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Onde está o surreal?
Especial propõe imersão em universo de símbolos que deslocam o homem de sua passividade habitual e coerência lógica. A mostra – que acontece de 26 de março a 16 de abril – traz ao Sesc Piracicaba nomes significativos que subscrevem esta linguagem em sua própria obra
A cena inicial de uma lâmina cortando um olho no filme Um Cão Andaluz, de Luís Buñuel, causa impacto e deflagra um conceito importante para o Surrealismo: a abertura para imagens inusitadas. Para isso, nada mais incisivo que a lâmina surrealista que representa um modo novo de ver o mundo potencializando a linguagem.
O Surrealismo traz para a arte uma profusão de imagens, incluindo as do sonho e do delírio. O que está em jogo não é a lógica, mas a sua falta para inaugurar um novo olhar, o olhar poético da imaginação criadora. O que distingue o Surrealismo do simplesmente absurdo é que ele prima pelo maravilhoso.
O escritor francês André Breton, precursor do movimento nos anos 1920, é autor da frase “a beleza será convulsiva ou não será.” A convulsão da beleza implica numa linguagem que cria imagens que soltam faíscas, distorcem a realidade, nos fazendo olhar mais de uma vez para a mesma obra ou ler repetidamente um poema para encontrar, sob suas camadas, aquilo que escapa da mortificação de uma linguagem padrão que nada acrescenta além do óbvio.
O que distingue o Surrealismo é seu senso incomum aplicado à arte e a vida, sendo as duas coisas indissociáveis. Interessa justamente a linguagem por trás da linguagem, o oculto, o avesso, o onírico, o inconsciente. Não por acaso o Surrealismo tem relação com a Psicanálise, fazendo a ponte do simbolismo mental com o artístico, pressupondo a liberdade de transitar pelo desconhecido que ganha forma em associações livres e, sobretudo, imagens.
O Surrealismo não pertence a um tempo, mas a todos os tempos, não pertence a um lugar, mas a todos os lugares. Pode estar em Paris nos anos 20, como no Brasil, em 2014, na mostra: “Onde anda o Surreal? Retorno ao senso incomum” proporcionando um diálogo entre poesia, teatro, música, cinema e artes plásticas.
A mostra – que acontece de 26 de março a 16 de abril – traz ao Sesc Piracicaba nomes significativos que subscrevem o surreal em sua própria obra. Entre eles, Claudio Willer, ensaísta, tradutor, um dos grandes críticos brasileiros do Surrealismo, poeta e criador de imagens faiscantes: “este seu grande olho selvagem/ olho memória de gato selvagem/memória do chão e de selva/ lagoa das alucinações/ esfinge encontrada no Norte do Maranhão/ profecia oculta na pedreira/ circuito integrado/ do olhar até a ponta do dedo.” (fragmento de Visitantes 2 em Jardins da Provocação, 1981).
Ou Raul Fiker, filósofo, tradutor e ficcionista, autor do instigante “O Equivocrata (uma reta de vista)”, onde se lê: “uma salva de palmas para os minutos biológicos num tempo pudico que fecha as pernas para o absoluto. Grande jogo esse! O deus Marduk como animal de estimação, mascote, cobaia; ele ajuda no jogo, ele experimenta. O texto. Vitalidade, compreensão, transcendência. Tempo, tempo, de nada.”
A mostra ainda conta com o espetáculo São Paulo Surrealista, do grupo Teatro do Incêndio, dirigido por Marcelo Marcus Fonseca; o filme Sudoeste, de Eduardo Nunes; oficina de ilustração surrealista com o artista plástico curitibano Rafael Silveira; roda-de-leitura do poema inédito A Turma, de Manoel de Barros, dentro do projeto Brincadeira de Poeta e show com Ciro Pessoa.
A ideia é girar um caleidoscópio de linguagens - da literatura ao teatro, do cinema às artes plásticas - para mostrar ao público o espaço do surreal no Brasil contemporâneo. O prisma, além de reunião, é de rebelião colocando em cena autores e artistas inquietos. Poucos movimentos trouxeram tanta transformação quanto este que resistindo e ressurgindo em épocas diferentes subverte, além de tudo, o tempo, inserido num relógio distorcido numa tela de Dalí.
Vem de Breton a resposta extraordinária à pergunta: “Onde está o surreal?” Está “onde realidade e a imaginação se encontram”, na interseção das linguagens encantadas com a criatividade que voa.
Célia Musilli é jornalista e produtora cultural.
o que: | Onde anda o surreal? |
quando: |
De 26/3 a 16/4 |
onde: |