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O mistério dos suicídios

Foto: Célia Thomé

Ninguém sabe com certeza por que tantos caiovás se matam

SPENSY PIMENTEL

Um dos assuntos indígenas mais presentes na mídia nos últimos anos foi um fenômeno triste e misterioso: a extraordinária freqüência de suicídios entre os guaranis de Mato Grosso do Sul. Nas duas últimas décadas, dentre uma população de 25 mil guaranis no estado, houve mais de 300 mortes, por enforcamento ou envenenamento – uma contabilidade sinistra, sistematicamente atualizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ONG ligada à Igreja Católica. Nas reservas da região, é difícil encontrar um guarani que não tenha um caso a relatar, seja na família, seja entre amigos e vizinhos.

Uma estranha peculiaridade é que, embora haja diversas outras etnias no estado, que tem a segunda maior população indígena do país – só atrás do Amazonas –, os suicídios concentram-se entre os guaranis.

O problema também está delimitado geograficamente. Os guaranis, que costumam ser subdivididos em três grupos – caiová, nhandeva e mbiá –, vivem em quatro países sul-americanos e sete estados do Brasil. No entanto, a incidência incomum de suicídios se restringe a uma região cortada ao meio pela fronteira entre o estado de Mato Grosso do Sul e o Paraguai, onde estão quase todos os caiovás e parte dos nhandevas.

Nos últimos anos, dezenas de cientistas sociais, jornalistas, políticos e religiosos visitaram a região em busca de uma explicação para o fenômeno. Como resultado, já se formularam hipóteses de todo tipo, privilegiando os mais diversos aspectos: culturais, fundiários, demográficos, econômicos, religiosos e até passionais.

Sim, passionais. Alguns intelectuais podem não dar importância a esse fator, mas depoimentos relacionam muitas das mortes a desentendimentos amorosos, ocasionados por traições ou casamentos forçados – e fica-se sabendo dos namorados que se enforcaram juntos, no mesmo galho de árvore, um em cada ponta da corda (nem Shakespeare seria tão trágico). Há moças de honra ferida, estupradas na calada da noite nas muitas estradas de terra da região. Sem perspectiva de justiça, em aldeias onde as autoridades tribais são cada vez mais desprestigiadas, elas preferem morrer.

E há também assassinatos disfarçados de suicídios. Às vezes grosseiramente, como no caso de corpos cheios de hematomas e de cabeça arrebentada – mas com uma corda no pescoço, como se ela explicasse tudo –, ou no de um homem encontrado "enforcado" numa bananeira, árvore incapaz de sustentar uma rede de dormir.

A tese de mestrado da antropóloga Roseli Arruda, da Universidade Federal de Pernambuco, divulgada em 1997, reuniu evidências de que pelo menos 28 mortes não tenham sido suicídios. Uma particularidade estatística reforçou a hipótese: em média, dois em cada três "suicidas" têm entre 12 e 25 anos. Destes, uma boa parte é de homens precisamente na faixa etária em que o guarani pode se casar e receber da família um pedaço de terra. Como se verá mais adiante, no caso da reserva de Dourados (Francisco Horta), não é absurdo levantar a suspeita de homicídio. Mas o problema é estender essa tese a todas as mortes.

Outra explicação sempre evocada nos depoimentos dos índios é o alcoolismo. Na estrada que corta a reserva de Dourados, é espantosa a quantidade de índios estirados pelo asfalto que se pode encontrar aos domingos pela manhã. Invariavelmente o álcool aparece nas histórias que terminam em suicídio, seja no momento da morte, seja num instante anterior, em que detone uma traição conjugal ou um ato de violência. "É um problema gravíssimo", lamenta o antropólogo Rubem Thomaz Almeida, que trabalha há 23 anos com os guaranis.

A cultura guarani tradicional conhecia as bebidas fermentadas (que eles chamam de chicha) e permitia inclusive seu uso diário, no ambiente familiar, sem que necessariamente houvesse uma reunião sagrada ou profana. O problema começou com a chegada da aguardente de cana, uma bebida com teor alcoólico muito maior.

Versão guarani

Entre os próprios guaranis, povo muito religioso, é forte a presença de explicações de teor espiritual para o fenômeno. Há, por exemplo, relatos de parentes mortos que teriam "voltado" para induzir os entes queridos ao suicídio.

Outros culpam os feitiços. Pela tradição guarani, um pajé (por eles chamado de nhanderu, ou "nosso pai") ou mesmo uma pessoa comum pode perfeitamente provocar um suicídio, desde que conheça a "reza" adequada.

Mas a explicação religiosa mais profunda é outra, segundo o padre jesuíta Bartolomeu Meliá, um dos mais importantes estudiosos da cultura guarani, que hoje reside em Assunção, no Paraguai. "Os nhanderu argumentam que os que se matam fazem-no por não terem mais como participar da religião tradicional, que simboliza exatamente o ponto central para a constituição da comunidade guarani. Porque, para esse povo, a fala é o dom de Deus por excelência. O guarani é sua fala, é seu nome. Quando ele não participa das rezas com seu grupo, diz-se que ele está se afastando da verdadeira fala. Quem se mata é porque não tem motivação para falar mais, e então prefere morrer", diz o jesuíta.

O abandono da religião tradicional também costuma ser relacionado ao trabalho das 30 igrejas evangélicas espalhadas pela reserva. Os pastores – brancos ou indígenas – tacham os nhanderu de demoníacos e condenam os poucos fiéis que ainda se atrevem a freqüentar as rezas promovidas por eles.

Esse tipo de pregação colaboraria ainda mais para a desmoralização dos pajés, que, na cultura guarani, não só são responsáveis pelo poder religioso, mas, como patriarcas, constituem também o centro da vida familiar e, por conseguinte, da política.

Confinamento

Segundo Rubem Thomaz Almeida, não é possível, no entanto, estabelecer correlações que considerem apenas a alta densidade populacional ou a presença de igrejas evangélicas – ele até compra a polêmica ao declarar que a atuação dos pentecostais pode, muitas vezes, funcionar no combate ao alcoolismo.

No entanto, por mais complexo que seja o tema, o antropólogo insiste na importância da terra, que entende ser a questão crucial. "Qualquer outra medida que não inclua a demarcação de mais áreas para os guaranis não passará de um paliativo. Com a retomada de terras, a aldeia tem a possibilidade de se reorganizar economicamente. É preciso dar as condições para que eles mesmos definam seu destino."

Há 200 anos, caiovás e nhandevas ocupavam boa parte do sul do estado, com uma área de quase 9 milhões de hectares. Hoje, somadas as 24 áreas guaranis da região, eles têm menos de 5% de seu território original.

Nos 3.475 hectares da reserva de Dourados, concentram-se pouco mais de 6 mil índios – cerca de meio hectare por pessoa. É uma das mais populosas reservas guaranis e também a mais problemática. Quase 50% dos suicídios indígenas registrados no estado nos últimos 15 anos aconteceram ali. Originalmente, a área ficava a 5 quilômetros da cidade, mas hoje ela já foi engolida pela expansão urbana.

O aspecto das casas não lembra uma reserva indígena, mas um bairro pobre qualquer. Os mais miseráveis fazem as casas com lonas e pedaços de madeira que coletam no lixão da cidade. Mesmo quem dispõe de madeira para fazer um rancho tem que cobrir o telhado com o fraco capim-colonião, porque o sapé também já acabou por ali. As condições de higiene são precárias, a tuberculose é quase epidêmica e já se tem notícia até de um caso de morte por Aids.

O historiador Antonio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande (MS), utiliza em sua tese de doutorado um termo bem apropriado para definir o que significou para os guaranis de Mato Grosso do Sul a política de desaldeamento e remoção para as reservas ao longo deste século: confinamento.

"E o confinamento, para qualquer ser humano, pode gerar perigosos transtornos mentais, porque traz a segregação, o isolamento", completa o psiquiatra Eduardo Ferreira Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP).

"Changa"

O pior é que, premidos pelas dificuldades financeiras e sem estímulo para cuidar do plantio, os guaranis acabam reduzindo ainda mais seu espaço nas reservas. Em troca de um ou dois salários mínimos mensais, muitas famílias cedem o cultivo de seus lotes por até dois anos. Quase 40% das terras da reserva de Dourados estão arrendadas para fazendeiros brancos.

Lideranças guaranis acusam índios ligados ao capitaneado (ver texto abaixo) de intermediar os contratos de arrendamento, recebendo comissão em troca.

A outra grande desgraça para a organização econômica guarani na região atende pelo nome de changa. Trata-se do trabalho nas fazendas fora da aldeia, mediante contrato. Um intermediário, chamado "cabeçante", recebe uma comissão por cada trabalhador que arregimenta. Geralmente, o capitão da reserva também cobra uma "taxa comunitária" sobre esses rendimentos. Em troca de dois ou três salários mínimos, o guarani passa de 40 a 60 dias fora de sua terra. As usinas de álcool são as principais contratadoras, mas há até mesmo quem viaje para lavouras de maconha no Paraguai. Nas épocas em que os jovens trabalhadores retornam às aldeias, o aumento dos índices de violência é preocupante. Em contrapartida, os períodos em que as fazendas e usinas contratam menos e centenas de jovens desocupados vagam pelas aldeias coincidem com o aumento dos suicídios.

Na aldeia Piraquá, encravada entre Antônio João e Bela Vista, municípios da região da fronteira com o Paraguai, a changa não é permitida. "É o primeiro passo para começar a ter problemas na aldeia. O homem sai, não cuida da família nem das plantações, deixa a mulher sozinha, um dia ela vai a um baile, toma umas pingas, acaba agarrada com outro. Ele chega à aldeia, fica sabendo e se mata. Já vi muito disso", diz o caiová Jorge Gomes, um dos líderes locais.

Terra sem Males

Jorge recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros, que visitou a reserva em boa companhia: Edna, Roberto e Fabiano, filhos e primo de Marçal de Souza, um famoso líder guarani assassinado em 1983, justamente quando lutava pela demarcação de 2 mil hectares de terras no Piraquá.

Como Roberto e Fabiano, Edna mora em Dourados. É professora, e atualmente, além de continuar a militância do pai, coordena um programa de ensino primário bilíngüe em escolas guaranis. Para ela, a Terra sem Males – o paraíso da religião guarani – deve ser bem parecido com o Piraquá.

Não é difícil entender por quê. O contraste com a realidade de Dourados é muito forte. São 2.384 hectares para pouco mais de 250 índios – quase 10 hectares por pessoa, proporção 20 vezes melhor que a da reserva Francisco Horta. A cidade mais próxima fica a mais de 50 quilômetros, por estrada de terra. Plantam-se milho branco (sagrado para os guaranis), mandioca, melancia, feijão, arroz e abóbora, além de diversas frutas. Um rebanho comunitário de 95 cabeças de gado zebu fornece carne e leite. Também há galinhas e porcos, além de uma considerável reserva de mata nativa, onde ainda se caçam pacas, tatus, cutias, capivaras e até antas. O rio Apa marca os limites da reserva, em toda a sua extensão.

Roberto e Fabiano aproveitaram a ocasião. Mal apareciam na casa de Jorge. Tomavam banhos de rio, pescavam, caçavam e se embrenhavam pelo mato. "Vou levar esse rio para casa", brincava Roberto.

Edna não se continha: "Parece que estou revivendo a minha infância... Isto aqui é igual à reserva de Dourados em outros tempos". Mas quando se demonstrava entusiasmo excessivo com as condições de vida por ali, Jorge advertia: "Também há alguns patrícios passando necessidade... Mas, verdade seja dita, nada que se compare ao que tem acontecido em Dourados".

De fato, há no Piraquá casos de alcoolismo, problemas de assistência médica e, sim, alguns suicídios – segundo o Cimi, foram seis entre 1986 e 1997.

"Está vendo aquela curva do rio lá? Tinha uma casa, onde uma menina se enforcou, ninguém soube por quê. Muito tempo depois a avó dela me contou que era porque ela estava grávida do próprio pai... Outra vez, um homem um dia bebeu muita chicha de cana numa festa, foi bêbado para casa e também se matou."

Os suicídios em áreas como o Piraquá são mais um reforço contra as análises simplistas em torno das mortes. Quanto mais se mergulha no assunto, mais longe parecem ficar as explicações.

Mas há quem veja sentido no próprio caráter misterioso do fenômeno. Para o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, que publicou o livro Canto de morte kayowá, com os suicídios os guaranis estão passando um recado. A obra de Sebe remete a um aspecto também acentuado pelo padre Meliá: se a voz e a palavra são o mesmo que a alma, é bastante significativo que os suicidas morram pela garganta (no enforcamento) e pela boca (no envenenamento).

Na interpretação do historiador, essa morte "ritualizada" não seria apenas um fenômeno formado pela soma de gestos individuais, mas um movimento coletivo, "uma forma de diálogo vivo com a nossa sociedade", diz Sebe. "E eles estão sendo ouvidos?", pergunta o repórter. "Bem", responde Sebe, "e nós estamos aqui fazendo o quê?"

 

Os erros de Rondon

A reserva de Dourados é obra direta do lendário marechal Cândido Mariano Rondon, que, em 1918, demarcou a área. Garantir as terras para os índios numa época em que eles eram considerados pouco mais que animais de carga sem dúvida distingue Rondon da maioria de seus contemporâneos, mas a escolha de duas áreas próximas de centros urbanos nascentes – Dourados e Amambai – deixa clara a visão positivista que predominava na época. A idéia era que, próximos da civilização, os índios, com sua cultura "primitiva", evoluiriam progressivamente, até alcançar o mesmo estágio da cultura branca. O resultado se vê hoje nas ruas de Dourados, uma cidade praticamente sem mendigos – exceto pelos guaranis, que perambulam pelas ruas pedindo restos de comida nas casas ou até revirando o lixo.

Outro ato de Rondon que gera muita confusão até hoje, especialmente em Dourados, foi a instituição do capitaneado. Nas áreas que demarcou, Rondon nomeou jovens índios que se destacavam na vida política como "capitães", intermediários entre a população indígena e o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em muitas áreas guaranis do estado, o capitão mantém o respeito pela autoridade do nhanderu (pajé). Em Dourados, isso não acontece, por causa de mais um erro cometido pelo SPI, na década de 40.

Com a justificativa de ajudar os guaranis na transição para a civilização, ensinando-lhes agricultura, o órgão transferiu índios terenas, da região de Aquidauana (MS), para Dourados. Para os brancos, todos eram índios, eles que se entendessem.

Mas os terenas, muito mais afeitos à integração com os brancos – já no século 18, forneciam alimentos aos bandeirantes que iam às minas de ouro de Cuiabá –, acabaram se tornando uma espécie de elite na reserva: controlam o poder político – mesmo os guaranis eleitos capitães só conseguem se sustentar no cargo com o apoio terena – e econômico.

Em certos casos, o controle é literal: mercearias e pequenos mercados da reserva, quase sempre de terenas, chegam a apreender cartões de saque de aposentadoria, instaurando o velho regime da dívida que nunca termina.

 

Penas de gavião

A despeito das dificuldades, os guaranis de Mato Grosso do Sul estão determinados a retomar sua cultura e, sobretudo, suas terras. Nas manifestações pela demarcação de terras, substituem nos adornos as penas de papagaio e arara pelas de gavião, simbolicamente demonstrando que o momento é de conflito.

Em janeiro, até a fazenda de um deputado estadual foi invadida pelos guaranis. Uma semana depois, como se fosse uma reação a esse episódio, um grupo de 80 famílias caiovás foi atacado por dezenas de pistoleiros na área de Potrero Guaçu, município de Paranhos, onde os índios aguardam a demarcação de quase 5 mil hectares. Os pistoleiros feriram uma criança à bala, espancaram os moradores da aldeia, queimaram casas e, segundo denúncias, estupraram oito mulheres.

Hoje, os guaranis já são tão temidos pelos fazendeiros sul-mato-grossenses quanto o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Na região próxima à área de Jatay Vary, há uma convivência direta e pacífica entre índios e sem-terra, cujos acampamentos são separados por poucos quilômetros. O antropólogo Rubem Thomaz Almeida, que prepara um laudo para a Funai sobre essas terras, conta que o MST chegou a abandonar determinadas posições, após saber que estava em áreas reivindicadas pelos guaranis.

Esse tipo de polidez é encarado pelos latifundiários como mais uma prova da grande conspiração que estaria sendo orquestrada contra eles – alguns artigos que vêm sendo publicados em jornais de Campo Grande falam sobre uma suposta intenção de instaurar um novo território guarani, entre o estado de Mato Grosso do Sul e o Paraguai, desta vez governado sem o apoio dos jesuítas.

Imaginação à parte, há um argumento que poderia depor contra a retomada desse território: as denúncias de envolvimento de determinadas lideranças guaranis no arrendamento de glebas para sojicultores, que, com as novas demarcações, teriam mais terra barata onde plantar. "Mas punir centenas de famílias que efetivamente não têm nem áreas de cultivo para a subsistência só por causa de especulações não é algo sensato", diz Almeida. Em sua opinião, esses problemas, se ocorrerem, terão de ser resolvidos a posteriori, com uma boa fiscalização.

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