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Prova de resistência

Foto: Dalton Valerio / Foto in Cena

Apesar dos colonizadores, religiosos, madeireiros e burocratas, os primeiros habitantes do Brasil ainda sobrevivem

ROBERTO HOMEM DE MELLO, IMMACULADA LOPEZ, ROBERTA MÉLEGA E RODRIGO ARCO E FLEXA

Foram 500 anos difíceis. Tempos de invasão, trabalho escravo, massacres, epidemias, aniquilamento cultural e adaptação forçada aos moldes da sociedade dos colonizadores. Mas, por incrível que pareça, os índios sobreviveram.

Há quem afirme que em 1500 havia no atual território brasileiro 4 milhões de habitantes, de 1,4 mil povos diferentes. Falavam mais de mil línguas distintas. Mas, para os europeus, eram todos índios, seres primitivos que a Igreja só reconheceu terem alma em 1537, numa bula do papa Paulo III.

Admitida a existência da alma, os religiosos dedicaram-se a "salvá-la". Com esse pretexto, a Igreja foi no mínimo conivente com inúmeras atrocidades cometidas contra os índios, fato reconhecido tardiamente pelo Vaticano, que agora pede perdão. "Milhões de índios morreram, não adianta mais perdoar a Igreja", diz o líder indígena José Adalberto Macuxi, um dos entrevistados destas páginas.

Há outros que nem se arrependem. Em pleno ano 2000, como também se verá aqui, prosseguem as invasões e as agressões aos indígenas.

A despeito de tudo isso, eles ainda resistem. Melhor: depois de séculos de perda populacional, há anos apresentam crescimento demográfico. Hoje, segundo estimativas da Funai, são 350 mil índios, de 220 etnias, que falam 180 línguas diferentes. Povos heterogêneos, mas unidos pela comum condição de injustiçados, eles enfim conquistaram seus direitos, com a Constituição de 1988. Lá estão garantidas a eles suas terras e sua condição diferenciada: podem ser eternamente índios, se quiserem. Aos brancos, resta a tarefa de conhecê-los melhor, pois agora, mais que nunca, é obrigatório respeitá-los.

 

Quando tinha 6 anos, José Adalberto Silva, um dos muitos índios brasileiros com nome de branco, viu outros macuxis como ele serem mortos e terem a casa queimada por fazendeiros, no nordeste de Roraima. A revolta que o menino sentiu nessa ocasião ficou marcada na memória, e fez crescer nele uma vontade forte de buscar justiça. "Quando entrei na escola, disse a mim mesmo que um dia ia ser advogado", diz ele.

Os estudos de direito, que tempos depois ele começou, não foram adiante. Isso não impediu, no entanto, que José Adalberto se tornasse um defensor de seu povo, em atividades que começaram no âmbito local, mas aos poucos foram se ampliando.

Na luta pelos interesses dos macuxis, ele percebeu que seus problemas eram muito semelhantes aos enfrentados por outros povos indígenas de Roraima, dos demais estados do Brasil e até de outros países: invasão, violência, preconceito, desrespeito, descaso, exclusão. Ele descobriu então que fazia parte de algo bem maior que sua aldeia: o movimento indígena.

Hoje, aos 40 anos, embora ainda pouco conhecido nacionalmente, José Adalberto é o que se costuma chamar de cidadão do mundo. Conhece dezenas de países, negocia financiamentos para projetos em Roraima com entidades européias e representa os índios brasileiros, juntamente com outros líderes, em vários encontros internacionais.

Uma de suas marcas é o estilo franco. Numa conferência sobre a questão indígena realizada no Canadá, por exemplo, ouviu de membros do governo canadense a declaração de que no país não havia preconceito contra índios. Logo em seguida, para não deixar dúvidas, os próprios líderes indígenas locais reforçaram a afirmação.

Naquela noite, porém, José Adalberto foi jantar com os índios dos outros países – inclusive os canadenses. Não puderam entrar. O restaurante não atendia índios. No dia seguinte, num almoço oferecido pelo governo local, pediu a palavra. Numa fala dura, desmascarou o discurso oficial e criticou aqueles que o haviam confirmado. "No Brasil é a mesma coisa", disse, comparando-os a alguns índios que falam qualquer coisa em troca dos favores do governo. O desabafo foi aplaudido, até por índios canadenses. "Você teve muita coragem em dizer aquilo", afirmou um deles.

No movimento indígena, no qual milita há 14 anos, José Adalberto deixou de ser Silva. Macuxi se tornou seu sobrenome, para identificá-lo melhor entre outros josés que agora andam juntos: pataxós, terenas, caiapós, xavantes, ianomâmis, guaranis...

José Adalberto Macuxi quase não tem parado em Boa Vista (RR), onde mora e trabalha como coordenador de projetos do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Um dia está em Brasília, o outro, em Porto Seguro (BA). Seu celular está sempre ocupado. Juntamente com líderes de etnias de todo o país, está agora às voltas com a organização de uma série de manifestações paralelas às comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Tudo começará com uma marcha que partirá de vários pontos do país com destino a Santa Cruz Cabrália (BA), onde será realizada a Conferência Indígena 2000, de 18 a 22 de abril. Além disso, ocorrerão manifestações em Brasília, Salvador e Porto Seguro.

Engrossadas por representantes de outros movimentos sociais do país, as manifestações serão um claro contraponto às festividades oficiais. "Não temos o que comemorar", diz o representante macuxi. Mas as lideranças indígenas querem ir além do protesto. "Alguns membros do movimento negro e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) estão chateados conosco", confidencia José Adalberto. "Eles queriam que a palavra de ordem fosse ‘Fora FHC’, mas nós preferimos mostrar o que pensamos do governo e da Funai, apresentar propostas e dizer o que queremos para o novo milênio", diz.

O mau exemplo de Juruna

Uma das propostas é audaciosa: a criação de um partido indígena. "Acreditamos em nossa organização, em nossa autonomia", diz ele.

O partido não começaria da estaca zero. Além de estimular o surgimento de novas lideranças, pretende-se também congregar os índios que hoje estão dispersos por vários partidos, alguns exercendo mandato. "Temos no Brasil 29 vereadores, 2 prefeitos e 3 vice-prefeitos indígenas", contabiliza José Adalberto.

Pelo menos no plano local, ele imagina alçar vôos mais largos. "Em Roraima há 35 mil índios, e desse total, 12 mil são eleitores, o que dá para eleger um deputado estadual e um federal", avalia o líder macuxi.

Mas, em sua opinião, para conquistar posições como essas os ín-dios terão que apagar a má imagem deixada por Mário Juruna, cacique xavante que conseguiu o posto mais alto já ocupado por um indígena no país: uma cadeira de deputado no Congresso Nacional. Juruna, eleito pelo PDT no pleito de 1982, ganhou notoriedade empunhando um gravador para registrar – e posteriormente cobrar – as promessas que os políticos faziam aos índios.

"Juruna foi uma liderança com um passado importante na sua comunidade, mas acabou entrando na política sem conhecimento nem assessoria", diz José Adalberto. "Ele se ‘queimou’ e criou uma situação bastante negativa não só para si mesmo como também para os povos indígenas do Brasil", prossegue, lembrando como exemplo disso o triste episódio em que Juruna teria sido corrompido por fazendeiros baianos para convencer os índios a sair das terras que reivindicavam. "Veja só que tipo de representante tínhamos naquela época." Hoje, José Adalberto acha que a situação poderia ser diferente. "Se ele se elegesse agora, teria muito mais condições de fazer alguma coisa no Congresso, com a participação das organizações indígenas do país."

Sem intermediários

Para quem não sabe, quando o líder macuxi diz "organizações indígenas", está se referindo a um tipo de entidade relativamente recente, que tem se alastrado pelo país. E que não pode ser confundido com as organizações não-governamentais (ONGs) indigenistas, comandadas por não-índios. Nas entidades indígenas, são os próprios índios que lutam pelos seus interesses.

Esse tipo de representação autônoma só se tornou possível depois da promulgação da Constituição de 1988. "O texto constitucional garantiu o respeito à organização social dos índios", diz o antropólogo Luís Donisete Benzi Grupioni, da Universidade de São Paulo (USP). Isso abriu espaço não só para o surgimento de novas entidades como também para a oficialização de associações que já haviam se constituído informalmente ou dependiam da intermediação de brancos para ter existência jurídica.

Mas o que são e para que servem as organizações indígenas? "Trata-se, a rigor, da incorporação, por alguns povos indígenas, de mecanismos de representação política por delegação, para poder lidar com o mundo institucional, público e privado, da sociedade nacional e internacional", define o antropólogo Carlos Alberto Ricardo, do Instituto Socioambiental (ISA), em texto presente no rico site da entidade (www.isa.org.br). Trocando em miúdos, as organizações indígenas são sobretudo um canal para reivindicações coletivas e uma maneira de depender menos dos brancos para obter e administrar os recursos necessários às comunidades envolvidas.

Atualmente, segundo Grupioni, já são quase 300 entidades, número que chega a superar a própria quantidade de povos indígenas conhecidos no país (cerca de 220). Mas esse total, explica ele, abrange associações muito diferentes entre si. Podem representar membros de um povo ou parte dele (só as mulheres ou professores, por exemplo) ou vários povos de uma região.

Mas há algumas entidades que pretendem ser bem mais representativas. No âmbito da Amazônia, há o Conselho das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), e, no nacional, o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Capoib), com sede em Brasília. Como o nome já diz, seu objetivo é funcionar como uma espécie de confederação que fale em nome de todas essas entidades e até dos povos que ainda não tenham constituído suas associações.

Os obstáculos para atingir tal representatividade são muito grandes. Entre outros fatores, pesam as distâncias amazônicas, as dificuldades de comunicação, a diversidade cultural e lingüística – há cerca de 180 línguas indígenas diferentes no país e muitos índios não falam português – e, claro, a falta de recursos.

Por barreiras como essas – ou até por desinteresse ou falta de familiaridade com o ato de se fazer representar fora de sua comunidade –, não são poucos os que estão alheios ao movimento indígena. Num cálculo talvez ainda muito otimista, José Adalberto estima em mais de 30% as comunidades indígenas que não estão participando do processo representativo. "Muitas lideranças não repassam e às vezes nem mesmo entendem o que é discutido", diz ele.

"As organizações indígenas sempre vão ter uma deficiência de representação", diz o jurista Carlos Frederico Marés, presidente do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai). A dificuldade decorreria do fato de que essas instituições são construídas de acordo com um modelo de representação inexistente dentro das sociedades indígenas.

Por isso, embora possam ter "um valor muito grande" na relação com os brancos, elas não seriam "a forma futura de representação em relação ao Estado".

Opinião oposta tem Fernando Bittencourt, secretário-geral da ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). Para ele, "o futuro está nas mãos das associações indígenas", que gradualmente ocuparão grande parte do espaço antes preenchido pelas ONGs, sobretudo no que diz respeito à interlocução das comunidades com a sociedade envolvente.

Polêmicas à parte, apesar das dificuldades – esperáveis em um processo tão complexo e recente –, os índios talvez nunca tenham tido melhores condições para dizer ao país, com as próprias palavras, o que querem.

É o que farão na conferência de Santa Cruz Cabrália. A pauta de reivindicações, que vem sendo discutida há tempos, tem três exigências principais, que serão examinadas nesta reportagem.

A primeira delas diz respeito à questão fundiária. Os índios exigem a conclusão dos processos de demarcação de terras indígenas pendentes e a solução para as invasões em áreas já demarcadas, como a dos pataxós-hã-hã-hães, na Bahia (ver texto abaixo).

Maratona

O procedimento de demarcação é tarefa da Funai. Começa com a identificação e delimitação do território tradicional da comunidade indígena, conforme os parâmetros constitucionais (ver texto abaixo). Essa etapa fica a cargo de uma equipe coordenada por um antropólogo, que segue as indicações da própria comunidade. O laudo antropológico, junto com um levantamento fundiário e um relatório ambiental, vai para a presidência da Funai. Aprovado, é encaminhado para o Ministério da Justiça, que determina a demarcação. Esta ainda deve ser homologada pelo presidente da República antes que se possa fazer o ato final: o registro do "imóvel" no órgão competente.

Segundo a Constituição, em outubro de 1993 todas as terras indígenas já deviam ter passado por essa maratona – cujas etapas foram apresentadas acima de maneira bastante resumida, diga-se de passagem. No entanto, segundo dados do ISA, menos da metade das áreas já foi registrada. Das restantes, cerca de 150 ainda não foram identificadas ou estão em processo de identificação. E ainda há demandas para ampliação de territórios já demarcados.

"É uma tarefa gigantesca", justifica-se o antropólogo Roque Laraia, diretor de Assuntos Fundiários da Funai. Segundo ele, "com tudo a favor", identificar uma terra indígena leva no mínimo um ano.

Na região amazônica – que reúne quase 99% das terras indígenas no país, em área –, as condições são propícias. Além de haver recursos do G-7 (grupo dos países mais ricos do planeta) para a demarcação, "na Amazônia o trabalho é mais fácil", diz o diretor da Funai. Isso porque a maioria das áreas ainda é despovoada.

"O problema é o resto do país", afirma Laraia. Como muitas das terras indígenas estão em regiões densamente habitadas, os custos são muito maiores, pois a lei obriga que sejam indenizados todos aqueles que ocupavam a área de boa-fé, ou seja, que ignoravam estar em terra indígena.

A compensação monetária cobre apenas eventuais benfeitorias. Mesmo assim, em grande parte dos casos o governo demora a pagar a indenização. Sem o dinheiro, muitos colonos não abandonam o local. De acordo com o diretor da Funai, essa é a origem da maioria dos conflitos que acontecem em terras indígenas.

Se isso é verdade, pode-se concluir que está longe o fim de episódios de violência como os recentemente registrados na área de Potrero Guaçu, em Mato Grosso do Sul (ver matéria sobre os guaranis caiovás, nesta edição). Afinal, a dívida fundiária da Funai – na sua grande maioria, relativa ao pagamento de indenizações – já alcança cerca de R$ 150 milhões, uma cifra que supera o orçamento total do órgão para este ano.

Diante desse quadro, é extremamente preocupante a constatação de que, no mesmo orçamento, tenham sido reduzidas justamente as verbas destinadas à regularização fundiária: cerca de R$ 8 milhões, contra R$ 14 milhões em 1999. "Esse é um sinal da falta de compromisso do governo com a questão indígena", diz Saulo Feitosa, vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Feitosa também não poupa críticas ao que considera "manipulação de dados": "O governo anuncia aos quatro ventos que 60% das terras indígenas já estão demarcadas, esquecendo de dizer que 80% delas continuam invadidas".

Na ponta do lápis

Por saber que o dinheiro e a ação do governo costumam demorar muito para chegar, os índios algumas vezes decidem agir por conta própria. Um caso insólito desse tipo aconteceu há muito tempo no processo de demarcação da área indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima – cuja conclusão, aliás, ainda não tinha ocorrido até o fechamento desta edição, apesar de ser uma das principais reivindicações do movimento indígena e ter sido prometida pelo presidente da Funai para novembro do ano passado.

A história da demarcação dessa área, onde nasceu José Adalberto Macuxi, começou em 1978. Nessa época, ele lembra, havia no local cerca de 400 fazendas de gado. "Como a Funai não tinha dinheiro, então nós mesmos fomos indenizando os fazendeiros", diz o líder macuxi. Os recursos vieram sobretudo de uma campanha realizada no Brasil e na Europa durante oito meses, em 1979, por entidades ligadas à Igreja Católica. O dinheiro foi transformado em reses, e parte delas serviu como moeda de troca para negociar a saída dos fazendeiros.

Um dos efeitos colaterais desse fato foi que os macuxis se tornaram prósperos pecuaristas. "Hoje existem entre 70 e 80 fazendas organizadas pelos índios, com cerca de 3 mil cabeças de gado", diz José Adalberto.

A parte absurda é que as áreas eram adquiridas legalmente, com documento em cartório e tudo o mais, e os macuxis solicitavam então à Funai providências para cancelar o registro daquelas fazendas, que passavam a ser, como terras indígenas, patrimônio da União! Ou seja, os índios fizeram quase todo o papel que cabia à Funai.

"Depois vimos que estávamos fazendo a coisa errada, e agora queremos o reembolso desse dinheiro", diz José Adalberto. Ele garante que, depois da Conferência Indígena 2000, os macuxis vão "pôr tudo isso na ponta do lápis, para cobrar da Funai". Mais problemas para Laraia e Marés.

Violência de sempre

Mas nem tudo é incomum no processo de demarcação da Raposa-Serra do Sol. Como no caso relatado no início desta reportagem, ele também tem sido marcado pela violência que ao longo da história vem caracterizando as relações entre índios e brancos. De acordo com o Cimi, entre 1981 e 1999, houve 20 índios assassinados, 21 vítimas de tentativas de homicídio, 54 ameaçados de morte, 51 agredidos fisicamente e 71 presos na região.

Outro ingrediente típico, mas especialmente picante neste caso, são as pressões dos interessados na redução e fragmentação das terras indígenas – grupo que, no caso, ocupa os principais postos políticos e econômicos de Roraima. Isso explica por que suas contestações aos limites determinados no processo demarcatório têm recebido uma atenção especial em Brasília, com direito até mesmo a uma visita pessoal do então ministro da Justiça Nelson Jobim ao local em 1996, "para entender a situação", segundo suas próprias palavras.

"O governo brasileiro tem receio das bancadas antiindigenistas, mas acreditamos que finalmente vai cumprir a promessa de demarcar a área antes de 22 de abril de 2000", diz Jerônimo Pereira da Silva, presidente do CIR.

É possível que esse compromisso seja cumprido, mas a Funai não prepara nenhum "pacote de demarcações" para a ocasião das comemorações oficiais dos 500 anos, segundo Marés. "Precisamos demarcar o que está no processo normal e continuar demarcando depois, inclusive para demonstrar que o processo não vai parar em abril", diz o presidente da Funai.

Por outro lado, Marés acha que "o Brasil faria um belo papel" se atendesse as duas outras exigências da pauta da conferência: a aprovação do Estatuto das Sociedades Indígenas e a ratificação da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na opinião do presidente da Funai, isso poderia "indicar que os próximos 500 anos serão mais fáceis para os povos indígenas".

Papai Funai

Para que essa frase de efeito seja integralmente compreendida são necessárias pelo menos duas explicações. A primeira diz respeito ao Estatuto das Sociedades Indígenas, texto legal ainda em discussão no Congresso, elaborado para substituir o anacrônico Estatuto do Índio – ou lei no 6.001/73 – que, pelo menos teoricamente, vigora até hoje.

Promulgada em 1973, essa lei estabelece que os índios estão sujeitos à tutela da União, figura que já foi bastante abrangente, mas hoje se reduz a "um meio jurídico pelo qual o Estado tem a obrigação de anular atos contratuais praticados contra interesses indígenas", define Carlos Marés. "Se há um contrato evidentemente lesivo ao interesse indígena, esse contrato é nulo", exemplifica.

"O objetivo era proteger os índios nas suas relações com a sociedade envolvente, o que, em princípio, era uma coisa boa", avalia a advogada Ana Valéria Araújo, do ISA. Mas a concepção que estava por trás desse mecanismo era a do Estado controlador. "O estatuto não foi feito para viabilizar a vida dos índios, mas a do Estado como tutor dos índios. Assim, a sua vontade se sobrepôs às necessidades dos povos indígenas", diz Ana Valéria.

Com os avanços promovidos pela Constituição de 1988 – a primeira a reconhecer a existência de sociedades indígenas e a garantir seu direito à diferença –, ficou ainda mais evidente o descompasso entre o Estatuto do Índio e a realidade das comunidades indígenas. "É uma legislação atrasada em relação à capacidade que os índios mostram de tomar a iniciativa nas mais diversas situações", afirma a antropóloga Dominique Gallois, professora da USP.

É verdade que a Carta de 1988 prevalece sobre o antigo estatuto. Um exemplo caricato escolhido por Dominique para mostrar a supremacia da Constituição revela também o exagero a que chegava a tutela: "Hoje em dia nenhum indígena precisa de autorização do ‘papai’ Funai para sair de seu território, ao contrário do que está previsto no Estatuto do Índio".

Mas há igualmente situações em que a permanência do estatuto ainda significa, sim, problemas práticos. "Se entrarmos com uma ação em nome de uma comunidade cujas terras tenham sido invadidas, por exemplo, e o juiz disser que os índios não têm legitimidade para isso, pois são tutelados, pode-se levar até três meses apenas para provar que, de fato, eles têm esse direito, garantido pela Constituição. Tudo isso só para dar início ao processo", diz Ana Valéria.

O projeto do novo estatuto está em debate desde a promulgação da Carta. Diversas propostas foram levadas ao Congresso Nacional. Em 1990, chegou-se a um projeto comum, mas sua tramitação está parada desde 1994. As comemorações dos 500 anos do Brasil, no entanto, são vistas como um momento politicamente favorável a que o assunto volte à tona. "Temos esperança de que o governo faça o projeto avançar agora", diz a advogada.

A importância da nova lei é reconhecida por Marés. "É extremamente necessária uma legislação que dê exeqüibilidade à Constituição", afirma. "Com a nova Carta, os direitos dos índios deixaram de ser individuais e se tornaram coletivos. O novo estatuto vai regulamentar esse caráter, facilitando a ação em juízo", explica o presidente da Funai.

Em sua opinião, a demora do projeto não é absurda: "Trata-se de um processo legislativo complexo". Marés garante que a Funai está empenhada no assunto: "Vou estar presente nas discussões para que o projeto seja aprovado", diz.

Risco de retrocesso

A outra explicação necessária diz respeito à ratificação da Convenção 169 da OIT, terceira exigência da pauta de reivindicações dos indígenas. Como informa Lídia Luz, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, em texto presente no livro A temática indígena na escola, trata-se de uma atualização da Convenção 107 da OIT, "o primeiro instrumento jurídico internacional concebido especificamente para salvaguardar os direitos indígenas". Aprovada em julho de 1989, na Conferência Internacional do Trabalho, a nova convenção até hoje ainda não foi ratificada pelo Brasil, apesar de já ter sido adotada em diversos países. "Ao ratificar uma convenção, o Estado membro da OIT se compromete a adequar a legislação nacional e a desenvolver ações de acordo com as disposições contidas no instrumento internacional", esclarece Lídia.

O ponto mais polêmico do documento é o reconhecimento da propriedade da terra aos povos indígenas. Na interpretação do ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim, esse é de fato um obstáculo à sua ratificação, que só seria possível com uma reforma no artigo 20, inciso XI da Constituição, segundo o qual os índios têm garantido o usufruto de seu território, mas a propriedade é da União. E requerer uma emenda constitucional nesse caso, na opinião de Jobim, significaria "reabrir a discussão sobre algo que está muito bem". Em outras palavras, seria dar uma oportunidade perigosa aos que querem retrocessos nos direitos indígenas conquistados em 1988.

Marés, que já defendeu a ratificação, discorda de Jobim. Para ele, os argumentos utilizados contra a convenção "são muito fracos", e o fato de o Brasil não tê-la ratificado até hoje "é uma lástima".

A seu ver, a assinatura do documento não traria mudanças práticas para os índios, pois "a legislação brasileira é até mais avançada que a convenção". Mesmo assim, teria "importância simbólica, pois é uma norma com validade internacional, e portanto pode ser cobrada".

Esse é precisamente um dos motivos por que a convenção é prioritária para o movimento indígena. "Vamos ter elementos para processar a União", diz José Adalberto Macuxi. "Por exemplo, em relação ao descumprimento do prazo para a demarcação das terras."

E o ciclo se fecha. Com o Estatuto das Sociedades Indígenas, os incipientes mecanismos de representação utilizados pelos índios – como as organizações indígenas – serão regulamentados e tendem a se fortalecer. Com a ratificação da Convenção 169, essas entidades, agora mais atuantes, poderão participar de fóruns internacionais para exigir do governo, entre outras coisas, a demarcação das terras, em obediência à Constituição. Uma questão de justiça.

 

Esperança pataxó

Grupo indígena aguarda decisão do STF

Quando o índio Galdino Jesus dos Santos morreu queimado por cinco rapazes da classe média em um ponto de ônibus de Brasília, em abril de 1997, o país se comoveu. Mas passou despercebido o fato de que ele estava na capital federal justamente para participar de mais uma negociação de retomada das terras de seu povo, os pataxós-hã-hã-hães, cansados de uma longa história de violências.

Galdino vivia na reserva indígena Caramuru, na região que abrange os municípios de Pau Brasil, Camacan e Itaju do Colônia, no sul da Bahia. Ela foi demarcada em 1936, mas seus limites nunca foram respeitados. Hoje, segundo a Associação Nacional de Ação Indigenista na Bahia (Anai), 52 mil dos 54,1 mil hectares – ou seja, 96% – da área indígena são ocupados por fazendas de gado e cacau onde vivem 400 brancos, enquanto os cerca de 2 mil pataxós-hã-hã-hães se distribuem no pouco que sobrou de suas terras.

Os incansáveis invasores chegaram a ganhar apoio oficial. Entre 1977 e 1981, o próprio governo da Bahia concedeu títulos de propriedade aos fazendeiros.

Em 1982, os pataxós decidiram iniciar por conta própria a retomada das terras e conseguiram recuperar uma fazenda. A Funai então acordou. No mesmo ano, entrou com uma ação contra os fazendeiros e o estado da Bahia para anular os títulos concedidos ilegalmente. O processo se arrastou por uma década até chegar, em 1992, ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde até o fechamento desta edição ainda aguardava – oito longos anos depois – a decisão final do atual relator da ação, ministro Nelson Jobim.

Mas por que tanta demora? "Há muitos interesses envolvidos", diz Roque Laraia, diretor de Assuntos Fundiários da Funai. A área em questão, explica ele, está localizada em plena região dos "coronéis" do cacau.

Impacientes com tamanha lentidão, no final do ano passado os índios tentaram retomar mais dez fazendas. Segundo a Anai, foram expulsos de nove delas por uma ação policial truculenta e ilegal – a Polícia Militar baiana, que a empreendeu, não poderia entrar em área indígena, prerrogativa da Polícia Federal. Infelizmente, este seria apenas mais um episódio de uma longa cronologia de prisões, espancamentos, assassinatos, expulsões, incêndios, apedrejamentos e violências afins, documentados sistematicamente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

"Os índios reivindicam o fim da violência, o julgamento da ação no STF e a manutenção das terras retomadas", diz José Augusto Sampaio, diretor da Anai. "Esperamos atitudes imediatas, pois sabemos que depois de abril do ano 2000 os conflitos perderão visibilidade e não haverá tanto interesse da mídia e das autoridades."

Sampaio tem razão. Dificilmente haverá momento mais propício que este. Entrevistado por Problemas Brasileiros no início de fevereiro, o ministro Jobim desafiou quem não acreditava em um breve desenlace para o conflito: "Eles terão uma surpresa". Já havia voltado da Bahia a documentação esperada, os assessores do ministro estavam debruçados no processo e ele admitia haver empenho do governo para uma solução do conflito antes das comemorações dos 500 anos do descobrimento. "O ministro da Justiça me fez um apelo nesse sentido", revelou Jobim, deixando no ar uma clara sugestão de que o veredicto final já está dado e falta apenas sua formalização. "Quero resolver isso logo", disse o ministro do STF, com disposição que deveria fazer parte do dia-a-dia do Judiciário.

 

É proibido evoluir

Vítimas de preconceito, índios perdem direito de adotar transformações culturais

Um dos temas mais recorrentes em mitos indígenas é a origem das coisas: o dia, a noite, a onça, o mar, etc. Os timbiras, que vivem em Tocantins e no sul do Maranhão, contam num de seus mitos, registrado pelo antropólogo Julio Cezar Melatti, como surgiram os homens brancos: "Antigamente não havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena ficou grávida. Toda vez que ela ia tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu filho, que ainda não havia nascido, saía de seu ventre e se transformava em animais, brincando à beira d’água. Depois voltava outra vez ao ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém. Um dia o menino nasceu. Era Aukê. Ainda recém-nascido, transforma-se em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolvem matá-lo. As primeiras tentativas de liquidá-lo não tiveram sucesso. Uma vez, por exemplo, o avô o levou ao alto de um morro e empurrou-o de lá no abismo. O menino, porém, virou folha seca e foi caindo devagarinho, voltando são e salvo para a aldeia. Até que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirá-lo, o que realmente fez. Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as cinzas do menino, achou lá uma grande casa de fazenda, com bois e outros animais domésticos à porta: Aukê não havia morrido, mas sim transformara-se no primeiro homem civilizado. Aukê ordenou, então, ao avô que fosse buscar os outros habitantes da aldeia. E eles vieram. Quando Aukê fê-los escolher entre a espingarda e o arco, os índios ficaram com medo de usar a primeira, preferindo o segundo. Por terem preferido o arco, os índios permaneceram como índios. Se tivessem escolhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê chorou com pena dos índios não terem escolhido a civilização".

Só de cocar

A deliciosa história de Aukê contraria um mito – aqui com o significado de crença equivocada – da sociedade dominante. Ainda há quem pense que a cultura indígena seria algo imutável, que se repetiria quase identicamente ao longo das gerações, desde tempos imemoriais. Essa idéia, como se vê, não se sustenta diante de um mito que fala de homens brancos, fazendas e espingardas – e há outros, de diferentes culturas, que incorporam até aviões. Diante de um momento histórico concreto – o do contato com os brancos –, os timbiras elaboraram um novo relato mítico, o que mostra que as culturas indígenas não são congeladas no tempo. "Se elas ainda existem, é porque têm essa capacidade de transformação", diz a antropóloga Dominique Gallois, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

Como muitos esperam ver nos índios, no entanto, uma espécie de pureza original – que seria como um retrato vivo de estágios anteriores da sociedade dominante –, só se admite sua condição de cultura diferenciada enquanto ela puder ser identificada por sinais bem claros e, de preferência, externos. Num encontro sobre a questão indígena na Inglaterra, no qual o líder José Adalberto Macuxi foi um dos representantes brasileiros, um parlamentar britânico declarou não reconhecê-lo como interlocutor dos índios. O motivo: ao contrário do cacique caiapó Raoni, que foi apresentado ao mundo com pinturas e adereços típicos de sua etnia pelo cantor inglês Sting, José Adalberto se vestia como branco. "Ele queria ver cocar", diz o líder macuxi.

Zarabatanas

Além de ter feito um julgamento cultural baseado na aparência, o político britânico possivelmente considerava, como muitas pessoas, que índios integrados à cultura dominante se transformavam em brancos. No entanto, na opinião de Dominique, esse é mais um preconceito. De acordo com a antropóloga, é possível manter a própria identidade étnica mesmo após séculos de contato intenso com a sociedade hegemônica.

Uma das maiores provas disso seriam os guaranis que vivem em regiões densamente povoadas do Brasil. Até por uma questão de sobrevivência, eles geralmente sabem falar português, têm nomes brasileiros, etc. No entanto, quando estão dentro da aldeia, ainda falam a própria língua, usam nomes guaranis e cultivam suas práticas religiosas tradicionais. Um exemplo de resistência cultural. Mas eles costumam ser citados por antropólogos em cursos e palestras também por outro motivo. Nas feiras de artesanato de São Paulo, um dos artigos vendidos por eles são zarabatanas. "Acontece que eles nunca usaram zarabatana", diz Dominique.

Essa atitude, segundo ela, seria uma espécie de falsa rendição dos guaranis, apenas para fins comerciais, à imagem caricatural, largamente difundida, que se faz dos indígenas. A própria palavra "índio", lembra a antropóloga, "se refere a um padrão de alteridade elaborado pelos brancos, e que não leva em conta uma imensa diversidade cultural". Ou seja, é uma generalização vazia, pois coloca "no mesmo saco" povos que muitas vezes não têm nada a ver uns com os outros. Nesse contexto, diz Dominique, seria como se o vendedor de zarabatanas dissesse: "Índio é o que você está dizendo que eu sou. Na verdade, sou guarani, mas, se você quer zarabatanas, também posso fazer..."

Aprendizado

Pelo senso comum, portanto, além de não ter direito a mudanças culturais, os índios têm que agir de acordo com o que se espera deles. Dominique usa uma imagem interessante: para poder se relacionar com os brancos, eles acabam tendo de "aprender a ser índios", em vez de guaranis, macuxis, pataxós... "É um processo muito longo e complicado", diz a antropóloga. Mas o que significa, segundo os padrões dominantes, ser índio?

A resposta é variável. "É interessante notar como são mais preconceituosas as populações que vivem em torno dos grupos indígenas. Por outro lado, eles são vistos com mais simpatia nos grandes centros urbanos", destaca o antropólogo Luís Donisete Benzi Grupioni. "Isso é fácil de ser explicado. Quanto maior a proximidade, mais chances existem de disputas", diz.

De fato, cinco séculos após o descobrimento, ainda são inúmeros os exemplos de hostilidade e discriminação, sobretudo nas regiões onde há forte presença indígena. No estado de Roraima, por exemplo, José Adalberto Macuxi ouve freqüentemente, ao lado de caracterizações depreciativas como "ladrões" e "preguiçosos", a referência inconformada a que os índios teriam "terra demais".

Quanto ao lado "simpático", muitas vezes está também envolvido em grande dose de mitificação. Um estereótipo "positivo" é fruto sobretudo dos anos 90, na órbita da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Eco-92. Nessa época – na qual a presença do discurso ecológico na mídia atingiu seu apogeu – os povos indígenas passaram a ter sua imagem associada à preservação do meio ambiente. Seriam o exemplo de "convivência harmoniosa com a natureza", e poderiam fazer o papel de autênticos "guardiães da floresta", entre outros lugares-comuns que foram exaustivamente disseminados nos meios de comunicação.

O discurso se sustentava – e ainda se sustenta – na constatação indiscutível de que os índios destroem muito menos o meio ambiente do que os brancos. Ana Valéria Araújo, coordenadora do programa Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), observa que áreas indígenas, como o Parque do Xingu, têm seus limites nitidamente delineados em fotos de satélite. "São ilhas verdes em meio a regiões devastadas", diz ela.

O problema da imagem de "preservadores naturais" do meio ambiente é que muitas vezes ela leva, novamente, a uma condenação a um eterno estado de pureza, sem considerar como é difícil viver "ilhado" – no Parque do Xingu, por exemplo, atualmente a fauna aquática está sendo gravemente afetada pela poluição das cabeceiras do rio Xingu, que ficam fora dos limites do parque.

O isolamento é também econômico: à exceção de alguns casos (ver texto abaixo) faltam alternativas de sustentabilidade para que as populações indígenas possam continuar preservando os recursos naturais de suas terras.

Surgem assim condenações derivadas do discurso ecologicamente correto. Os réus são, por exemplo, os macuxis, que criam gado em Roraima. Ao combater essa prática, argumenta Dominique, os ambientalistas estariam transmitindo a mensagem de que "índios não podem se desenvolver segundo os mesmos padrões adotados pelos brancos". Ou seja, seria uma "negação da igualdade", conclui ela.

É claro que também existem as alternativas "permitidas": artesanato, turismo – já se vendem pacotes para turistas assistirem às festas de algumas comunidades do Xingu –, enfim, "atividades adequadas à imagem exótica que se faz dos índios", avalia Dominique.

A antropóloga se preocupa com o abuso desse expediente. "Produzir uma imagem de si para fora sem afetar a vivência da própria cultura é algo muito difícil." Essa transformação da própria identidade cultural em mercadoria teria como resultado "fortalecer a imagem idealizada, romântica, de povos que viveriam como há 500 anos", critica. Segundo ela, eles nem ocupam mais os mesmos territórios que habitavam àquela época.

Parte do passado

Luís Grupioni observa um aspecto paradoxal desse movimento de "volta às origens". "Desde o tempo da Colônia, procurou-se fazer com que os índios deixassem de ser índios, pois deveriam se integrar à sociedade. Agora, exige-se que eles sejam exatamente aquilo que lhes era negado", diz ele.

O antropólogo é autor de uma pesquisa sobre a imagem dos índios em livros didáticos. Apesar de reconhecer uma evolução na abordagem do assunto nessas publicações, ele observa a persistência de alguns equívocos. "Ainda é comum os índios serem enfocados no passado", diz, "como se não pertencessem ao mundo de hoje."

Mas, apesar de todas as adversidades, as sociedades indígenas chegaram aos dias atuais, e "estão no Brasil para ficar", como afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha no artigo "O futuro da questão indígena". Com os avanços conquistados na Constituição de 1988, que reconheceu seu direito à diferença, esses povos puderam recuperar pelo menos parte de sua auto-estima. Algo muito importante para quem está sujeito a tantos preconceitos e tamanha incompreensão.

 

Direito ancestral

Segundo a Constituição, os índios têm direito às terras "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

Esse direito é considerado anterior à própria nação brasileira e portanto existe mesmo sem a demarcação, que apenas o reconhece. Entretanto, os índios não podem dispor de suas terras – vendê-las, doá-las, alugá-las ou arrendá-las –, pois têm apenas o usufruto exclusivo e a posse permanente delas. A propriedade é da União.

 

Mogno para a Holanda

No interior do estado do Pará, assediado intensamente por madeireiras que operam ilegalmente, o povo xicrin do Cateté vai implantar um projeto pioneiro de exploração controlada de mogno e de outras espécies. "Durante vários anos, os xicrins foram beneficiados por uma política assistencialista patrocinada pela Companhia Vale do Rio Doce", conta a antropóloga Marina Kahn, secretária executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA). "Mas começaram a observar que seus vizinhos caiapós estavam enriquecendo e tendo acesso a outros benefícios ao ceder à pressão das madeireiras, especialmente com a extração ilegal de mogno."

Quando algumas famílias passaram a permitir a entrada das empresas, a comunidade decidiu agir. A primeira providência foi procurar assessoria em busca de uma fórmula de exploração de madeira que não afetasse a saúde da terra, nem das pessoas. Começou então a ser delineado, em 1992, um projeto de manejo ambiental, sob coordenação do ISA.

Após uma longa negociação com o Ibama e a Funai para aprovação, começou a corrida pelo capital de giro. Depois de muitas tentativas, a Companhia Vale do Rio Doce assumiu o investimento. Outra grande dificuldade foi encontrar compradores dispostos a pagar um preço maior pela madeira certificada. Conseguiram o compromisso de compra somente no exterior, de uma empresa holandesa. "Esperamos que este projeto seja um exemplo de que é possível realizar um manejo rentável, legal e adequado", diz Marina.

Já foi executado um minucioso inventário das espécies vegetais da área escolhida, e espera-se iniciar ainda este ano o corte seletivo das árvores. A extração será gerenciada pela comunidade, com a contratação de mão-de-obra externa. "Não é uma atividade tradicional, mas uma alternativa legítima diante da pressão das madeireiras", justifica Marina. Ela explica que toda a população concorda com o projeto, que não afetará o cotidiano das pessoas, pois os trabalhos são realizados em local distante das casas.

 

Rica diversidade

Quem é índio? Quem não é? Para responder a essas perguntas, vários critérios já foram utilizados. Atualmente, o mais aceito é o da auto-identificação étnica, segundo o qual o que classifica ou não um grupo de indivíduos como indígenas "é o fato de eles próprios se considerarem índios ou não e de serem considerados índios ou não pela população que os cerca", como define o antropólogo Julio Cesar Melatti.

Apesar de serem classificados em um mesmo grupo em oposição ao homem branco, os índios apresentam muitas diferenças entre si. As distinções podem ser físicas – estatura, feições, cor de pele e dos cabelos variam muito entre as diversas etnias –, culturais ou lingüísticas.

Quanto à diversidade cultural, é possível mencionar inúmeros exemplos, como o do Xingu. Os povos do alto Xingu têm a alimentação baseada principalmente em peixe e mandioca. Consideram uma séria quebra de tabu comer caça de pêlo, como anta e veado. Os do baixo Xingu, por sua vez, consomem a maior parte dos animais da floresta, e por isso são vistos pelos alto-xinguanos como "selvagens, bárbaros".

No que diz respeito à diferença lingüística, estima-se que restem cerca de 180 línguas indígenas no país, contra as cerca de 1,3 mil que teriam existido à época da chegada dos europeus. Apesar dessa imensa variedade, prevalecem as menções históricas ao tupi, a primeira língua aprendida pelos portugueses. Esse idioma foi estudado e difundido pelos missionários em detrimento dos demais, apelidados pejorativamente de "línguas travadas". A primeira classificação lingüística dos índios brasileiros reflete bem esse preconceito: de um lado, o tupi; de outro, o tapuia, que correspondia a todas as outras línguas indígenas.

Os lingüistas classificam em troncos as línguas que tenham tido origem comum. Hoje, existiriam três deles: tupi, macro-jê e aruaque. Em 1500, seriam muito mais: cerca de 40. Para dar uma idéia da diversidade que isso representa, basta dizer que todos os idiomas latinos, germânicos e eslavos, além do sânscrito e outras línguas faladas na Ásia, fazem parte de um único tronco lingüístico, o indo-europeu.

 

Recontagem revela crescimento

Depois de quase cinco séculos de queda, a população indígena brasileira voltou a crescer. Segundo estimativas da Funai, atualmente há por volta de 350 mil índios no país, contra cerca de 100 mil registrados no início dos anos 1970. O aumento populacional não está ligado apenas à relação entre nascimentos e mortes, mas também ao reconhecimento, nos últimos anos, de muitos grupos antes ignorados. Além dos povos "escondidos" em locais de difícil acesso, vários grupos que eram computados entre a população geral, sobretudo no nordeste, passaram a reivindicar sua identidade indígena.

Devido a fatores como esses, constantes alterações têm ocorrido não só no quadro populacional, mas também no número de etnias conhecidas e na distribuição geográfica dos índios brasileiros.

Embora haja grupos indígenas em quase todos os estados – as exceções são Piauí e Rio Grande do Norte –, a maioria deles está na Amazônia Legal, composta pelos estados do Amazonas, Acre, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão.

Essa região concentra quase 99% da área total das terras e abriga 60% da população indígena brasileira.

Os índios do restante do país espremem-se no que sobrou – cerca de 1,2 milhão de hectares, fragmentados em pouco mais de 200 áreas indígenas. Isso significa menos de 10 hectares por pessoa, proporção aproximadamente 50 vezes inferior à dos índios da Amazônia Legal.

As 220 etnias do país têm população muito variável. Quase uma centena delas têm até 200 pessoas, sendo que algumas contam nos dedos seus "sobreviventes", caso dos avás-canoeiros e vários outros grupos.

Os povos mais numerosos, com mais de 20 mil componentes, são os ticunas, do Amazonas, os guaranis, presentes em sete estados, e os caingângues, espalhados pelas regiões sul e sudeste do país.

Dezenas de etnias estão presentes também em outros países, como os ianomâmis (Venezuela), baniuas (Colômbia e Venezuela) e guaranis (Argentina, Paraguai e Bolívia).

 

Antes tarde que nunca

Demorou cinco séculos, mas finalmente aconteceu. Para os índios, estudar não significa mais abandonar a própria cultura. Desde 1996, com a publicação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Estado garantiu aos povos indígenas o direito a uma educação diferenciada, adequada à realidade de cada uma das 220 etnias existentes no país. "O governo passou a adotar a idéia do respeito às comunidades", afirma Ivete Campos, coordenadora do MEC.

Na prática, cabem à comunidade decisões importantes. Por exemplo, se a alfabetização será feita em português ou na própria língua. E também estabelecer um calendário letivo que não interfira em atividades da aldeia, como rituais, trabalho na roça ou pesca coletiva.

Para dar conta de um ensino tão específico, o ideal é que os professores sejam membros da própria comunidade. Por isso, também tem sido promovida pelo MEC a formação de educadores indígenas.

O papel da escola, entretanto, não é só valorizar a cultura própria de cada povo, mas também, e sobretudo, preparar as crianças para o inevitável contato com os brancos. "Não precisamos de escola para aprender a ser índios, mas queremos um instrumento que faça a ponte entre as duas culturas", diz Darlene Taukane, uma índia bacairi que trabalha com programas de formação de professores indígenas.

O poder público, por força de lei, deve aceitar as novas regras. E ajudar a implantá-las. É aí que começam os conflitos. Alguns estados, em vez de elaborar um modelo próprio, simplesmente copiaram as recomendações do MEC, sem discutir o assunto com educadores, prefeitos, líderes locais e índios. O resultado foi uma perigosa homogeneização.

Apesar dos problemas, a nova regra é aplaudida pelo líder indígena José Adalberto Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Antes de 1996, informa, havia no estado 80 índios professores. Mas, devido à discriminação, muito comum em Roraima, eles não se assumiam como indígenas. Sob o efeito das mudanças da nova LDB, eles "começaram a valorizar o que estavam negando: seu povo, sua cultura".

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