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A união faz a força
IMMACULADA LOPEZ
Solidariedade é um sentimento que se manifesta em tempos de crise. E como na vida do brasileiro os temas educação, saúde, habitação e, principalmente, mercado de trabalho são eternos sinônimos de crise, para melhor enfrentá-la as pessoas têm percebido que é preciso se unir. É dessa conjunção de forças que se alimenta a chamada "economia solidária", que aos poucos vem ganhando corpo em todo o país.
Na luta pela sobrevivência, novas relações de trabalho vêm surgindo na própria comunidade: mulheres chefes de família que nunca tiveram carteira assinada se juntam numa associação; operários experientes de uma empresa à beira da falência decidem assumir juntos a gestão do negócio; jovens que não conseguem o primeiro trabalho encontram oportunidade numa cooperativa... De várias maneiras, aqueles que sempre estiveram excluídos e também os que acabaram expulsos da economia formal estão criando condições de renda e de trabalho.
Ignorados a princípio, esses empreendimentos começaram, nos últimos anos, a atrair a atenção de movimentos sociais, universidades e até mesmo de alguns governos e sindicatos. O primeiro levantamento sobre a economia solidária no Brasil começou a ser feito no ano passado, pela Rede Unitrabalho, que congrega cerca de cem universidades brasileiras que dispõem de núcleos de estudo e pesquisa sobre trabalho. Por enquanto se conseguiu apenas uma amostragem inicial em seis estados, mas já foi possível identificar uma grande diversidade de empreendimentos, urbanos e rurais, que vão de empresas de autogestão a associações de costureiras que se reúnem no salão paroquial e não são caracterizadas oficialmente como cooperativas por não ter o mínimo de 20 participantes exigidos por lei. A próxima etapa é ampliar o levantamento para abranger todo o país, mas ainda não existem recursos para isso.
Segundo o economista Luiz Inácio Gaiger, coordenador do projeto da Unitrabalho e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul, também estão sendo identificadas ações que visam incentivar e fortalecer os empreendimentos solidários, como cooperativas de crédito, condomínios de máquinas, incubadoras tecnológicas universitárias, etc. Mas, em sua opinião, "o mais importante é o esforço de articulação e projeção dessas iniciativas, que despontam como uma opção econômica para o país".
Apoio e integração
O Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), sediado no Rio de Janeiro, presta assessoria a movimentos sociais e é um dos articuladores da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária, lançada no último mês de junho com a finalidade de facilitar a circulação de informações, pesquisas e até mesmo de produtos e serviços. Para Sandra Quintela, pesquisadora do Pacs, trata-se de um processo não apenas econômico, mas também social e cultural. Ela explica que, num primeiro momento, os empreendimentos solidários são uma resposta ao desemprego estrutural, mas que o objetivo de longo prazo é articular uma rede que permita formar novas cadeias produtivas, mais éticas, transparentes e responsáveis.
Muita gente compartilha dessa idéia, como Vera Vieira, coordenadora executiva da Rede Mulher de Educação, de São Paulo, que também integra a Rede Brasileira. Em sua opinião, a economia solidária abre espaço para a criatividade e representa uma oportunidade de inovação nas relações entre homens e mulheres, empresas e meio ambiente, trabalhadores e comunidade.
É claro que há um lado utópico nessas visões, mas também é fato que os empreendimentos solidários já vêm dando respostas concretas na luta pela sobrevivência. Nesse sentido, entre os agentes mais atuantes estão as cooperativas, uma forma antiga de organização que vem ganhando importância e visibilidade no atual momento da vida econômica brasileira. Walter Tesch, coordenador da Fetrabalho/SP (Federação das Cooperativas de Trabalho do Estado de São Paulo), informa que, nos últimos dez anos, o número de cooperativas de trabalho registradas por mês na Junta Comercial do estado aumentou pelo menos 40 vezes.
Segundo a Organização de Cooperativas Brasileiras (OCB), em junho deste ano eram 1.896 em todo o país. As estatísticas, porém, não são confiáveis. O número divulgado pela própria OCB é considerado duplamente falho, pois, de um lado, exclui as cooperativas não associadas e, de outro, inclui entre os associados empreendimentos que não são realmente populares nem solidários. As "cooperativas de fachada" são apontadas como exemplo de distorção das propostas alternativas. Para evitar gastos com impostos e benefícios trabalhistas, certos empresários transformam seus negócios em cooperativas. Nesses casos, não há estatuto, nem assembléia geral, nem divisão de ganhos, uma vez que continuam a existir patrões e empregados.
Já as cooperativas autênticas, por sua vez, se caracterizam pela adesão voluntária de seus integrantes, controle democrático e participação econômica de todos os associados. São empreendimentos urbanos ou rurais que estão passando por uma fase de articulação. No último mês de julho, por exemplo, aconteceu no Rio Grande do Sul (estado de maior tradição cooperativista) a 7ª Feira Estadual do Cooperativismo Alternativo. O evento, promovido pelo Projeto Esperança, vinculado à Igreja Católica, aconteceu na cidade de Santa Maria e contou com a participação de 150 associações e cooperativas de 80 municípios e sete estados. O projeto, informa a coordenadora, irmã Lourdes Dill, já organizou um fundo de crédito e um terminal de comercialização, e promove feiras regularmente. Para o próximo ano, está programada a 1ª Mostra Nacional.
Trabalhador na gerência
Outra forte expressão da economia solidária são as empresas de autogestão. Podem estar juridicamente constituídas como cooperativas, associações ou empresas limitadas, mas apresentam em comum a característica de ter os trabalhadores como donos e à frente dos negócios. Muitas nascem de empresas à beira da falência ou falidas sem perspectiva de novos empregos e confiantes na viabilidade econômica do empreendimento, os próprios trabalhadores decidem levá-lo adiante. Em geral, trocam os créditos trabalhistas pelo maquinário e depois saem em busca de financiamento.
Não é uma tarefa fácil. Além dos entraves legais, das dificuldades de crédito e de qualificação da mão-de-obra, a mentalidade e a postura de quem estava acostumado a ter patrão podem se tornar um problema. Na opinião de Aparecido Faria, diretor técnico da Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag), o maior desafio talvez seja a formação das pessoas, pois é preciso se adaptar a um novo posicionamento dentro da empresa.
Faria sabe o que diz. A Anteag vem apoiando e assessorando trabalhadores desde 1994, e em junho deste ano já representava mais de cem empresas. Ele explica que, na autogestão, o conselho de administração é eleito através de voto e as decisões mais importantes são tomadas em assembléia. Todos têm acesso às contas e podem acompanhar a situação financeira da empresa. Uma mudança e tanto. Por isso os trabalhadores devem se preparar para uma gestão coletiva e democrática, redescobrir o prazer de produzir e se sentir responsáveis pela comunidade e pelo meio ambiente. "Quase uma utopia, mas que é possível e já está dando certo", diz Faria.
Ranço burocrático
A situação ficaria mais confortável com uma mudança de atitude por parte de fornecedores, clientes e governo. "Se os órgãos oficiais dessem às empresas de autogestão a metade da atenção que dão às demais, estaríamos no paraíso", queixa-se Faria. "Não queremos privilégios ou recursos a fundo perdido, apenas condições adequadas de financiamento", acrescenta.
Porém, apesar das dificuldades, pequenas brechas vão sendo abertas. Por exemplo: em 1996, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou um programa de financiamento a empresas de autogestão. Segundo Marcio Cameron, gerente do Departamento de Trabalho da área de desenvolvimento social do BNDES, o banco começou a financiar a aquisição de máquinas e equipamentos usados, além de passar a operar diretamente com os financiados (normalmente, a instituição atua através de agentes financeiros). Na avaliação de Cameron, o terreno já está preparado, mas a demanda crescerá de forma lenta, não por escassez de recursos, garante ele, e sim porque falta viabilidade econômica ou regulamentação jurídica às propostas.
A questão legal, aliás, tem sido um obstáculo constante no avanço da economia solidária, pela falta de legislação específica que regulamente as organizações emergentes. Por esse motivo, está em discussão uma proposta de lei para criação de empresas A.G. (de autogestão), da mesma forma que existem as S.A. (sociedades anônimas). Para se ter uma idéia, atualmente, os trabalhadores de uma empresa falida não podem oferecer os bens da fábrica (destinados ao pagamento do passivo trabalhista) como garantia de crédito, pois são juridicamente indisponíveis. Outro exemplo de dificuldade pode ser encontrado no Cadastro de Contribuinte Municipal (CCM), que nem mesmo prevê a figura do cooperado.
Suporte técnico
Na busca por mais espaço, a economia solidária tem encontrado parceiros até mesmo no movimento sindical. "Diante de uma crise econômica e social tão grave, temos de organizar uma ponte de solidariedade entre os trabalhadores empregados e os excluídos", diz Remígio Todeschini, coordenador nacional da Agência de Desenvolvimento Solidário, criada pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) em parceria com outras entidades. Lançada em dezembro de 1999, a agência visa estimular grupos de trabalhadores informais ou desempregados a se organizar para que tenham melhor perspectiva de renda e trabalho.
A demanda, segundo Todeschini, é grande na periferia das cidades, no campo e até mesmo nas comunidades indígenas. Mas, como contam apenas com um cooperador internacional e com o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Ministério do Trabalho, os recursos ainda são escassos. Mesmo assim, em parceria com outras entidades, sindicatos e governos, a agência já apóia 40 experiências em seis estados. Um dos objetivos do programa é dar formação a mais de 20 mil pessoas até o final deste ano. Em relação à falta de financiamento, existem planos de estimular a criação de mais 30 cooperativas de crédito. Ao lado dessas iniciativas, a agência pretende também interferir na reforma legal e na formulação de políticas públicas.
"Não adianta pensarmos que as comunidades conseguirão seguir adiante sem acompanhamento", alerta o urbanista Gonçalo Guimarães, coordenador da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas, ligada à Unitrabalho. Ou seja, diante das péssimas condições de ensino e de crédito que há no país, os empreendimentos não têm como prosperar sem assessoria. Notando essa fragilidade, a universidade decidiu que também podia dar sua contribuição. Foi assim que surgiu, em 1995, a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Questionávamos por que a tecnologia só servia para desempregar", conta Guimarães, idealizador do projeto, "e ao buscar saídas percebemos que o empreendimento coletivo é o caminho mais adequado para reverter a exclusão."
A partir daí, organizaram um centro de incentivo, suporte e acompanhamento às iniciativas, transferindo para a comunidade conhecimentos sobre organização do trabalho, gestão, avaliação de mercado, inserção de produto, etc. um processo de formação que costuma durar até três anos. Hoje, a incubadora carioca acompanha 20 grupos, incluindo cooperativas de limpeza, costura e construção civil, entre outras. A grande maioria dos participantes são mulheres, com idade média de 35 anos, baixa escolaridade e breves passagens pelo mercado formal. Para essas pessoas, as cooperativas não representam apenas uma opção de sustento, mas também a chance de ser respeitadas e de recuperar a auto-estima.
A experiência carioca se multiplicou, e hoje Guimarães coordena uma rede universitária de 14 incubadoras tecnológicas, ligada à Unitrabalho. Segundo o pesquisador, elas têm realizado um trabalho experimental, que não é suficiente para alterar o grande quadro de desemprego e exclusão do país. "Mas o conhecimento e a metodologia que estamos acumulando podem ser aproveitados pelo poder público e começar então a fazer diferença", diz ele.
Todas as entidades fazem coro para reclamar da falta de políticas públicas que possam dar nova dimensão à economia solidária. "O Estado tem uma importância fundamental no avanço do processo. Deve ser ele o orquestrador das iniciativas e implementar políticas a partir das experiências concretas já existentes", diz Sandra Quintela, do Pacs. E o Ministério do Trabalho e Emprego parece concordar com ela. Segundo Nassim G. Mehedff, secretário de Políticas Públicas de Emprego, "a economia solidária é um componente-chave do desenvolvimento sustentado". Ele admite, porém, que falta expandir as experiências inovadoras e garantir sua continuidade.
Pioneirismo
Mesmo no terreno das políticas públicas, a economia solidária não está mais na estaca zero no país. O Rio Grande do Sul já desponta como o primeiro estado a investir nos empreendimentos solidários como estratégia de desenvolvimento. Após a experiência iniciada na prefeitura de Porto Alegre, em 1989, Olívio Dutra, ao assumir o governo estadual, em 1999, aproximou-se das iniciativas existentes em todo o estado, firmando parcerias com sindicatos, prefeituras, igreja e universidade. Foi criado o Programa de Economia Popular Solidária, com previsão orçamentária de R$ 3,2 milhões para este ano.
"A curto prazo, buscamos gerar ocupação e renda de forma sustentada e permanente", informa o secretário de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, Zeca Morais. A médio prazo, os planos são de incentivar uma mudança cultural que promova e valorize as pessoas.
Para começar, foram enviados monitores para cada um dos 26 centros regionais de desenvolvimento e renda do estado para identificar, apoiar e assessorar as iniciativas locais. Até agosto, já estavam dando respaldo a cerca de 80 empreendimentos, envolvendo mais de 5 mil trabalhadores. Até o final da gestão, em 2002, a expectativa é de quadruplicar o número de beneficiados, impactando as taxas de desemprego.
Para suprir a formação, contam com convênios com entidades como a Anteag, além de promover o encaminhamento dos trabalhadores a cursos de qualificação já existentes. Para aquecer a comercialização, está sendo incentivada a participação em feiras e na rede de entrepostos criados nas cidades e estradas. O crédito, por sua vez, está sendo garantido através de uma linha estadual específica para as cooperativas, criada dentro de um programa do Banrisul que orienta e diagnostica empreendimentos. Até 2001, também devem ser criadas, com participação do governo, mais dez instituições financeiras para concessão de microcrédito. Tudo indica que os gaúchos encontraram o caminho, que, felizmente, parece não ter volta.
De Minas para o mundo
Somar o potencial produtivo de suas famílias e terras para poder permanecer no campo e viver melhor. Uma receita simples mas desafiadora, colocada em prática por moradores da região de Manejo, em Minas Gerais. Sob a liderança das mulheres, formaram em 1988 a Associação Mãos Mineiras, dando vida nova a seus conhecimentos tradicionais de culinária e artesanato. Ao mesmo tempo, abraçaram a preocupação com a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável.
No total, são 35 associados, homens e mulheres, envolvidos em todo o processo: produção, embalagem, controle de qualidade, comercialização, passando por finanças e administração do empreendimento. Parte do ganho é destinado ao fundo comunitário e o restante, distribuído proporcionalmente à produção. No geral, cada associado recebe de um a dois salários mínimos por mês, garantindo uma melhoria na renda familiar.
O trabalho é feito em casa, no horário estipulado e administrado por cada um. Os associados produzem complementos alimentares (com folha de mandioca, casca de ovo e semente de urucum), farelo de arroz torrado, geléias, licores, chás medicinais, mel e própolis. Também confeccionam chapéus, bolsas, tapetes, roupas, colares, bonecas, potes e talheres a partir de resíduos vindos da cidade, como retalhos, plásticos, papel e fios, ou matéria-prima local, como palha de milho, bambu e sementes.
Os produtos são reunidos para comercialização conjunta em lojas, farmácias e mercados da região. A associação também participa de eventos em outras cidades e exporta para lojas de comércio justo e solidário de países europeus.
A Mãos Mineiras se integra em uma rede nacional e internacional de promoção da sustentabilidade, valorização da mulher e conquista de cidadania. "Acreditamos na importância de fortalecer e fazer repercutir nossa experiência", diz Valéria Barretos, da associação, que hoje integra a Rede Mulher de Educação, a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária e a Aliança Internacional por um Mundo Responsável e Solidário.
Renascer das cinzas
Em Sorocaba, no interior paulista, a metalúrgica Hidro-Phoenix dá exemplo de autogestão. Em 1994, a empresa se ergueu das cinzas da antiga Indústria Domenico Bestetti. Depois de 30 anos de existência, algumas crises econômicas e muitos tropeços administrativos, a Domenico Bestetti entrou em falência. Tinha 120 empregados e muitas dívidas. "A metalúrgica já não dispunha mais de credibilidade entre fornecedores e clientes, mas continuava com um bom produto, um mercado promissor e vários empregados dispostos a salvar seu trabalho", conta José de Oliveira Martiniano, assessor administrativo da atual empresa.
Quando a falência foi decretada, 32 trabalhadores decidiram levar o negócio adiante, trocando seu passivo trabalhista por parte do ferramental de produção. Formaram uma cooperativa e assim criaram a Hidro-Phoenix. Com máquinas emprestadas, continuaram produzindo até obter um financiamento do BNDES, liberado no ano seguinte.
"A maioria dos cooperados eram empregados com mais de 35 anos de idade, pouca qualificação e baixa escolaridade. Provavelmente não conseguiriam se recolocar no mercado", conta Sérgio Santos, com 24 anos de idade e oito de empresa (os poucos jovens da empresa foram os mais entusiasmados ao abraçar o novo desafio). "É difícil mudar valores e mentalidade, mas acho que a maioria dos cooperados conquistou maior autonomia e melhorou a qualidade de vida", avalia. Afinal agora todos são donos, podem opinar e saber o que está acontecendo. "Hoje a gente tem de se preocupar com preço do produto, manutenção das máquinas, entrada do dinheiro...", conta o torneiro mecânico José Wilson de Picoli, 46 anos, que anda preocupado com a necessidade de um novo financiamento para modernizar as máquinas.
O desafio é diário. Os antigos benefícios trabalhistas, como férias e décimo terceiro, são garantidos por fundos específicos da cooperativa. As retiradas mensais ainda não chegaram ao patamar dos antigos salários, e as sobras anuais continuam sendo usadas para abater o financiamento. "Mas acho que valeu a pena", avalia Picoli. "Gosto do que faço e hoje venho trabalhar com mais vontade."