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O feiticeiro do simples

Homenagem ao poeta Mario Quintana, publicada logo após sua morte, na edição de maio/junho de 1994

JORGE LEÃO TEIXEIRA

Quando o cortejo fúnebre de Mario Quintana passou pelas ruas de Porto Alegre, rumo ao cemitério, o povo, embora triste pela perda de "seu poeta", aplaudia. Era o agradecimento inusitado e sincero ao homem que partia, deixando uma obra que durante décadas encantara Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o Brasil, pois Mario Quintana foi o mais nacional dos poetas gaúchos.

Simplicidade, precisão na palavra, senso de humor, magia, eram ingredientes que o poeta manipulava com a sabedoria de um alquimista solitário, trabalhando no despojamento dos modestos quartos de hotel, redações de jornais e bares boêmios onde gastou distraidamente sua vida, escrevendo versos, crônicas, aforismos, epigramas e reflexões que ganharam o nome próprio de "quintanares", dado pelo também poeta Manuel Bandeira.

Tudo isso sem pompa, sem solenidade, sem hermetismos. Fazia poesia das coisas mais simples – um fio d’água escorrendo da velha torneira ou o silêncio das salas de espera –, de modo tão surpreendente que às vezes o leitor envolvido nas complicações do cotidiano acaba pego de surpresa, sendo obrigado a reler aqueles ditos singelos para apreender a mensagem poética que a simplicidade camufla.

Feiticeiro do simples, Quintana foi o poeta do inesperado e do obtuso, o cantor do pouco importa, o dono da palavra exata para transmitir os sentimentos puros do menino teimoso que morava dentro daquele adulto cheio de meiguice e doçura, anônimo de si mesmo, como o definiu o jornalista e escritor Artur da Távola, que o considerava "um marginal da solenidade."A Academia Brasileira de Letras fechou-lhe a porta duas vezes. Talvez por lhe faltarem pompas e pelo excesso de simplicidade. Mas o povo nunca lhe fechou as portas de seu coração. Quintana era amado e respeitado como pouca gente foi, em sua terra e fora dela.

Um abecê dos quintanares dá uma pequena amostra desse poeta, onde obra e jeito de ser se mesclavam, numa fascinante conjunção. Se o leitor de Problemas Brasileiros divergir da escolha, resta-lhe o expediente criativo de também organizar o seu abecê, repassando a bela obra de Mario Quintana, que começou a ser publicada e admirada com a edição de A Rua dos Cataventos, em 1950.

 

Um abecê de Quintana

A de Ateus – "Neste mundo de tantos espantos, cheio de mágicas de Deus, o que existe de mais sobrenatural são os ateus."

B de Branca – "Ela era quase incolor: branca, branca / de um branco que não se usa mais... / Mas tinha a alma furta-cor!"

C de Cigarro – "O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar..."

D de Discrição – "Não te abras com teu amigo / Que ele um outro amigo tem / E o amigo de teu amigo / Possui amigos também."

E de Elas – "O que elas dizem não tem sentido? Que importa? Escuta-as um momento. / Como quem ouve, entre encantado e distraído / A voz das águas... o rumor do vento."

F de Fatalidade – "Em todos os velórios há sempre uma senhora gorda que, em determinado momento, suspira e diz – Coitado! Descansou..."

G de Greta Garbo – "O teu sorriso é imemorial como as Pirâmides / É puro como a flor que abriu na manhã de hoje..."

H de Horror – "Com seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação."

I de Instrumento – "Impossível fazer um poema / neste momento. / Não, minha filha, eu não sou a música / – sou o instrumento. / Sou, talvez, dessas máscaras ocas / num arruinado monumento: / empresto palavras loucas / à voz dispersa do vento..."

J de Janela Aberta – "Passa nuvem, passa estrela, passa a lua na janela... / Sem mais cuidados na terra, preguei meus olhos no Céu / E o meu quarto pela noite, imenso e triste, navega... / Deito-me ao fundo do barco, / Sob os silêncios do Céu."

K de Katherine – "Passou despercebido o 50º aniversário de Katherine Mansfield, aquela que, depois de Tchekov, acabou com o conto anedótico de Maupassant."

L de Leitura – "Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir – até onde? – uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada."

M de Milagre – "O primeiro verso que um poeta faz é sempre o mais belo porque toda a poesia do mundo está em ser aquele o seu primeiro verso..."

N de Netuno – "Camões, / Seu nome retorcido como um búzio! / Nele sopra Netuno..."

O de Olímpicos – "Escusado dizer a um bom poeta que os seus versos não prestam: ele não acredita. Em compensação, se disseres a mesma coisa a um mau poeta, ele também não acredita."

P de Partir – "Eu sempre que parti, fiquei nas gares / Olhando, triste, para mim..."

Q de Quebranto – "Senhora, eu vos amo tanto / Que até por vosso marido / Me dá um certo quebranto..."

R de Rua – "Ruazinha onde Marta fia / E onde Maria, na janela, sonha."

S de Sumiço – "Era uma dessas mulheres que não se usam mais / Vestes de trevas e vidrilhos / Cabeleira trágica / Olheiras suspeitas / O grito horizontal de sua boca / Surgindo da noite. / Sumiu pela última porta do poema..."

T de Tentação – "Quem vê um fruto / Pensa logo num furto."

U de Ultra-Rápido – "Eu queria lhe propor uma troca de idéias... – Deus me livre!"

V de Vento – "Passa o Rei com seu cortejo / Passa o Deus no seu andor. / E, milênios depois, neste caminho, apenas / Ainda sopra o vento nas macieiras em flor."

W de What Is – "’What is a name?’, indagava o poeta. Um nome, serve, em última instância, para uma lápide. Ou para uma estátua, geralmente eqüestre."

X de Xifópago – "Ser xifópago deve ser tão incômodo como ser casado."

Y de Geraldy – "Paul Geraldy – bombom rançoso."

Z de Perez – "Edwiges era pálida e lia romances lacrimosos de Perez Escrich / Tanto suspirou em cima deles que acabou fugindo com um caixeiro-viajante / O tempo se desenrolava como um rio por entre as casas de porta e janela / Pequenas vidas, pequenos sonhos."

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