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As raízes políticas das crises
LUIZ HUMBERTO PRISCO VIANA O sistema político e a ordem jurídico-constitucional brasileira têm estado, de forma permanente, sob o signo da instabilidade e a marca da transitoriedade.
Em pouco mais de um século de história republicana, passamos por várias Repúblicas a que corresponderam outras tantas Constituições, cada uma objeto de numerosas alterações. Tivemos a Carta de 24 de fevereiro de 1891, profundamente emendada em 1926; a de 16 de julho de 1934; a de 10 de novembro de 1937, com mais de duas dezenas de modificações; a de 18 de setembro de 1946, também entremeada por dezenas de emendas, atos institucionais e atos complementares; a de 24 de janeiro de 1967, que pretendia encerrar o ciclo revolucionário de 1964, logo alcançada pelos atos institucionais e pela emenda constitucional número 1, de 1969, que a modificou por inteiro, seguindo-se outras dezenas de emendas, até a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, a qual, fechando a série, já ostenta mais de 20 emendas em apenas dez anos de vigência.
Era de se esperar que, superada a instabilidade do período autoritário, após os demorados e intensos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, as forças representativas da nação lograssem produzir um documento de real consenso e oportunidade, apto a reger a vida das instituições, as relações entre o governo e a sociedade, a organização e a administração do Estado de forma mais duradoura e proficiente.
Distante de nós a expectativa de ter uma obra com a longevidade da bicentenária Carta dos Estados Unidos da América, mas tínhamos a esperança de que ela fosse, pelo menos, estável até o ano 2000, capaz de suportar as transformações sociais na ordem interna e internacional até a virada do milênio.
Contra essa predisposição, porém, contribuiu a própria Carta ao admitir e prever sua revisão ampla após um qüinqüênio de vigência, que se concretizou quando nem mesmo as leis complementares e ordinárias indispensáveis à plenitude do texto constitucional haviam sido aprovadas. Antes, portanto, de aplicada integralmente a Constituição, já a representação nacional era convocada a modificá-la, tarefa que, para sorte ou não do país, não chegou a comprometer o trabalho constituinte, embora algumas poucas mudanças (quatro emendas revisionais apenas) tenham sido adotadas.
A malograda experiência da revisão constitucional rendeu, entretanto, a ocasião e o pretexto para que a idéia da reforma fosse retomada já nos instantes iniciais do primeiro mandato do atual governo, e com amplitude que não se justificava. A persistência no objetivo reformista, que nem sempre priorizou as reformas mais necessárias e urgentes, consumiu até aqui a maior parte do longo período de governo de Fernando Henrique Cardoso, não lhe permitindo fazer fluir realizações de vulto no campo social, na retomada do crescimento econômico e no fomento do setor produtivo e do desenvolvimento do país.
Ao mobilizar a representação política, as entidades civis, a sociedade, e ao empenhar todas as vantagens estratégicas de que dispõe a presidência da República para executar reformas na Constituição, todo esse propósito distanciou o poder público dos flagrantes problemas da população, como o déficit de milhões de moradias, a falência do sistema público de saúde, a grave situação da segurança pública, com o aumento da violência urbana, do crime organizado e do tráfico de drogas, hoje com perigosa e inconcebível infiltração nas instituições nacionais, como se vai demonstrando através de revelações preocupantes feitas ultimamente.
De outro lado, a atitude reformista do governo excitou a imaginação dos congressistas, de tal sorte que se elevaram a mais de 500 as propostas de emenda à Constituição apresentadas por deputados e senadores no transcurso da legislatura passada e já no primeiro ano da atual essas propostas andam pela casa das duas centenas. Somente o presidente da República, a quem a Constituição dá o direito de propor emendas à Constituição como também de ter iniciativas de leis, apresentou 35 propostas.
Tivesse esse processo sido submetido a um cronograma lógico e racional, a reforma política teria sido a primeira a ser proposta e realizada, o que repercutiria no conjunto das instituições nacionais e facilitaria o encaminhamento de mudanças necessárias e urgentes, sem as dificuldades e atropelos que se tem visto e que decorrem, principalmente, da desorganização e fragilidade do nosso sistema político.
Como assinalou o vice-presidente Marco Maciel, em comentários recentes sobre o tema, "os grandes desafios brasileiros e as sucessivas crises por que passamos ao longo de mais de metade deste século, sejam as de cunho econômico, sejam as de natureza social, têm raízes políticas. A estabilidade política, a governabilidade e a eficácia institucional são os requisitos de qualquer processo bem-sucedido de desenvolvimento". Não obstante todos a desejarem, a reforma política não sai do campo da retórica.
E seu leque não é grande. A rigor ela poderia restringir-se a novo formato para a organização dos partidos políticos e para o sistema eleitoral. Seu principal objetivo seria o de assegurar mais legitimidade aos pleitos e maior representatividade aos eleitos. Ou seja, simplesmente fortalecer a democracia representativa.
Os partidos
Feita essa ligeira digressão introdutória, passamos a refletir sobre a organização partidária brasileira. A história de nossos partidos políticos tem pelo menos estas características marcantes: a intromissão estatal nas suas atividades (até recentemente a lei chegava ao exagero de determinar a forma de organização e funcionamento das agremiações partidárias, estabelecendo até dia e hora em que deveriam reunir-se em convenções e quantos membros ocupariam seus órgãos de direção); o domínio dos partidos pelas chefias regionais oligárquicas (estaduais e municipais); o desinteresse que a sociedade tem pelas instituições partidárias; e finalmente a descontinuidade.
A nova Constituição tornou livre a criação, fusão, incorporação e extinção dos partidos políticos, reafirmou seu caráter nacional, consagrou o pluralismo e praticamente acabou com a tutela da lei sobre sua organização e funcionamento, que passaram a ser matéria regulada pelo estatuto partidário. Questões como a da disciplina e a da fidelidade deixaram de ser tratadas na lei para constituir regra estatutária.
Contudo, a liberdade de criar, levada ao extremo, resultou no exacerbamento do pluralismo, e hoje nos vemos diante de um sistema anárquico de pulverização de legendas, mormente no âmbito das assembléias e câmaras legislativas, o que se pretende corrigir mediante regras que reduzam o número de partidos. A chamada "cláusula de barreira", para uns, ou "de desempenho", para outros, usada em muitos países, reintroduzida na mais recente lei eleitoral brasileira (nas vezes anteriores essa regra não saiu do papel), estabelece como condição para que um partido possa ser representado nas casas legislativas a obtenção de pelo menos 5% dos votos apurados na eleição para a Câmara dos Deputados, com um mínimo de 2% em pelo menos nove estados. Essa é a esperança de que seja reduzido o número de partidos.
No mesmo sentido tramitam neste momento no Senado Federal dois projetos. Um, a nosso ver inconstitucional, condiciona à obtenção desses percentuais o recebimento, pelos partidos, de cotas do Fundo Partidário e o acesso ao rádio e à televisão para a difusão de suas idéias. Outro, mais polêmico que o primeiro, proíbe a coligação na eleição parlamentar. Isso, se aprovado, liquidará com grande parte dos chamados partidos pequenos ou nanicos, a menos que se faça a ressalva necessária àqueles que, embora pequenos, têm existência histórica e estão consolidados na consciência de segmentos expressivos da população pelas idéias políticas que sempre defenderam com persistência e coerência. Por exemplo, os partidos de esquerda.
A situação atual de nosso quadro partidário tem sido causa de descrédito do sistema representativo entre nós e de enfraquecimento do Poder Legislativo, pela falta de agremiações fortes, não no sentido de força, mas no de organização e estrutura, e que funcionem com base em compromissos claramente definidos, tanto em relação a princípios doutrinários quanto programáticos, não utilizem métodos condenáveis de ação política e representem anseios legítimos da sociedade ou correntes distintas do pensamento político dentro do organismo social. Partidos que orientem sua atuação coerentemente com as idéias que declaram defender e pregar, que tenham quadros capacitados e vocacionados para o exercício da vida pública e atuação parlamentar consentânea com o programa partidário.
É compreensível que após o restabelecimento do estado de direito e da democracia como conseqüência de processo iniciado em 1979, numerosos partidos viessem a lume, até como fenômeno de reação diante do retrocesso político imposto pelo regime militar à sociedade em 1965 (com o ato institucional número 2, de 27 de dezembro de 1965, que dissolveu os 11 partidos então existentes, e o ato complementar número 4, que instituiu o bipartidarismo com a criação da Arena e do MDB). Mas a pulverização dos partidos representa uma espécie de efeito colateral que tem trazido muito mal ao sistema político democrático que praticamos. Urge, portanto, corrigir essa anomalia.
Com efeito, a multiplicidade de partidos sem coloração ideológica e sem programa definido e responsável, caracterizados pela diversidade de objetivos, fez generalizar a idéia de que a vida política se faz em torno de pessoas, não de idéias e projetos, e de que os partidos não passam de meios para a realização de ambições e programas políticos ou fins individuais. Em vez de ser instrumentos protagonistas ou figurantes do processo democrático, os partidos políticos vão se tornando estruturas burocráticas para a conquista do poder pessoal, com predominância de interesses individuais, grupais e regionais.
Não é de estranhar, portanto, que a existência de partidos fracos, sem identidade programática, sem quadros estáveis e competentes, com pouca ou nenhuma militância e apoiados em bases eleitorais pouco esclarecidas (basta ver que 70% do eleitorado brasileiro é constituído de analfabetos e semi-alfabetizados), conduza ao enfraquecimento da democracia e de suas instituições. Essa constatação vem confirmar a lição tantas vezes repetida por Hans Kelsen, para quem é ilusão ou hipocrisia sustentar que o sistema democrático é possível sem partidos políticos, porque, diz ele, "a democracia é necessária e inevitavelmente um Estado de partidos".
De tal sorte, quando os partidos são atingidos pela crise do Estado, tornam-se vulneráveis a todas essas variáveis antidemocráticas, subordinam-se aos interesses dos poderosos, de grupos econômicos nacionais e transnacionais e deixam-se contaminar pela atmosfera de fisiologismo e barganha que lhes propiciem vantagens imediatas.
Piores ainda são as conseqüências para as instituições legislativas, pois essa situação compromete seu bom funcionamento pela ausência de maiorias estáveis e organizadas, fazendo com que a negociação política em busca do consenso mínimo exija interlocutores variados e assista até à usurpação do diálogo político por corporações ou representantes externos (os lobbies).
Eleições
Falemos agora do processo eleitoral. Ele deve ser considerado pelo menos sob dois enfoques que se influenciam mutuamente. Em primeiro lugar, aparece como mecanismo de efetivação do sistema político-eleitoral e da conquista legítima do poder público, mediante as regras que disciplinam a participação das agremiações partidárias nos pleitos, a escolha e a formalização de candidaturas, o desenvolvimento e autenticidade das eleições e a lisura de seus resultados nos vários níveis. Em segundo, o processo eleitoral deve ser analisado do ponto de vista da sua contribuição para o fortalecimento do regime democrático das instituições políticas, em particular dos partidos e do próprio sistema representativo.
O que se impõe à nossa reflexão é saber se o sistema e o processo eleitoral no Brasil estão servindo à causa da democracia que todos queremos aperfeiçoar e consolidar. Em outras palavras, se a nossa prática eleitoral está em sintonia com o conceito de democracia tal como acolhido na lei fundamental em vigor, a que devem subordinar-se o processo eleitoral e toda a atividade política.
Visto simplesmente como o conjunto de etapas e procedimentos formais das eleições, que vincula tanto o cenário quanto os protagonistas da pugna eleitoral, tendo por conseguinte caráter precipuamente instrumental de viabilização do poder político, nosso processo eleitoral oferece menos atrativo que o exame crítico das suas conseqüências para as instituições e a vida nacional.
Pode-se asseverar que o enfraquecimento das instituições políticas decorre principalmente da queda de qualidade dos partidos e do sistema eleitoral baseado na proporcionalidade da representação, na forma como o praticamos desde 1932, da votação personalizada em que o eleitor não vota numa lista fechada e pré-ordenada, isto é, numa chapa do partido, como acontece nos demais países que adotam o sistema proporcional. O eleitor brasileiro vota em nomes e não em listas partidárias. Na distribuição das cadeiras entre os partidos mediante a divisão do total de seus votos pelo quociente eleitoral, para a definição do quociente partidário, os lugares são preenchidos pelos candidatos na ordem de sua votação individual, não segundo a precedência estabelecida pelo partido. Essa é a grande diferença entre o sistema proporcional que temos e aquele que é praticado com relativo êxito em outros países.
De outro lado, o sistema estimula a luta interna pela conquista do voto, do que resultam inevitáveis a divisão e a instabilidade do partido. Ao defender, em 1960, projeto de sua autoria de modificação do sistema eleitoral, disse o senador Milton Campos: "No regime eleitoral vigente, vem-se tornando insuportável a emulação entre os candidatos do mesmo partido. Os pleitos são espetáculo de desarmonia entre correligionários, comprometendo a coesão partidária".
A esse respeito, o ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, em depoimento recente em comissão do Senado, falou de sua experiência no tempo em que disputava eleições. Disse ele: "A disputa é dentro do partido, pois precisamos ter mais votos do que o outro candidato, não importando os votos que tenha o de outro partido". Ocorre freqüentemente que candidatos a deputado federal, examinada a realidade local, realizem dobradinhas informais com pretendentes de outro partido a cargo estadual, na maioria das vezes ocultando a legenda do partido a que pertencem. Isso porque o voto é uninominal e a disputa se faz com candidatos do mesmo partido.
De tudo quanto vimos observando, o sistema proporcional de lista aberta enfraquece os partidos, reduzindo sua influência sobre os eleitos a uma atuação subordinada à disciplina e fidelidade a diretrizes políticas e programáticas. É de perguntar-se a quem um candidato eleito nessas circunstâncias deve fidelidade: ao partido que apenas lhe deu a legenda ou ao eleitor que ele conquistou com o próprio esforço, aplicando na campanha seu próprio dinheiro? Ou, ainda, se às regiões em que se elegeu ou às corporações e interesses de outra natureza que o apoiaram? É de perguntar-se também se nessas circunstâncias será possível impor a fidelidade partidária num sistema eleitoral como o que praticamos.
A propósito da fidelidade, ela, como a disciplina, é essencial à vida partidária, mas deve resultar de uma atitude consciente do filiado em relação a seus deveres para com a ação e os princípios doutrinários e programáticos do partido, jamais devendo ser compulsória, imposta pela lei, como era no período autoritário.
A fidelidade é um dos temas mais destacados da reforma política da qual tanto se fala e pouco se faz para que realmente aconteça. A idéia é voltar a punir com perda de mandato o parlamentar que deixar o partido pelo qual tenha sido eleito ou que descumprir diretrizes estabelecidas pela direção partidária. Penso que nas circunstâncias atuais, em que os partidos não exercitam a democracia interna na tomada de decisões, e quando na sua maioria são dominados por chefes ou donos e estão atrelados ao governo, a fidelidade assim exigida será mais aos interesses destes do que aos do partido.
A fidelidade deve ser vista como conseqüência e não como causa do fortalecimento das agremiações partidárias. Quanto às constantes mudanças de sigla, quase sempre motivadas pelo oportunismo político ou pragmatismo eleitoral, é preciso criar mecanismos legais que reduzam essa flutuação que desestabiliza e enfraquece os partidos. Defendo que se institua na legislação uma inelegibilidade temporária, tornando desinteressante a mudança. Por exemplo, uma carência de tempo de filiação para concorrer a uma eleição pela nova legenda. Acredito que será um risco simplesmente fechar-se a possibilidade da troca de partido, porque haverá sempre situações incontornáveis que forçarão essa mudança.
Projetos de reforma
Há muito tempo tenta-se sem êxito alterar o sistema eleitoral. A Comissão Temporária Interna do Senado Federal encarregada de estudar a reforma político-eleitoral identificou 15 projetos apresentados somente na legislatura passada, propondo o sistema misto, voto majoritário e proporcional, que aqui conhecemos como distrital misto, para a escolha dos representantes nas casas legislativas. Todos esses projetos, que voltaram a ser discutidos no Congresso, seguem o modelo alemão conhecido como proporcional personalizado, adotado com muito sucesso e responsável por quase meio século de estabilidade política na Alemanha, agora unificada. Por esse sistema, o eleitor vota duas vezes na eleição para a Câmara: na primeira diretamente no candidato indicado pelo partido para o distrito e na segunda na lista partidária para toda a circunscrição estadual. O número de cadeiras que cabe a cada partido é calculado mediante uma regra de três que considera o total nacional de votos em lista, os votos que cada partido recebeu e o número de cadeiras a ser ocupadas. Metade desses lugares será preenchida com deputados eleitos nos distritos e a outra pelos indicados na lista partidária, obedecida a ordem de precedência.
A maioria das propostas até hoje apresentadas ao Congresso visam alterar o artigo 45 da Constituição, que estabelece exatamente o seguinte: "A Câmara dos Deputados compõe- se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada estado, em cada território e no Distrito Federal".
O entendimento dos autores dessas propostas é que somente com a alteração do texto constitucional será possível introduzir o sistema misto majoritário e proporcional. Há outros, entretanto, com visão diversa, que propuseram regulamentação da matéria via lei ordinária, já que o sistema misto não revoga o princípio da proporcionalidade. E certamente porque é mais fácil, em matéria que ainda envolve muita controvérsia e resistência política, aprovar-se uma lei que requer quórum simples do que emenda constitucional que exige o quórum de três quintos.
O presidente Fernando Henrique Cardoso, quando senador, apresentou o projeto de lei 3.993/91, que chegou a ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal em 11 de dezembro de 1992, com base em parecer do senador Josaphat Marinho, em que estabelecia que "a eleição para a Câmara dos Deputados e para as Assembléias Legislativas obedecerá o princípio da representação proporcional", dividido o estado em circunscrições em número igual a metade das vagas de deputados federais a ser preenchidas. Referido projeto é, se não rigorosamente igual, assemelhado ao que propuseram Milton Campos em 1960 e Oscar Dias Corrêa em 1963, isto é, uma combinação de regras majoritárias com proporcionais. O projeto não subverte o sistema da Constituição, ou seja, proporcional, sentenciou o senador Josaphat Marinho no seu parecer. O que significa que não resta dúvida de que, mesmo na forma expressa na atual Constituição, é viável fazer-se alteração via legislação ordinária.
Político, tendo exercido mandato parlamentar nos últimos 28 anos, disputado oito eleições sucessivas, fazendo vida partidária intensa e tendo sido dirigente de partido em diversos níveis, sempre defendi o sistema eleitoral misto como o único capaz de assegurar a estabilidade política e favorecer a formação de maiorias estáveis, sem prejuízo da representação das minorias, que sempre foi o argumento sustentado para manter o sistema proporcional. Na Constituinte e depois, durante a revisão da Constituição, propus sem êxito o distrital misto, combinando o sistema majoritário com o proporcional.
O sistema misto argumentei na ocasião visa à estabilidade institucional por meio da democracia interna partidária. Isso significa que no voto duplo permitido ao eleitor, um em relação ao distrito em que vive e outro em relação a todo o estado correspondente, deixa de haver atritos entre postulantes de cada partido porque o candidato oficial no distrito acaba chegando a essa situação após uma eleição democrática no interior de seu partido. No voto estadual, o eleitor decide sobre as listas de candidatos dos diferentes partidos, formadas por assembléias de delegados. Deixa de haver concorrência entre colegas candidatos do mesmo partido, porque na cédula (hoje na urna eletrônica) colocam-se lado a lado a candidatura distrital e as listas dos diferentes partidos. A disputa torna- se, basicamente, uma luta contra candidatos dos outros partidos. Assim, realiza-se efetivamente a democracia interna partidária.
Enquanto não se forma na sociedade, com repercussão no meio político e parlamentar, o consenso sobre a necessidade e urgência da mudança do sistema eleitoral, o Congresso tem introduzido alterações tópicas na legislação, relacionadas com o processo das eleições e com a organização e o funcionamento dos partidos. Embora muitas dessas alterações tenham sido condicionadas ao casuísmo e ao pragmatismo que parecem inerentes ao exercício da política, mudanças há que contribuíram para a melhoria da prática eleitoral. Entre essas, a introdução dos meios modernos da eletrônica nos procedimentos da Justiça Eleitoral, no alistamento de eleitores e mais recentemente na recepção, apuração e totalização dos votos, bem como regras para disciplinar o uso da propaganda eleitoral e o financiamento das campanhas e a lei de iniciativa popular que estabelece sanções mais rigorosas para a identificação e o combate aos abusos do poder econômico e outras práticas viciosas que comprometem a verdade das urnas. O exame de algumas dessas providências nos permitirá aduzir observações que corroboram a necessidade de avançarmos ainda mais em direção à plena autenticidade dos mandatos e da democracia.
Risco de fraude
No que toca à informatização do processo de votação, é preciso considerar que os recursos técnicos, embora propiciem benefícios que advêm da eficiência dos meios, rapidez e segurança no processamento dos dados, não eliminam de vez a fraude, desde que esta apenas poderá tornar-se mais sofisticada, como alguns episódios havidos em eleições passadas demonstraram. Temos aí o exemplo clássico da Proconsult na eleição de governador do Rio de Janeiro. Não há dúvida de que é possível a fraude nesse processo, principalmente na fase final da totalização. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro atestou essa possibilidade ao informar haver identificado no sistema eletrônico, ou no programa utilizado pela Justiça Eleitoral, seis possibilidades de fraude. Não fora isso um dado real, não estariam tramitando hoje no Congresso Nacional propostas de lei que alteram esse processo, inspiradas em fatos constatados no último pleito.
O senador Roberto Requião, autor de um desses projetos, diz ter consultado especialistas no assunto que lhe apontaram diversas fragilidades do sistema utilizado, como, dentre outras, a possibilidade de o programa-fonte submetido à auditoria dos partidos não ser o mesmo que vai ser utilizado no computador, já que um código secreto pode ser acionado antes, durante ou depois de o programa-fonte ser preparado para a instalação na urna.
A despeito de a legislação haver criado mecanismos para controle das fontes de financiamento e para fiscalização dos gastos de campanha, eles se mostram ainda impotentes diante do conúbio entre o poder econômico e o oportunismo eleitoral. A influência do dinheiro continua a deformar a vontade do eleitorado, e os mecanismos para controle de arrecadação e aplicação de recursos financeiros pelos candidatos ainda se mostram insuficientes, por não eliminarem a ação do "dinheiro invisível" que financia campanhas faustosas, as quais não poderiam ser custeadas apenas com os montantes declarados à Justiça Eleitoral.
A atuação do poder econômico é mais forte à medida que se sobe na hierarquia política do Executivo, indo de prefeito a presidente, e pela mesma forma está colocando nas casas legislativas brasileiras cada vez menos políticos "profissionais", assim entendidos aqueles que se dedicam por inteiro à árdua luta peculiar à vida pública, à defesa dos interesses coletivos ou das comunidades, das questões sociais relacionadas com o bem-estar do povo, completamente devotados às artes e à engenharia da estruturação e do exercício do poder do Estado.
O financiamento das eleições evoluiu nos últimos anos da possibilidade de os candidatos e partidos receberem doações apenas da pessoa física para também poderem arrecadá-la da pessoa jurídica, isto é, das empresas. Na verdade, a novidade está na transparência que antes não existia, uma vez que, embora sendo os grandes e tradicionais financiadores das campanhas eleitorais, os empresários nem tinham limitado o valor de suas contribuições nem revelavam para a sociedade o nome de suas empresas e as quantias doadas, e os candidatos por sua vez não eram obrigados a prestar contas de seus gastos à Justiça Eleitoral.
Legislação recente ampliou a fonte de recursos públicos para os partidos, fortalecendo o Fundo Partidário. Parte desses recursos, estabelece a lei, deve ser aplicada no alistamento e nas campanhas eleitorais de cada partido. O fundo é constituído do produto das multas cobradas dos eleitores que deixam de votar e de dotação orçamentária correspondente, a cada ano, ao número de eleitores inscritos até 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária multiplicado por R$ 0,35. Em 1998 essa dotação foi de R$ 47.511.529,06, dinheiro rateado entre os partidos, 99% na proporção da representação de cada um na Câmara dos Deputados e o restante em partes iguais entre todos os partidos habilitados pela Justiça Eleitoral. Embora possa parecer muito dinheiro, na verdade não é. A cota recebida por cada partido é rateada com todos os seus diretórios nos estados e municípios e aplicada nas campanhas eleitorais de todos os níveis.
Tomemos como exemplo então esse ano de 1998, em que houve eleições gerais de presidente, senadores, deputados federais e estaduais. Quanto do dinheiro recebido os 31 partidos existentes aplicaram em suas campanhas eleitorais? Pouco ou quase nada, certamente. Consideremos o caso do PSDB, cujo gasto declarado somente na campanha de seu candidato a presidente da República foi de mais de R$ 45 milhões. No rateio do Fundo Partidário tocou-lhe a cota de R$ 6.009.277,18 que a lei manda que o partido divida com seus diretórios em todos os estados e municípios e na campanha de todos os seus candidatos. Portanto, a solução não foi encontrada por esse meio.
Poder econômico
Em todo o mundo democrático o financiamento das campanhas eleitorais continua sem uma boa solução ou sem nenhuma. Entre nós foi um avanço a legislação que impôs transparência às doações aos candidatos. Remanesce, porém, sem solução a questão crucial, não apenas da eleição mas do sistema democrático, que é da igualdade entre os candidatos. O doador, pessoa física ou jurídica, é quem escolhe o candidato e estabelece o valor da doação. E não poderia ser de forma diferente, já que a escolha do beneficiário leva em consideração aspectos de afinidade política, ideológica e outros como o de empatia com o candidato. Falando em reunião recente de comissão do Senado que tratava desse assunto, o ministro Carlos Velloso, presidente do Supremo Tribunal Federal, afirmou: "Penso que o abuso do poder econômico, justamente realizando o desequilíbrio entre os candidatos, torna irreal o princípio isonômico, fazendo assim ilegítima a pugna eleitoral".
Freqüentemente temos notícias sobre escândalos na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Espanha, em países grandes e pequenos, importantes ou não, que envolvem candidatos, líderes políticos e autoridades em desvios, manipulações e que tais com o dinheiro da eleição. Entre nós pouco se torna público ou se descobre porque são falhos os mecanismos de fiscalização, e a Justiça Eleitoral à qual a lei encarregou dessa tarefa, seja porque não é vocacionada para cuidar da tomada de contas, seja porque não tem pessoal habilitado para esse mister, não faz uma correta fiscalização.
Isso não significa que no Brasil não aconteça o mesmo que se vê em outros países. Ou até pior. Pessoalmente, sempre entendi que o melhor seria o financiamento público, isto é, que fosse do Estado a responsabilidade maior de prover os partidos e candidatos dos recursos financeiros com que sustentar suas campanhas. Nesse sentido, aliás, há bastante tempo apresentei projeto de lei na Câmara dos Deputados, que foi rejeitado por lhe faltar ambiente político favorável e a compreensão da sociedade das vantagens de decisão dessa natureza. Aquele ambiente se modificou, e parece que a população dá mostras de que deseja mais lisura nas eleições e ter nas casas legislativas representantes eleitos sem os condicionamentos do patrocínio financeiro, que possam atuar com liberdade e independência, comprometidos apenas com a defesa do bem comum do povo e os interesses do país.
Deve-se insistir nessa questão sem a preocupação de pesados ônus para o Tesouro, porque os gastos são perfeitamente suportáveis, e grandes as vantagens que advirão dessa importante mudança na nossa viciada prática política e eleitoral.
Diversos países adotam o financiamento público, uns na forma de subvenção aos partidos, como acontece na Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca, outros mediante o ressarcimento dos gastos do partido com a campanha de seus candidatos e outros ainda que combinam o financiamento público com a contribuição de pessoas físicas e jurídicas. Este último é o modelo alemão. Nele, o montante do ressarcimento é calculado atribuindo-se o valor de 7 marcos a cada voto recebido pelo partido na eleição para o Bundestag (Parlamento), permitindo-se ao partido e ao candidato receber doações de pessoas físicas e jurídicas, exceto as provenientes de fundações públicas ou de associações de interesse público ou profissionais, e as doações anônimas de valor superior a 100 marcos, bem como as oferecidas com manifesta intenção de obtenção de vantagem econômica ou política. Toda doação superior a 20 mil marcos terá de ser declarada, com a identificação do doador.
Nos Estados Unidos o candidato a presidente da República pode optar por receber financiamento público, desde que obtenha 51% dos votos válidos e renuncie a qualquer tipo de recurso privado. Nas eleições para a Câmara dos Deputados, as doações são limitadas e o candidato é obrigado a dar publicidade àquelas superiores a US$ 100. Na França, lei de março de 1988 instituiu o financiamento público tanto para as eleições presidenciais quanto para as dos membros da Assembléia Nacional, em valores bastante expressivos, para que os recursos provenientes de doadores privados não sejam determinantes para a eleição de qualquer dos candidatos.
Direito ou dever?
Outra questão que volta a ser suscitada é o voto facultativo. O ponto central dessa discussão é saber se o voto é um direito, uma função ou um dever. O senador Josaphat Marinho, em artigo publicado na revista de informação legislativa do Senado Federal, observou o seguinte a respeito dessa questão: "Visto que o indivíduo concorre pelo voto para integrar e exprimir a vontade coletiva local, regional ou nacional na escolha de representantes e dirigentes, é lógico que o voto constitui um direito-função. É uma prerrogativa do cidadão, subordinada no seu exercício a fatores transpessoais de ordem pública. Daí a obrigatoriedade do voto em tantos sistemas, entre os quais o nosso, sem oferecer a liberdade de decisão ou de escolha, que é um direito do sufrágio nos regimes democráticos".
A obrigatoriedade do voto é uma tradição no Brasil de mais de 50 anos. Ela foi instituída na Constituição de 1934 e confirmada nas demais Cartas. Em 1967, foi estendida ao alistamento eleitoral, ressalvada aos analfabetos e àqueles que estivessem privados de seus direitos políticos. Em 1988 foi reafirmada na Constituição, sendo facultativa apenas para os maiores de 70 anos e os menores de 18 anos. É, portanto, uma tradição entre nós, e não vejo por que se deva alterá-la. Os defensores do voto facultativo apóiam suas experiências em países da Europa e nos Estados Unidos, de instituições antigas, consolidadas, algo bem diferente do que ocorre entre nós.
Por isso entendo que, num país com as nossas condições e digo até com os níveis de politização que temos, por muito tempo ainda será necessário manter esse sistema. O voto facultativo estimula o desinteresse do cidadão pela política. Ele se esquiva de ter participação, e isso não é bom. Basta ver os países em que se adota o voto facultativo (o exemplo mais clássico é o dos Estados Unidos), onde as eleições têm como característica uma profunda apatia, um desinteresse enorme. E disso resulta o crescimento do absenteísmo. Entre nós isso teria conseqüências graves, porque iríamos eleger representantes e governantes de nível representativo muito baixo, o que não seria bom para o sistema político como um todo.
A proposta do voto facultativo deve ser examinada com muito cuidado. Cito duas observações para reforçar o ponto de vista de que devemos perseverar no sistema do voto obrigatório. Uma é da professora Aspásia Camargo, que diz: "Na rica e democrática Califórnia, o voto facultativo e a crescente ilegitimidade do poder público produziram um perfil surpreendente de seu corpo político. Os que votam hoje são os de raça branca, os mais idosos e os de alta renda. Os negros, os pobres e os jovens ficam de fora". A essa observação junta-se uma do professor Bolívar Lamounier: "Não cabe a menor dúvida de que o comparecimento às urnas cairia substancialmente se o voto facultativo fosse adotado. Pesquisas indicam que cerca de 40% dos eleitores deixariam de votar se o voto não fosse obrigatório, e essa redução seria proporcionalmente maior entre os que precisam participar das decisões públicas para se sentir integrados à sociedade e à cidadania". Acho que há outras reformas mais importantes a ser feitas no processo político, porque não temos condições históricas e até cultura política para adotar esse sistema, que teria graves repercussões nas instituições brasileiras.
Debate
Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.
HÉLIO DE BURGOS-CABAL A palestra de Prisco Viana me conduz a uma indagação: será viável a democracia representativa no Brasil? A condição fundamental para a escolha do candidato é o discernimento. Setenta por cento do eleitorado brasileiro é pobre e analfabeto.
Recordo aqui um ponto fundamental de ordem histórica, que foi a invenção do sistema democrático pelos gregos da Antiguidade. Levados pelos imperativos da lógica e da solidariedade entre os cidadãos, eles criaram a democracia, que é o regime de todos. Mas, como a população de Atenas era grande, reduziu-se o eleitorado a um décimo. Descartaram-se os escravos, os menores, as mulheres, os estrangeiros e os comerciantes. O eleitorado ateniense ficou reduzido a 40 mil representantes que se reuniam na Ágora, a praça pública, e decidiam sobre as propostas do governo.
No Brasil, estamos fazendo exatamente o contrário: ampliamos o eleitorado, mas temos eleitores sem condições para opinar, decidir e principalmente escolher seus representantes. Somos iludidos pela falsa representatividade. O discernimento, que é a capacidade do indivíduo de escolher um outro para representá-lo, é condição sine qua non.
No país a experiência democrática tem revelado uma relativa incapacidade de funcionamento do sistema representativo, o que é constatado por dois sintomas graves. Primeiro, em 77% do período republicano o governo foi exercido por oligarquias e regimes ditatoriais. A oligarquia começou com a Proclamação da República, depois se manifestou com o sistema dos governos estaduais aliados ao presidente da nação, numa curiosa transformação, a seguir com o governo Vargas e por fim com o sistema militar. Tudo indica que não tínhamos elementos para o exercício pleno da democracia representativa. Mas nós, não contentes com a inexistência dessas condições estruturais, as agravamos através do clientelismo e do patrimonialismo.
A causa original de tudo isso é a existência de instituições que favorecem essas tendências contrárias ao exercício da escolha do eleitorado. Vejo nisso o triunfo do individualismo sobre o coletivismo.
MOACYR VAZ GUIMARÃES Sua palestra vem confirmar uma preocupação: a principal reforma a ser feita é a política, tudo mais dela decorre. Há uma série de emendas constitucionais que desfiguram a Constituição, agravando-lhe a falta de um sistema lógico que lhe confira fisionomia técnica e doutrinária perfeitamente definida. São emendas que cuidam de aspectos isolados, sem a preocupação de casarem-se umas com as outras. Nossa Carta continua sendo híbrida, conflitante e paradoxal.
Quanto ao sistema distrital misto, o palestrante disse que há corrente de opinião que defende que ele poderia ser aprovado via legislação e não por emenda constitucional, porque, uma vez que é misto, haveria sempre uma parte reservada para o sistema proporcional. Discordo. O dispositivo constitucional é fechado, é imperativo. Ele fez uma opção, errada ou certa, pelo voto proporcional. Não há como contornar a exigência atual, adotando o sistema misto. Não vou entrar no mérito de sua adoção. Fico apenas na parte formal, e manifesto, infelizmente, minha preocupação pela reforma política, que já perdi a esperança de ver frutificar.
EDUARDO SILVA Tenho alguma simpatia pelo voto distrital misto, mas recebi informações de um diretor da Fundação Konrad Adenauer que me explicou um pouco a razão de ser de sua adoção na Alemanha. O país vivia a necessidade da integração, e montou um esquema racional que garantisse isso. No caso brasileiro, na falta de um grande motivo unificador, o sistema pode não funcionar tão bem. Outra objeção refere-se ao tamanho do distrito. Alguém me disse que os distritos, no Brasil, poderiam ter de 200 mil a 300 mil eleitores. Isso significa que aquele contato mais próximo com o eleitor, que é marcante na Alemanha, onde há distritos menores, não aconteceria.
No caso brasileiro, concordo totalmente com o orador quando afirma que nos falta organização partidária. Mas esse é o mal geral de toda sociedade. Os únicos movimentos que têm boa organização no Brasil são os tradicionais, como o carnaval e o futebol, porque há uma participação quase espontânea das pessoas.
Não basta nos fixarmos na norma, no "dever ser". É preciso também o "querer ser" e o "efetivamente ser". Teremos uma participação política maior à medida que pudermos ser mais atuantes no cotidiano das nossas vidas, nas empresas, nos sindicatos, nas associações.
PRISCO VIANA Se na Alemanha se buscou a racionalidade da representação, aqui devemos utilizar o sistema distrital para melhorar sua qualidade. O que prejudica hoje a qualidade da representação é o voto personalizado. Pelo sistema proposto, aqui comentado, em lugar do voto personalizado teríamos, tanto no distrito quanto na eleição proporcional, o voto da lista partidária. Isso permitiria aos partidos, sobretudo aos bem organizados, qualificar essa lista. Há muitas pessoas que seriam úteis ao Congresso e à nação, mas que não têm vocação, não têm jeito para a conquista do voto e acabam não chegando lá. A vantagem do sistema de eleição por lista, ou proporcional ou distrital misto, é selecionar aqueles que vão representar e expressar melhor o programa partidário e entender as questões e decidir com consciência. Penso que devemos lutar por essa alteração, pois vai melhorar o sistema político brasileiro.
Concordo que aos partidos não deve caber apenas a organização da eleição. Eles têm também um papel pedagógico, cabe-lhes preparar seus quadros para ganhar o pleito e também para gerir o governo. Isso curiosamente veio do regime autoritário, da lei orgânica dos partidos, número 5.682, que os obrigou a organizar institutos de estudos políticos.
Considero a democracia representativa perfeitamente viável no país. Seria absurdo voltar aos tempos da democracia direta. Ainda hoje ela existe em alguns lugares, como certos cantões da Suíça, mas é mais uma curiosidade histórica. O que hoje se busca é combinar algumas práticas da democracia direta no sistema representativo. A democracia representativa será mais eficaz se criarmos condições para isso. Daí as reformas políticas que se pleiteiam nos sistemas partidário e eleitoral, além, é claro, de uma melhoria nos níveis de educação do povo.
BURGOS-CABAL Com 44 partidos registrados na Justiça Eleitoral e 19 na Câmara, não há possibilidade de atingirmos uma condição fundamental para o funcionamento do Legislativo.
PRISCO VIANA Acredito que o bipartidarismo seria também uma solução extrema e difícil de adaptar ao país. O Brasil é muito diversificado, e é difícil conter em duas correntes todo o pensamento político do país.
VAMIREH CHACON A respeito dos partidos, eu me preocupo, do ponto de vista metodológico, sempre com um ponto de partida: vivemos teimando que devemos ter no Brasil partidos ideológicos. Acontece que há uma diferença entre ideologias e idéias. Não é o caso de aprofundar isso aqui. Na realidade, o parlamentarismo, por exemplo, é programático no PSDB e no PPS. Mas, na prática, nenhum dos dois partidos tem se empenhado nisso, porque não convém aos seus interesses concretos. O PMDB, curiosamente, tem logo de saída, como um dos seus pontos fundamentais, o nacionalismo. Entretanto, comportou-se, nas privatizações recentes, de maneira mais indiscriminada, igual a qualquer outro partido. Estou me referindo a partidos, pessoas jurídicas e não físicas. Fico sempre a perguntar se não conviria muito mais às elites políticas e aos formadores de opinião reconhecer a conveniência dos partidos de interesses, como nos Estados Unidos, em vez de partidos de idéias, à maneira européia.
Aliás, partidos de idéias à maneira européia estão com cada vez menos idéias. O que Tony Blair está fazendo? A continuação de um programa de contenção fiscal iniciado por Margaret Thatcher diante dos déficits crescentes e contumazes do Estado previdenciário herdado de épocas anteriores.
A população brasileira tem uma grande mobilidade, mais vertical, mas também horizontal. Ela muda de cidade, de estado, de região, de emprego. Aposentado, entre nós, necessariamente não se recolhe à vida privada, quase sempre vai fazer outra coisa. Aliás já fazia antes duas ou três simultaneamente. Então como é que se vai fazer partido ideológico nessa base tão fluida, se quem tinha base sólida não tem mais, como é o caso da Alemanha, da Inglaterra e outros países?
Em Pernambuco, quem imagina que Miguel Arraes é líder das classes C e D nunca se deu à pachorra de ler um mapa eleitoral do estado. Ele na realidade tem votação nos grotões, mas perde na cidade do Recife. Arraes lançou o neto como candidato a prefeito, quando era governador, e numa lista de sete candidatos ele chegou em penúltimo lugar. Perdeu nos bairros A, B, C e D da capital e do Grande Recife. Arraes tem votos nos grotões e é tido ideologicamente como de esquerda. Não dá para fazer partido ideológico nessa base.
Conclusão: assumindo a consciência e até a autocrítica de que os partidos que predominam são os de interesses, os partidos ideológicos daqui são nanicos. E não só de esquerda como de direita. O antigo Partido de Representação Popular, o Integralista, era um grupo pequeníssimo. O Partido Democrático Cristão, a que pertenci, era um grupo pequeníssimo, para não citar outros. Os comunistas continuam pequenos, e não só no Brasil, em qualquer lugar do mundo. Onde inclusive jamais foram reprimidos, como na Inglaterra, eles ficam com 1% ou 2% no máximo do eleitorado. A imensa maioria prefere os partidos de interesses.
Quanto ao fechamento dos partidos brasileiros, essa é uma tendência no mundo inteiro. Um dos principais discípulos de Max Weber, Robert Michels, foi o primeiro a enunciar a chamada lei de ferro dos partidos. Estes tendem a oligarquizar-se. O partido comunista da União Soviética, segundo a Enciclopédia britânica, nunca teve mais de 5% da população. O de Cuba tem 6% ou 7%, o da China também. Intencionalmente não quiseram passar disso.
Temos evidentemente uma tendência análoga de oligarquização. Por isso é perigoso o voto distrital que é adotado na Alemanha, isto é, 50% dos votos no distrito e 50% em lista partidária. Lá também se fala contra a "partidocracia". Não é só na Venezuela de Hugo Chávez, onde dois partidos, a Acción Democrática e o Copei, também se equivalem, e o jogo eleitoral está se transformando numa ação entre comadres, com certa ineficiência. A política européia também é uma ação entre comadres. É claro que, com mais transparência, a sociedade civil é mais consciente e, portanto, a situação é mais suportável pelo menos até agora, embora tenha entrado em colapso na Alemanha e na Itália por outros motivos. Parece muito mais prudente no Brasil o voto misto distrital proporcional. Nas eleições proporcionais, em vez de lista partidária, que os candidatos a deputado estadual e federal tenham votos no seu distrito e no estado inteiro. É um risco menor que se corre, embora onde está o homem esteja sempre o perigo. Não existe nenhuma fórmula perfeita. Aliás, graças a Deus.
FÉLIX S. MAJORANA Lecionei algum tempo em Barretos (SP) e fui testemunha de um fato interessante. Um prefeito se elegeu comprando todos os votos e, depois que tomou posse, àqueles que o procuravam pedindo qualquer coisa, dizia: "Eu não lhe devo nada, pois seu voto foi pago".
Com relação aos partidos, fui presidente do PTB de Santo André (SP), e posso afirmar que, efetivamente, o partido não tem força alguma. O dono do mandato é o eleito, e conseqüentemente o partido nada pode fazer contra ele. Se é expulso, pouco se importa, pois acha outro que o agasalha. Então talvez a proposta do palestrante seja uma solução: para o partido ter força, o mandato deve, pelo menos parcialmente, lhe pertencer. Há partidos em que o presidente toma conta do horário político sozinho.
Outra coisa. Não sei se entendi bem, mas na regra proposta para a redução dos partidos já houve uma exceção: vamos diminuir os partidos que não tenham certo coeficiente eleitoral, mas alguns que têm tradição permanecem. Ora, ou aplicamos a aritmética ou o sentimento. Aritmética e sentimento são óleo e água, não se misturam.
Quanto ao voto obrigatório, penso que votar é um direito do cidadão, não um dever. Então sinto-me extremamente ferido ao ser obrigado a votar. Ora, é um direito que tenho. Se não quiser usar, problema meu. Depois não posso reclamar. Não seria interessante excluir essa obrigatoriedade? Claro que o eleito só seria efetivamente diplomado se alcançasse certo percentual de votos em relação ao total do colégio eleitoral. Para não haver o risco de uma pessoa se eleger com 2% dos votos de uma cidade ou estado.
OLIVEIROS S. FERREIRA Se o problema da democracia repousa nos partidos, eu lhe pergunto: qual é o princípio que deve predominar na organização dos partidos, o da autonomia ou o da heteronomia, o estatuto ou a lei? Do meu ponto de vista, o estatuto pode entregar o partido a um oligarca. A lei pode impedir que isso aconteça. Tenho a impressão de que no período autoritário se cuidou pelo menos de dar às minorias certa representatividade nas direções estaduais e nacionais.
Segunda pergunta: se conhecemos a disparidade dentro do país, por que insistir em partidos nacionais? Terá sido a criação de 1946 uma reação a São Paulo que já se manifestava na Constituinte de 34, quando se convenceu Góis Monteiro a aceitar representação proporcional para combater São Paulo? Será o combate a São Paulo e a Minas Gerais, à política do café com leite, uma razão para a criação de partidos nacionais, que, sabemos, são impossíveis de funcionar?
Agora uma questão mais filosófica. Em 1964, 11 partidos estavam se acabando pela fusão em frentes parlamentares em função de ideologia, doutrina ou pontos programáticos. Por que isso não acontece mais hoje? Será que não há mais pontos programáticos que possam unir alguém do PSDB ou do PFL com o PMDB? Ou as ideologias de fato acabaram?
Última pergunta: temos lideranças políticas expressivas, como você mesmo disse, que são contra o atual sistema, seja partidário, seja eleitoral. Há no mundo acadêmico reação ao atual sistema partidário eleitoral, assim como na mídia. E ele persiste. Por quê?
PRISCO VIANA Concordo que os partidos e seus representantes nunca agem segundo seu programa e idéias. O partido que está no governo não age rigorosamente de acordo com o compromisso programático da legenda. O PFL, por exemplo, ultimamente tem assumido posições diametralmente opostas àquilo que sustenta na carta de princípios, no seu ideário, assumindo inclusive no plano econômico posições que até negam seu compromisso liberal. Isso acontece porque, na ação política dos partidos, lamentavelmente funcionam o oportunismo e o pragmatismo. Nos documentos, o partido pode expressar determinadas idéias, mas no momento de exercer o poder abandona-as para assumir uma atitude mais pragmática. Isso deforma o sistema político, impede que essas idéias se tornem realidade. O ideal seria que o partido vitorioso se esforçasse para tornar realidade, através de sua ação e conduta, as idéias que pregou e que deveriam ser a razão principal para arregimentar adeptos e ganhar as eleições. Estamos muito distantes disso.
Quanto ao voto obrigatório, o que a lei obriga é a comparecer, não a votar. Pode comparecer e votar em branco, o que significa não votar, e anular o voto. Quanto à questão da redução dos partidos, não sou defensor dessas idéias a que me referi. Disse que são idéias de criação de cláusulas de barreira que estão tramitando no Congresso. A redução dos partidos se daria pelo sistema eleitoral. Se partíssemos para um sistema de eleição não personalizada, fortalecendo mais os partidos, acabaríamos impedindo as minorias de se representar. O exemplo alemão sempre citado resguarda as minorias. Elas se representam pelo sistema que chamam de proporcional personalizado.
Então chegaríamos à redução dos partidos via sistema eleitoral.
O professor Oliveiros coloca questões muito interessantes. Partidos nacionais. Confesso que sinto certa dificuldade de dar uma resposta precisa a esse respeito. Não perderíamos a unidade de ação do partido se ele deixasse de ser nacional?
OLIVEIROS A UDN perdeu? Era nacional no nome.
PRISCO VIANA Assim o partido acabaria se subordinando a interesses localizados e perderia de vista a questão nacional. Seria um retrocesso voltarmos à prática dos partidos regionais. Entendo que o partido precisa ter autonomia para se organizar. Ele não deve sofrer interferência da lei.
JOSEF BARAT A preocupação que tenho é com relação ao fortalecimento dos partidos e da estabilidade política. Temos visto uma série de episódios que mostram que as direções partidárias de fato caminham, até aceleradamente, para uma concepção oligárquica e autoritária da própria estrutura do partido. Há uma espécie de conivência, tanto do Legislativo quanto do Executivo, com relação a isso.
Recentemente ocorreu um episódio com um dos ministros, que é do PMDB. Por uma série de razões, o presidente da República, que é o chefe desse ministro, disse publicamente que não podia fazer nada porque ele era um ministro do PMDB. Portanto, cabia ao PMDB se desfazer desse ministro, não a ele, presidente da República. É uma situação no mínimo extravagante e que não decorre do sistema, decorre do presidente. Mais: pensou-se num imposto único sobre combustíveis, que teria um novo nome, e a imprensa se refere a esse imposto como "o imposto do PMDB". Por esse motivo, o PFL é contra o imposto, não por razões conceituais mas porque ele vai favorecer a um partido antagônico numa próxima eleição.
PRISCO VIANA O presidente Fernando Henrique foi muito competente ao reunir em torno de seu governo a maioria mais expressiva da história da Câmara. Hoje, ele é incapaz de motivar e de mobilizar. Não há nessa maioria nenhum fanático pelo governo. E essa incapacidade de mobilizar abriu espaços. Em política não há espaços vazios. Se ele não tem capacidade de liderança, os espaços são ocupados e os partidos se impõem. O presidente falhou ao instituir um sistema de cooptar errado. Ele não agregou pelas idéias e pelo programa mas por interesses. Hoje, na Câmara, negocia-se não apenas o projeto mas o artigo individualmente, o parágrafo. Para tudo há uma negociação que envolve interesses.
BARAT E a população, ao não sentir confiança nos partidos ou não poder participar da vida partidária, começa a escolher caminhos não-partidários, as organizações não-governamentais, as entidades civis, que se fortaleceram muito no Brasil. Dizia-se, na época do regime militar, que o crescimento dessas organizações se devia à incapacidade de dar vazão ao pensamento político nos partidos. Mas depois do período militar, com o regime plenamente democrático, essas organizações continuam fortes e vêm se ampliando cada vez mais. Não há aí certa contradição entre a busca que a sociedade tem de se manifestar e a dificuldade que os partidos têm de expressar essa necessidade de manifestação? Por exemplo, hoje a sociedade brasileira é urbanizada, com reivindicações altamente diversificadas, e talvez a maioria dos partidos ainda esteja restrita ao meio rural, a necessidades de 30 anos atrás. Essa busca de novas formas de organização não prejudicaria também os próprios partidos, já que a participação se reduz muito?
PRISCO VIANA Elas resultam do mau funcionamento do partido. Ele é que deve ser o grupo de pressão.
BARAT Mas objetivamente não é. Então procuram-se outros canais.
PRISCO VIANA O partido deve representar interesses e aspirações.
BARAT Nesse sentido seria um partido de interesses, quer dizer, interesses urbanos, de grupos.
CHACON Interesses de classes sociais, segmentos de classes, regiões, municípios.
PRISCO VIANA Esse é o papel do partido. Quando ele falha, os grupos de pressão se organizam. O ideal seria, por exemplo, um partido comprometido com a agricultura para que não houvesse uma bancada ruralista.
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