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Foto: Image Bank

Bienal em São Paulo aponta soluções para os problemas urbanos

REGINA ROCHA

O que é arquitetura para você? A pergunta foi lançada a um grupo de adolescentes que chegavam para uma visita à 4a Bienal de Arquitetura de São Paulo, realizada na capital paulista de novembro de 1999 a fevereiro de 2000. Como resposta, nasceram desenhos que reproduziam o rude panorama urbano de tantas grandes cidades brasileiras: muros altos, avenidas áridas e casebres mal-acabados ao lado de edifícios tão reluzentes quanto inacessíveis. Enfim, a arquitetura da exclusão, da violência.

Ao final da visita os jovens foram convidados a desenhar novamente o que entendiam por arquitetura. Dessa vez, surgiram vários desenhos inspirados nas obras expostas, em especial a biblioteca projetada pelos arquitetos holandeses do grupo Mecanoo na Universidade de Delft. O relato é feito pelos monitores que acompanharam o público da maior mostra brasileira de arquitetura e demonstra a força educativa que uma exposição como a Bienal pode exercer, principalmente sobre os jovens.

A 4a Bienal, de fato, surpreendeu a todos. Organizada em prazo curtíssimo, com orçamento apertado, a exposição foi aberta no final de novembro, mas somente ganhou o público leigo – seu principal objetivo – em janeiro, depois das festas de final de ano. O presidente da Fundação Bienal, Carlos Bratke, junto com os curadores Lúcio Gomes Machado e Luiz Fisberg, comemora o sucesso do evento, que já recebera mais de 96 mil pessoas até 19 de janeiro, a maioria (59%) leigos em arquitetura, segundo pesquisa realizada durante a Bienal.

Esse movimento é quase surrealista em um país tão desprovido de arquitetura e desenho urbano como ainda é o Brasil neste ano 2000. Em parte, o sucesso se explica pelo apoio inédito oferecido pela mídia ao evento. Mas também responde ao sensível "aquecimento" do debate sobre cidade e cidadania ao longo de 1999. Basta lembrar que no ano passado foi lançado em São Paulo o projeto da Maharishi Tower, um edifício de traços orientais com quase 500 metros de altura, alvo de muita polêmica. Além disso, uma série de trabalhos que envolvem arquitetura e urbanismo foram incentivados (e logo esquecidos) pelo governo do estado e pela prefeitura, como os projetos para o quarteirão penitenciário do Carandiru e as propostas de embelezamento das marginais do Tietê.

Colocar o grande público em contato com a arte brasileira e mundial sempre foi a missão das bienais, observa Lúcio Machado. Nesta 4a edição da mostra, mais do que exibir obras de arquitetura, buscou-se destacá-la como um dado da cidadania, uma forma de melhorar a qualidade de vida.

Idéias exemplares para essa compreensão foram apresentadas no evento, indo de objetos de design, como o novo conceito do brinquedo Lego, a projetos de urbanização de favelas (ver texto sobre premiados), e culminando em propostas e obras de remodelação de extensas áreas urbanas de cidades como Berlim, Roterdã, Londres e Buenos Aires.

Puerto Madero, em Buenos Aires, é um exemplo de renovação urbana, a partir da construção de uma nova frente da cidade para o porto. Como se fez isso? Com um pré-projeto, montando-se uma companhia estatal mas gerida de acordo com a iniciativa privada (autofinanciável, sem ingresso de capital público). Uma mecânica que deu certo, conclui Lúcio Machado, ao explicar o sentido da exposição trazida pela Corporación Puerto Madero.

Ainda da Argentina, destaca-se a mostra de Alberto Varas, autor de uma série de trabalhos para Buenos Aires. Ele trouxe à Bienal dois projetos premiados – para os bairros de Retiro e Ciudad Universitaria –, que exemplificam bem o tratamento do que é natureza, do que é espaço construído, e o entendimento da arquitetura preexistente e da arquitetura proposta.

Na visão do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, esta edição da Bienal examina as cidades e sua arquitetura como um argumento em favor da existência humana no planeta: "A Bienal tem o mérito de trazer o discurso consciente do homem sobre a natureza".

A mostra conseguiu atrair um público amplo, ultrapassando o círculo de profissionais e iniciados, mas o resultado poderia ser ainda mais abrangente caso a apresentação dos projetos tivesse sido adequada ao visitante leigo. No lado de fora do Pavilhão da Bienal, os mais acostumados a feiras e exposições de arte reclamavam de certa monotonia e sugeriam a utilização de interatividade nas futuras exposições.

A arquiteta e crítica carioca Ana Luiza Nobre acredita que o excesso de informação pode ter efeito negativo sobre o público em geral. "Salvo algumas experiências, as exposições de arquitetura são muito cansativas. O espaço é a matéria-prima por excelência da arquitetura, e no entanto a maioria das exposições se limita a representá-lo por meios gráficos, incompreensíveis ao grande público", diz ela.

Essa "fragilidade cenográfica" da mostra também foi apontada pelo arquiteto e professor Hugo Segawa: "Como foi concebida, a Bienal seria uma ótima exposição para um evento técnico entre profissionais, mas não para o público leigo".

Tendências

Visitar a Bienal em busca de um sentido de unidade na produção arquitetônica atual pode ser desorientador, tal a diversidade dos projetos expostos, analisa Lúcio Machado. "Nesta exposição, uma série de projetos diferenciados demonstraram que existe hoje um elenco enorme de linhas de trabalho. Não há uma, mas n arquiteturas contemporâneas."

Hugo Segawa também acha muito difícil estabelecer uma visão sobre a produção mundial e suas tendências a partir de uma exposição como a Bienal, mesmo porque hoje não há rumos muito claros.

O problema central deste momento, para Segawa, é a persistência do que ele chama "arquitetura do não-lugar", a repetição dos mesmos cenários em várias partes do mundo, sem considerar condições geográficas, culturais e econômicas de cada cidade ou país. São os jardins com as mesmas palmeiras de Miami ou Las Vegas, os shopping centers iguais em todos os lugares do mundo, as lanchonetes construídas sob o mesmo padrão em qualquer canto do planeta. São arquiteturas que apagam as referências locais, mas que não se transformam em novas referências porque também são transitórias, precisam adequar-se às transformações do mercado. "Até os anos 70, os bancos investiram em uma arquitetura que lhes desse identidade própria. Hoje as agências bancárias assemelham-se a quiosques leves, que podem ser facilmente reformulados ou removidos", exemplifica Segawa.

A chave desse aparente impasse pode estar nos limites naturais da própria Terra e nas alternativas ecológicas e econômicas abertas pelas novas tecnologias. Lúcio Machado acredita que todas as tendências presentes na Bienal referenciam-se ainda na arquitetura moderna, mas refletem também outras preocupações, como a conservação da energia, a idéia de vinculação do espaço privado com o urbano, ou a incorporação de recursos industriais sofisticados, como os novos softwares de desenho ou os materiais leves. Este último ponto – o uso de meios tecnológicos sofisticados – vem mostrando que a arquitetura é e precisa ser um elemento de qualificação permanente do parque tecnológico, como aconteceu no caso brasileiro em relação ao progresso do concreto armado nos anos 40 e 50, que se transformou numa referência mundial.

Um exemplo atual são os projetos de Norman Foster, na Alemanha, na Espanha ou na Ásia, todos recheados de soluções para a conservação e preservação do ambiente urbano. Entenda-se que não se trata só do projeto: a arquitetura demanda equipamentos, materiais, know-how. Foster, em certo período, foi o maior exportador de serviços da Grã-Bretanha. Assim, longe de ser perfumaria, a arquitetura representa um componente sólido para a economia de um país, como afirma Lúcio Machado.

 

Destaques

Mies van der Rohe – Um dos nomes fundamentais do século 20, o arquiteto alemão mereceu uma sala especial na 4a Bienal, com a recriação em escala real do hall de entrada do Pavilhão da Alemanha na Exposição Mundial de Barcelona (1929), uma elegante e pioneira composição de vidro, pedra, concreto, tecido e luz.

Frank Gehry – O arquiteto canadense ficou mais conhecido há dois anos, quando concluiu as obras do Museu Guggenheim em Bilbao, na Espanha. Desenhado com softwares próprios da indústria aeroespacial, o museu compõe-se de uma série de superfícies curvas revestidas com placas de titânio, formando uma nave futurista.

João Filgueiras Lima (Lelé) – Nascido e formado no Rio de Janeiro, Lelé participou da construção de Brasília, onde desenvolveu sua arquitetura de peças pré-fabricadas. Mais tarde, na Rede Sarah de hospitais, destacou-se como um verdadeiro designer de edifícios, móveis, camas hospitalares, veículos e mesmo de um modelo de atendimento hospitalar.

Carlos Villanueva – Falecido na década de 80, o venezuelano Villanueva desenhou estádios, museus, edifícios habitacionais e teatros em que revela um traço moderno, cheio de cores e formas curvilíneas, como o grande auditório da Cidade Universitária de Caracas.

Zanine Caldas – Autodidata, o baiano José Zanine Caldas somente foi reconhecido como arquiteto no Brasil na década de 90, após receber o título de doutor honoris causa na França.

Alvar Aalto – Um dos ícones mundiais da arquitetura européia, o finlandês Alvar Aalto revolucionou o design de móveis, chegando a soluções puras e limpas, ainda nos anos 40.

Alberto Varas – As intervenções de Varas nos bairros de Retiro e Ciudad Universitaria, em Buenos Aires, transmitem otimismo para cidades maltratadas como São Paulo.

Dinamarca – A curiosa mostra "Danish wave" apresentou edifícios, eletrodomésticos, trens, óculos, brinquedos e móveis desenhados recentemente no país.

Holanda – A mostra holandesa, concebida especialmente para a 4a Bienal, adotou um recorte muito claro, ao mostrar um panorama da arquitetura do país no pós-guerra em três momentos: o de Aldo e Hannie van Eyck (1945-99), seguido pelo de Herman Hertzberger (1960-99) e, finalmente, pelo do grupo Mecanoo (1980-99).

 

Os premiados

Uma arquitetura ampla, voltada às expectativas da sociedade contemporânea por soluções nas áreas de habitação, cultura, lazer e cidadania. Essa parece ter sido a inclinação do júri internacional ao escolher os Grandes Prêmios da Exposição Geral de Arquitetos. Estes foram os destaques:

Urbanização da Favela Jardim Floresta, São Paulo (Paulo de Mello Bastos) – Mais que promover o saneamento e a urbanização de uma área degradada, buscou-se resgatar a identidade cultural de um grupo.

Projeto de urbanização de favelas no Rio de Janeiro (Jorge Mario Jauregui) – Em cinco anos, o Programa Favela-Bairro, da prefeitura do Rio de Janeiro, viabilizou intervenções em várias favelas, desfazendo a noção de uma cidade "partida" entre morro e asfalto. O júri da Bienal decidiu premiar um conjunto de quatro projetos do arquiteto Jauregui para as favelas Fernão Cardim, Fubá-Campinho, Salgueiro e do Vidigal.

Estação Pêssego do Metrô (João Walter Toscano e Odiléa H. Setti Toscano) – Uma grande estrutura em cruz, com corpo principal em formato cilíndrico, suspensa com leveza sobre um extenso vale, no extremo leste de São Paulo.

Teatro Unimep – Universidade Metodista de Piracicaba (Paulo de Melo Zimbres, Marcos S. Zimbres e Joara Cronemberger Silva) – O teatro se traduz em um grande cilindro, igualmente visível pelos que rodearem a praça do Campus Taquaral da Unimep, nos arredores de Piracicaba. Local de espetáculos artísticos para universitários e moradores, o edifício inclui sala para 800 espectadores e auditório para 180 pessoas.

Prêmio especial

Além dos Grandes Prêmios, a Bienal conferiu ainda o Prêmio Especial do Júri ao conjunto da obra do arquiteto britânico Norman Foster, autor de edifícios como o Commerzbank, em Frankfurt, ou a renovação do Reichstag, em Berlim.

Outros 12 projetos que integraram a Exposição Geral de Arquitetos foram premiados, entre eles o do estacionamento Trianon (escritório MMBB), o da remodelação da biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Piratininga Arquitetos Associados), e o de uso de eucalipto de reflorestamento em residências (Marcelo Aflalo e Marta Aflalo).

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