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A Invenção de Luiz Gonzaga
Não há dúvida de que Luiz Gonzaga pôs o Nordeste na “mídia”, no final dos anos de 1940, ao traduzir as culturas orais do universo agropastoril do couro e do gado, do semiárido nordestino, para a linguagem dos meios de massa, isto é, para o formato cancional dos auditórios das rádios e do disco. Para isso ele teve que reinventar esse nordeste, ou, em outras palavras, inventar um gênero midiático-musical com a respectiva instrumentação, um estilo, uma poética, um layout. Onde violas de cantadores, danças, toadas, aboios e emboladas coubessem, compactados, em dois minutos e meio de eficácia e sedução.
Essa invenção cancional se deu em parceria com Humberto Teixeira e depois com Zé Dantas. Costumamos acreditar que o trio de sanfona, triângulo e zabumba sempre existiu, e que era o padrão da música de dança sertaneja, que Gonzaga apenas tomou para si. A melodia imortal de “Asa branca”, por sua vez, a acredita-se que foi composta por Luiz Gonzaga. Na verdade, nem uma coisa nem outra. O trio foi Gonzaga que inventou, e o núcleo melódico e temático de “Asa branca” já existia. São sinais cruzados dessa passagem direta das tradições orais sem autoria ao domínio mercantil da canção urbana no Brasil, que podem se notar já em Donga e Sinhô, ou em Dorival Caymmi.
O grupo sanfona-zabumba-e-triângulo foi consolidado por Luiz Gonzaga como a melhor solução para a decantação dessa rítmica sertaneja desidratada, no dizer de Tom Zé, parecida com a farinha e a carne seca. Gonzaga se deu ao luxo de ensinar um anãozinho a tocar triângulo e um engraxate com o “phisique du rôle” apropriado a tocar zabumba, criando um resultado visual parecido com os bonecos de barro de Mestre Vitalino. “Asa branca”, por sua vez, sua estrofe melódica e alguns dos versos depois expandidos por Humberto Teixeira, já existiam na memória coletiva, foram vinhetados na sanfona com aquela frase típica de violas de cantadores e apoiados sobre um ritmo dançante. Arregimentando procedimentos culturais nordestinos de variada proveniência, e unificando-os sob a égide de um estilo singular, Luiz Gonzaga inventou Luiz Gonzaga, ao inventar uma tradição.
A palestra musical de José Miguel Wisnik procurará mostrar, através de exemplos concretos, o modo como esse processo aparece nas canções, os procedimentos que resultam em seu efeito de “nordestinidade”, ligado ao uso das escalas e das células rítmicas, e qual é o seu alcance poético maior.
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