

 

Dançarina leva aulas de balé para internos da Febem

REGINA HELENA DE PAIVA RAMOS

"Se tive alunos na Febem que morreram em rebeliões? Não sei. Não quero saber. Isso não é brincar de avestruz; é que eu preciso continuar tendo forças. Só sei de uma coisa: são seres humanos."

A afirmação é de Marika Gidali, fundadora do Ballet Stagium. A bailarina fala baixo, os olhos são profundos, vivos. Entre uma resposta e outra brinca com a neta, que já passa muitas horas por dia dentro do Stagium.

Dançar na Febem? Ensinar dança para as crianças de lá? Para Marika é tudo muito natural. Em busca da difusão da cultura e do balé o Stagium já dançou nas barrancas do rio São Francisco, em penitenciárias, em escolas, na periferia, em favelas e até em tribos de índios. A Febem é mais um palco para o Stagium mostrar que "existem outras possibilidades além daquelas que eles tiveram aqui fora".

Marika chegou ao Brasil em 1947. Completou dez anos aqui. Veio com a família, de judeus húngaros, fugindo da guerra e do nazismo. Em 1952 já começava a estudar balé. Em 1953, com apenas 16 anos, venceu concurso para entrar no Ballet do IV Centenário de São Paulo. Daí para a frente nunca mais parou: Corpo de Baile do Municipal do Rio de Janeiro, Ballet do Teatro Cultura Artística, Amigos da Dança (com Ismael Guiser), balés para a televisão (com Abelardo Figueiredo), campeonatos de ginástica (campeã paulista e também dos Jogos da Primavera), dança com Renée Gumiel, prêmio de melhor bailarina em 1963, fundação do Ballet Afirmação, criação de coreografias para teatro.

De cada experiência Brasil afora – rio São Francisco, que percorreram numa barca, dançando para populações desprovidas não só de cultura, mas de tudo; periferia; tribos indígenas –, Marika e o marido Décio Otero, também bailarino e coreógrafo, foram tirando lições e recolhendo impressões que acabam se consubstanciando em dança. Dança moderna brasileira. E nunca perdem a oportunidade de aprender e vivenciar mais, e de ao mesmo tempo divulgar seu trabalho, mostrar o universo que ele encerra.

Nós fomos correndo

"Quando houve a grande rebelião na Febem da Imigrantes, o governador Mário Covas resolveu colocar cultura dentro da Febem, ao lado de atividades como costura, jardinagem, gráfica, padaria. Convidaram-nos e fomos correndo: não iríamos perder uma oportunidade como essa. Levei os professores e o som, e abrimos as inscrições. Apareceram 400 interessados. Dos 11 aos 18 anos."

Marika diz que precisava dar aulas utilizando uma linguagem que os meninos e meninas entendessem. Foi buscar a dança de rua e chamou para o Stagium rapazes que sabiam hip hop e que se tornaram professores dentro da Febem.

"A dança sociabiliza, eles aprendem a respeitar a si próprios e ao espaço do outro. Aqui fora as pessoas pagam e vêm aproveitar as aulas. Lá dentro a dança – ou qualquer forma de arte que seja realizada – é um salva-vidas. As exigências são totalmente diferentes. Na Febem é um resgate de vidas. Os garotos que estão lá não souberam suportar o que havia aqui fora."

A proposta seria só essa – mostrar um universo novo aos internos da Febem – ou existe a possibilidade de profissionalização dentro da dança?

"Tenho encontrado talentos para a dança dentro da Febem. Não estou falando de balé clássico, mas de dança contemporânea ou até de algo que não tem nome – talvez se possa falar em ‘iniciação à dança’. Mas isso não importa. Além do resgate de vidas, de propostas novas, todos os caminhos podem levar a Roma, portanto é possível, sim, que saiam de lá futuros bailarinos."

Marika diz que o mesmo acontece com as crianças carentes, que vão ao Stagium todos os sábados para um curso de iniciação à dança, patrocinado pela Petrobras Distribuidora.

"São 50 crianças, dos 9 aos 17 anos, que vêm de ônibus, têm aula e recebem lanche. A exigência, nesse caso, é total: todas têm de agarrar essa oportunidade com unhas e dentes, porque dificilmente terão outra."

Além desses dois programas o Ballet Stagium está levando seus espetáculos para as escolas, em parceria com o governo do estado.

"Difundir a dança tem sido um dos objetivos do Stagium, desde sua fundação. E não vamos parar: há sempre muitos caminhos a seguir, muita coisa a fazer", diz Marika, "seja na Febem ou fora dela."

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