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A terra dos seringais

Foto: Cynthia Brito / Pulsar

Governo do Acre enfrenta narcotráfico e tenta modernizar o estado

HERBERT CARVALHO

No final do século 19 uma revolução armada de seringueiros e seringalistas mudou, pela última vez até agora, o tamanho do Brasil. Embora pertencesse à Bolívia e, em menor parte, ao Peru, o atual estado do Acre – nossa extrema fronteira a oeste, que durante o horário de verão registra três horas menos que a hora oficial de Brasília – já estava ocupado havia décadas por migrantes nordestinos, principalmente cearenses. Não é por acaso que as principais avenidas da capital Rio Branco e de outras cidades acreanas se chamam Ceará e Fortaleza.

A Amazônia vivia então o auge do ciclo da borracha, antes que os ingleses contrabandeassem 75 mil mudas de seringueira para a Malásia, com a desculpa de que se destinavam aos jardins e à coleção da rainha. A decadência acelerou-se com a obtenção da borracha sintética, derivada do petróleo, em substituição ao látex de origem vegetal. Então o Acre, mais ou menos como a Macondo de Gabriel García Márquez, foi condenado a cem anos de solidão.

Depois de passar a maior parte do século 20 na condição subalterna de território, com autoridades nomeadas pelo governo federal, o Acre emergiu subitamente do esquecimento para as manchetes da imprensa mundial. Em 1988 o seringueiro e ecologista mundialmente reconhecido Chico Mendes (ver texto abaixo) foi morto numa tocaia armada por fazendeiros, que a exemplo do velho oeste americano desmatavam a floresta, para dar lugar a pastos de criação de gado, privando os índios e demais nativos de sua economia extrativista e de recursos naturais para a sobrevivência.

A disputa por espaço não foi, entretanto, a única conseqüência nefasta dos regimes militares, que durante os anos 70 incentivaram uma colonização selvagem, oferecendo, aos excedentes populacionais do sul do país, no lugar da reforma agrária que prometeram e nunca fizeram, a ocupação de áreas pretensamente "vazias". Era o tempo do "Brasil grande" e da rodovia Transamazônica, delírio faraônico que acabou engolido pela mata, não sem antes deixar um rastro de doenças venéreas e de expropriação de terras que aprofundou, ao contrário do que se anunciava, o atraso secular da região.

Sob o domínio do tráfico

Foi no caldo de cultura desse atraso, como nos vizinhos Bolívia, Colômbia e Peru, que floresceu o crime organizado, não produtor mas distribuidor de narcóticos para o sudeste do país e para o mundo, simbolizado pela figura sinistra do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal. Sua expulsão do Partido da Frente Liberal (PFL), a cassação de seu mandato e sua posterior prisão revelaram a uma estarrecida sociedade brasileira que no Acre não havia mais fronteira entre polícia e crime, em suas formas mais selvagens.

Hildebrando foi o comandante da Polícia Militar do Acre e hoje está detido no quartel-general da força que comandou, acusado por seus próprios comparsas de usar, quando no poder, a motosserra não apenas para o desmatamento, mas literalmente para decepar pernas e braços de seus ex-companheiros de crime.

Do outro lado dessa chaga social está um engenheiro florestal, o governador Jorge Viana, eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Entrevistado por Problemas Brasileiros, ele afirma: "O Acre tem sua identidade, conquistada no passado por heróis como Galvez e Chico Mendes, e não tem medo de perdê-la".

Quanto a Chico Mendes, outdoors espalhados por todo o estado reafirmam essa identidade com uma foto do seringueiro ao lado de uma criança, e dizeres do Hino nacional: "Paz no futuro e glória no passado".

Preocupado com a economia do estado, o governador acredita que o extrativismo primitivo praticado pelos seringueiros e o cultivo da castanha (dita "castanha-do-pará" só porque sempre foi exportada pelo porto de Belém, apesar de sua produção se concentrar no Acre) podem se harmonizar com a revolução tecnológica imposta pela globalização. "O certificado de origem de ‘produto da floresta’ hoje tem mercados garantidos em todo o mundo." Ele condena o apego a interesses regionais na reforma tributária, diz estar a favor do ICMS federal e rechaça a guerra fiscal: "A reforma tributária deve ampliar o número de contribuintes e reduzir a carga sobre os que produzem. O Acre quer competir com o mundo, e não com os estados brasileiros".

 

Presença de Chico Mendes

Distante 200 quilômetros de Rio Branco, a região administrativa de Xapuri revela toda a imensidão amazônica em termos demográficos. É uma população de 13.756 habitantes em uma área de 4.724 quilômetros quadrados. Da rodovia, asfaltada, já não se vê sinal de floresta: sucedem-se os pastos formados a partir de queimadas, das quais são tristes sobreviventes troncos de árvores retorcidos e sem folhagem, mas que insistem em homenagear a natureza com esculturas de galhos mortos. Uma, duas ou no máximo três fazendas da região têm mais cabeças de gado do que o conjunto da população.

Na área urbana de Xapuri, os carros de boi revelam uma paisagem parada no tempo, confirmada pelos quadros do salão de entrada da prefeitura local, que destacam os imperadores Pedro I e Pedro II e a princesa Isabel. Os desempregados ocupam a avenida principal da cidade com o comércio informal, cujas barracas, cobertas por plásticos negros, não diferem em nada, a não ser pela ornamentação de palmeiras ancestrais, das dos camelôs das grandes cidades.

A lembrança de Chico Mendes está na casa onde viveu e morreu, no memorial construído em sua honra, nas palavras de ordem na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e em um retrato na frente da igreja matriz, onde seu corpo foi velado. A cidade é um espelho, que reflete mais a impunidade dos que o mataram do que as transformações pelas quais lutou. A não ser pela sempre presente castanheira desenhada nas paredes externas de hospitais e escolas, anunciando que agora o Acre tem um "governo da floresta", inspirado no legado do mais famoso ecologista brasileiro.

 

A revolução acreana

O Tratado de Tordesilhas (1494), que fixou limites para a expansão das colônias de Portugal e Espanha na América do Sul, nunca foi respeitado de fato. As fronteiras entre Brasil e Bolívia, por exemplo, somente foram acertadas definitivamente em 1903, após uma série de escaramuças pela posse do território do Acre.

Em 1867 foi assinado o Tratado de Ayacucho, pelo qual os bolivianos tomavam posse da área. Mas em 1899 um grupo de seringalistas brasileiros, que trabalhavam na região, iniciou movimentos armados pela posse do território. Um desses movimentos, chefiado pelo espanhol Luis Galvez, funcionário do consulado boliviano em Belém, proclamou a República do Acre. A nova República, presidida pelo próprio Galvez, durou oito meses, e foi extinta pelo presidente brasileiro Campos Sales, que acatou os protestos da Bolívia.

A ação vitoriosa de posse foi dirigida em 1902 pelo gaúcho José Plácido de Castro, que conquistou Puerto Alonso em fevereiro do ano seguinte. O território era então administrado por um truste anglo-americano, o Bolivian Syndicate, que dispunha de forças policiais e frota armada. A partir de então, a questão passou a ser tratada pelo barão do Rio Branco, por via diplomática, e somente foi concluída no governo do presidente Rodrigues Alves. Pelo Tratado de Petrópolis (1903), o Brasil comprou o território da Bolívia por 2 milhões de libras esterlinas, incluindo-se no negócio pequenas áreas no Amazonas e Mato Grosso.

Outro tratado, assinado com o Peru em 1909, finalizou acertos de limites e anexou definitivamente o Acre ao Brasil. O território passou a estado em junho de 1962.

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