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A marca da fragilidade

Um debate com Cláudio Lembo sobre a engenharia político-partidária, realizado em outubro de 1999 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da FCESP

CLÁUDIO LEMBO - A história registra uma ausência de formação de facções políticas permanentes e estáveis no Brasil. Ao contrário, as pessoas se unem e rompem vínculos com a rapidez do segundo e a desfaçatez dos néscios.

Ingressam em partidos e os abandonam com a ligeireza de uma porta giratória, atomizando intenções e enviando princípios para o mais próximo cesto de papel imprestável. O circunstancial domina o essencial. O interesse pessoal e imediato afasta a visão doutrinária e a busca do bem comum.

Não há terra firme no cenário partidário. O aluvião é imagem permanente. Que fatores históricos impulsionaram essa constante em nosso espaço partidário?

Os dramáticos acontecimentos proporcionados por dom Manuel, o Venturoso, há cerca de 500 anos, se encontram no centro dessa fragilidade de posições. Quando o rei português implantou, em seu império, as regras religiosas importadas da Espanha, impondo conversões compulsórias a muçulmanos e judeus, a ágora política foi infectada de vírus insanável e de forte potencial de reprodução. Embora comum, o sintoma dessa dramática doença social não é prontamente identificável. Só após a instalação do personagem em cargos eletivos ou de livre nomeação verifica-se a existência do mal: a palavra era mera roupagem para obliterar a verdadeira intenção e ocultar o pensamento.

Há uma ruptura, na política brasileira, entre o verbo e a vontade. Há um duplo agir: o eleitoral e o pós-eleitoral. A ação política torna-se frágil. As pessoas, incrédulas. A cidadania se refugia na individualidade, ignorando o coletivo. O ser solidário dá lugar ao eu solitário: "Cada um por si e Deus para todos".

Assim, muitos fazem política no Brasil. Há exceções, mas tão escassas que se transformam em figuras microscópicas.

Desde a redemocratização, após o regime militar de 1964, com a conquista da plena liberdade de expressão, os avanços foram significativos.

A liberdade permitiu a imensas camadas da sociedade, que se encontravam sufocadas pelo ranço autoritário dos segmentos economicamente superiores, ver e ouvir e, vendo e ouvindo, elaborar suas próprias conclusões e sentenças. Aconteceram erros coletivos. Estes foram lições. Avançou-se para patamares mais qualificados de ação política. Esta é a realidade.

Mas os séculos de obscurantismo transformam as conquistas em meros espaços decimais. Falta muito. O que fazer?

Ao estilo do camarada Lênin, algumas respostas podem ser oferecidas. Não indicam um norte de certezas. Registram, todavia, uma visão nítida do expositor, sem a presença do vírus do duplo agir.

Em um só dia

As eleições no Brasil se jogam em um só dia. As representações populares nas Assembléias Legislativas de todas as unidades federadas, incluindo-se o Distrito Federal, e de ambas as casas do Congresso Nacional são submetidas a mudanças em um único dia, excetuando-se o Senado, onde o salutar princípio expresso na fórmula "dois terços por um terço" é operacionalizado. Ora, essa prática de um pleito em um dia conduz a perigosas anomalias.

As eleições contêm forte carga emocional, e, por vezes, uma personalidade extravagante ou uma idéia mirabolante podem deformar a consciência do colégio eleitoral ativo, induzindo-o a sufragar o erro em lugar do acerto.

Esses acontecimentos podem conduzir a mudanças fundamentais no comportamento do poder público, lançando princípios e programas à marginalização, rompendo-se a continuidade das políticas públicas, sempre essencial no jogo democrático timbrado pelo fair play, tolerância e mútua confiabilidade, principalmente nestes tempos de mundialização, quando os acontecimentos na casa do vizinho repercutem por toda a aldeia global.

As democracias ocidentais realizam os pleitos parlamentares em épocas diferentes, por grupos de estados federados nos Estados Unidos e por Länder isolados, na Alemanha. Neste extremo ocidente, a República Argentina adota a renovação dos deputados federais por turnos, metade a cada dois anos.

Nada precipitado. Nada de jogo no atacado. Pleitos singulares, que visam a estabilidade e o equilíbrio do todo. Aqui, não. Como jogadores compulsivos, os brasileiros lançam seus sufrágios em um só dia. Será o que Deus quiser.

Ao que parece, o diabo tem levado vantagem. Ainda agora, no ano 2000, todos os municípios brasileiros terão suas Câmaras e Executivos submeti- dos a voto. As lideranças partidárias nacionais não terão possibilidade de oferecer suas idéias, diretamente, em cada município. A fiscalização dos pleitos será fragilizada pela massificação eleitoral.

Os custos operacionais da Justiça Eleitoral se concentrarão, onerando o erário topicamente, e os partidos se mostrarão frágeis perante um espaço territorial de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

Os meios de comunicação, eficientes instrumentos da busca da verdade eleitoral e da moralidade dos pleitos, estarão impedidos de cobrir os atos eleitorais de cada município. É impossível estar presente em mais de 5,5 mil municípios em um só dia.

A democracia é cenário para partidas múltiplas e seqüenciais. Quando o jogo se esgota em uma única cartada, pode levar a desastrosas conseqüências e equivocados resultados.

Voto distrital misto

De há muito políticos de todos os partidos disputam a paternidade da inclusão, na legislação eleitoral pátria, do voto distrital misto baseado no modelo da República Federal da Alemanha. Lá, todo eleitor é titular de dois votos. Um pessoal e um partidário. O primeiro sofre apuração de acordo com o princípio majoritário, e o segundo, de conformidade com o modelo proporcional de lista fechada.

No Brasil, o modelo, no decorrer do regime militar, teve processo de implantação. A emenda no 22 elevou a texto constitucional o voto distrital e não o implantou imediatamente. Transcorreram três anos e o parágrafo único do artigo 148 da Constituição de 1969 foi revogado. Agiram acertadamente os parlamentares.

De acordo com o modelo sugerido, o voto distrital misto amplia o poder das direções partidárias, gerando oligarquias rígidas, em que o espaço para o ingresso de novos figurantes é nenhum. O voto proporcional, à brasileira, concebido por Assis Brasil em 1932, tem gerado distritos espontâneos, podendo hoje o analista sem maior esforço registrar a origem do parlamentar e os interesses que defende. Mesmo porque a concepção de distritos eleitorais, em país de espaços geográficos vazios (vide a Amazônia), como é o caso do Brasil, torna-se tarefa ingente e com resultados extremamente duvidosos sob o ponto de vista da verdade eleitoral e da ética política.

Reeleição

A reeleição não se alinha entre as virtudes republicanas brasileiras. Em 1891, quando da elaboração da primeira Constituição da República, a respeito do tema importantes ponderações se fizeram. Concluíram os constituintes da Primeira República pela inoportunidade de aplicar o princípio da reeleição nos pleitos presidenciais e fundamentaram a conclusão, afirmando: "De que poderosos meios poderá lançar mão o presidente que pretende se fazer reeleger? Admitir presidente candidato é expor o eleitorado à pressão, corrupção e fraude na mais larga escala. Já de si a eleição presidencial engendra no país agitação não pequena e temerosa; e o que não dará quando o candidato for o homem que dispõe da maior soma de poder e força, pela sua autoridade, pelos vastos recursos que pode pôr em ação para impor a sua reeleição?" (João Barbalho Uchoa, Comentários à Constituição de 1891).

Naquela oportunidade, debateu-se o tempo do mandato presidencial. As opiniões se dividiram. Três foram as sugestões oferecidas, a saber: quatro, cinco e seis anos. O mandato de quatro anos foi vitorioso. Hoje, poder-se-ia pensar em mandato de seis anos, buscando-se a continuidade administrativa necessária à implementação de um plano de governo. A reeleição devia ser evitada no vértice da República e em todas as demais unidades federadas.

No ano 2000, acontecerão pleitos municipais e, pela primeira vez na nossa história, o princípio da reeleição será aplicado em eleições municipais. Será qualificado laboratório para teste da excelência do novo instituto – o da reeleição – ou para a demonstração do acerto de Barbalho e de seus companheiros de 1891.

Fidelidade

Sem o princípio da fidelidade partidária é impossível a existência de vida política eficiente e capaz de proporcionar governabilidade. O político brasileiro, tornando-se titular do mandato eletivo, adota o nomadismo como forma de vida. Passa a freqüentar inúmeros oásis partidários, de acordo com os ventos e as tâmaras produzidas. Os camelos do Executivo devem acompanhá-lo em árida marcha pelos desertos de idéias, distribuindo mercancias representadas por cargos públicos e demais benesses advindas dos quadros administrativos. É assim por toda parte e em todo o mundo democrático. E está mais presente por aqui, em virtude da ausência da fidelidade partidária.

Parece contraditório. Deseja-se a fidelidade, mas defende-se o candidato avulso. Seria melhor admitir que alguns não desejam, pelos fatores históricos conhecidos, participar de agremiações partidárias. São solitários. Melhor seria deixá-los se apresentar individualmente aos pleitos e, depois, uma vez eleitos, de acordo com as normas dos regimentos das Casas, passariam obrigatoriamente a formar blocos parlamentares, no decorrer de cada sessão legislativa, dos quais só poderiam se afastar para ingressar em partido político permanente. A situação atual é, no mínimo, estranha.

Em nosso sistema, os partidos possuem o monopólio da apresentação de candidatos, figurando essa situação como uma das últimas reservas de mercado existentes no panorama contemporâneo, mas, uma vez eleitos, os candidatos tornam-se livres para emigrar, sem qualquer obstáculo ou impedimento legal. A situação é surrealista.

Alta rotatividade

A legislação ordinária já prevê cláusula de desempenho, na terminologia adotada por Marco Maciel – ou de barreira, como querem os alemães –, para os partidos políticos. É indispensável. Nos momentos de redemocratização, uma chusma de partidos é salutar. Uma vez consolidada a prática democrática, torna-se inoportuno manter a possibilidade de conviver indiscriminadamente com partidos sem representatividade, conferindo-lhes acesso a comunicação eletrônica. Esses grupos políticos atomizam a vontade eleitoral e permitem a inescrupulosos se servirem das práticas democráticas para obtenção de vantagens pessoais e publicidade indevida. No final de 1999, quando o prazo de filiação partidária, referente ao pleito de 2000, se encerrou, viu-se um amargo espetáculo de minúsculos partidos que ofereciam legendas e de microfigurantes políticos que ingressavam em agremiações sem representatividade, idênticas a hospedarias de alta rotatividade.

Cassação de mandato

A prática de cassar mandato eletivo é adotada em muitas unidades federadas dos Estados Unidos. Traz, em si, o inconveniente da mutabilidade da opinião pública e a conseqüente instabilidade da vida política. O eleito de hoje poderá ser afastado, ao sabor dos acontecimentos, em momento posterior. Exige, contudo, do eleito comportamento exemplar, sob pena de afastamento da vida pública. Os mecanismos para um recall popular não se encontram em nossa legislação, mas o Ministério Público, com a ampla competência que adquiriu após a Constituição de 1988, pode oferecer, mediante representação da cidadania, formas sucedâneas para atingir a cassação de mandatos eletivos.

Consulta popular

A sociedade brasileira tem demonstrado, por seus representantes, ojeriza à democracia direta. Salvo os episódios relativos a coleta da vontade popular, de maneira direta, para optar por república ou monarquia e presidencialismo ou parlamentarismo, esse mecanismo não tem merecido utilização. É um equívoco. Na Itália, tal como na Suíça e em inúmeros estados dos Estados Unidos, a prática se encontra difundida e até, por vezes, com ares de saturação, como acontece entre os italianos, em razão do uso contínuo do instituto.

No Brasil, o conservadorismo teme pela presença de temas avançados em consultas populares diretas. Tolice. A comunidade é consciente e, certamente, daria respostas mais qualificadas que muitos dos representantes populares que da verdadeira vontade da sociedade se encontram afastados, tornando-se ilegítimos titulares de mandatos conferidos com determinado objetivo e utilizados de forma diametralmente oposta.

A reflexão a respeito de temas políticos conduz a uma constatação amarga mas convincente. A presença da fragilidade humana se mostra por inteiro na arena política. Todas as iniqüidades se desenvolvem no cenário do processo político. Atos de grandeza ocorrem aí também. A natureza humana, com seus aspectos qualificados e seus espaços inconsistentes, encontra amplitude de exposição no jogo político. Isso faz recordar duas personalidades, presentes no mesmo espaço temporal, mas distantes quanto aos objetivos almejados. Na Renascença, exuberante momento da história ocidental, Maquiavel e Calvino tiveram a mesma percepção do humano e de suas formas de atuar.

Os dois pensadores, um cético e nacionalista e o outro crente e isolacionista, constataram ser inerente ao homem a tendência à degeneração moral. Ambos estavam lamentavelmente certos e nos induzem a pensar em caminho inafastável: a ética. A ética, hoje, é expressão distante. O seu reaprendizado se impõe. Em uma sociedade de massas, extremamente complexa, se normas nítidas de comportamento não forem obedecidas, os resultados atingidos serão nefastos. O homem é lobo do homem, como registrou Thomas Hobbes. As sociedades contemporâneas necessitam retornar à prática de princípios éticos, sob pena de fenecerem. O brado de um pensador norte-americano ecoa, a partir de São Francisco: "Amem, atuem, ou, como espécie, desaparecerão!" (Daniel Fallon, no Council of Colleges of Arts and Sciences, 13 de novembro de 1987, in Una propuesta para la educación superior del futuro, Ernest L. Boyer, Fondo de Cultura Económica, México, 1997).

É uma advertência que merece reflexão. Em momento de crise de valores, a omissão, na prática da política, caracteriza capitulação, e esta o desmoronamento do futuro de cada um e de toda a coletividade. É preciso reagir, exigindo dos políticos a adoção de rígido código ético e de cada um presença efetiva nos embates públicos. Trata-se de um apelo e de um convite à participação.

 

Debate

Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.

NEY FIGUEIREDO – Cláudio Lembo hoje é presidente do PFL em São Paulo. O PFL e o PT são os dois partidos que têm uma característica muito firme, uma cara, para lados diferentes. Basta ver no Congresso como votou o PT. Do outro lado estará o PFL. Há uma separação bem distinta entre os dois partidos, o que demonstra que cada um tem o seu programa. Em São Paulo, Cláudio Lembo conseguiu dar uma nova personalidade ao PFL, que não era um partido feliz aqui, mas, nos últimos dois anos, vem encontrando seu caminho.

No entanto, vejam como é difícil o quadro partidário. Mesmo o PFL, que tem uma posição forte, bem definida, programática, apresenta um problema aqui. Cláudio Lembo disse que não concorda com o voto distrital. E o PFL apóia o voto distrital misto.

Outro ponto é a reeleição. Concordo com o expositor que ela foi um desastre no Brasil. Participei no ano de 1998 de eleição em seis estados e pude ver o que aconteceu no Piauí, por exemplo, no caso da candidatura de Mão Santa à reeleição. Vai ser uma tragédia essa reeleição para prefeitos. O que eles vão fazer nesses milhares de municípios? E o PFL também foi favorável à reeleição. O que demonstra o seguinte: mesmo em um partido com uma cara forte, encontramos o presidente em São Paulo com uma posição pessoal (com a qual concordo no caso da reeleição e não concordo quanto ao voto distrital, porque sou favorável) que demonstra a dificuldade do partido de se apresentar à sociedade de forma homogênea.

Vejo a reforma política se arrastando no Congresso. O único artigo que foi votado deve-se justamente à representação popular. Foi acompanhado por 1 milhão de assinaturas, e dava aos juízes eleitorais poder total na próxima eleição, de até cassar candidatos. Não sei como esses juízes, com a Justiça Eleitoral que temos, vão agir. De qualquer forma, foi uma representação popular que chegou ao Congresso e conseguiu aprovar em 20 dias o que não conseguimos há anos e anos.

Cláudio Lembo, eu o achei um pouco pessimista em relação a nosso quadro partidário. Certamente você concorda que não teremos uma democracia saudável sem partidos políticos fortes. Então o caminho é criar essas cláusulas de barreira, estabelecendo condições para que os partidos possam existir de maneira sólida, mais saudável, incluindo-se a fidelidade partidária.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Nós não temos partidos políticos, mas somente legendas eleitorais. A grande função do partido político é ser escola de cidadania. Não importam suas características ou até sua fisionomia ideológica. Há de ter presença permanente e não apenas em campanhas eleitorais. A fidelidade partidária é indispensável e essencial

A reforma política deveria ser a primeira, porque embasaria todas as outras. Mas, como vemos, lamentavelmente ela não será efetivada, porque deveria ser feita exatamente pelos interessados em manter posições e privilégios, defendendo o status quo. E por fim, mas não em último lugar, é imperativo que o regime federativo seja de fato implantado. Não esse arremedo de federação que temos no Brasil, que se reduz apenas ao enunciado do preâmbulo da Constituição: "República Federativa do Brasil". Onde está a real repartição de competências, deveres e atribuições, em que os entes federados deveriam ter os poderes originários e a União os remanescentes? Será que veremos um dia a verdade federativa entre nós?

LUIZ HUMBERTO PRISCO VIANA – Nós já praticamos aqui as eleições descoincidentes. Seria útil voltar a praticá-las. Cada eleição apresenta características próprias, e quando se faz, como hoje, eleições gerais, a população não tem oportunidade de definir-se com segurança em relação a cada voto que vai proferir. A eleição para cargos federais deveria ser isolada, assim como a estadual e a municipal, porque elas dizem respeito a questões específicas. A própria campanha, a discussão, a temática de cada eleição tem características próprias, e não pode ser tratada conjuntamente. A questão municipal é distinta da estadual, que tem diferenças em relação à nacional.

O que nos levou a acabar com a descoincidência? Primeiro, as eleições no Brasil, sobretudo de uns tempos para cá, deixaram de ser um fato político para constituir fato financeiro. Hoje, a lei estabelece certos pré-requisitos para quem é candidato a alguma coisa, e há algumas condições não-legais que são até mais importantes. Isso se dá sobretudo na eleição majoritária. Ao candidato a governador ou presidente, é inevitável perguntar se tem recursos financeiros, um jornal ou uma emissora de televisão. Isso não é exigência da lei, mas é fundamental. A eleição coincidente foi adotada como uma espécie de defesa dos candidatos. Em vez de gastar em cada eleição, eles reduzem o número delas, contrariando até a idéia democrática de que a sucessão das eleições melhora o voto. Seria importante rever essa questão.

Entendo que toda a temática da reforma política deve ter como ponto principal afirmar a democracia, e para isso é preciso fortalecer os partidos. A organização partidária do país não é boa. Mas não podemos examinar isoladamente a questão partidária, sem analisar a questão eleitoral. As eleições serão melhores se os partidos forem melhores. Os partidos serão melhores se houver uma eleição mais livre e mais democrática. Por isso é que precisamos fazer a revisão do sistema. Temos discordâncias nesse campo. Se no presente praticássemos o sistema proporcional com lista fechada, talvez não estivéssemos discutindo a eleição distrital. Na verdade, o sistema de eleição proporcional de lista aberta acaba com os partidos e alimenta o oportunismo e o carreirismo na política. Somando-se isso ao aspecto financeiro, o cidadão que tem recursos não necessita do partido, não lhe dá a menor importância. Numa dessas eleições de que participei, que foram muitas, fui forçado a fazer um acordo numa determinada região do meu estado com um candidato a deputado estadual que era muito forte. Acertamos como íamos fazer a campanha e em dado momento, quando já estava tudo certo, eu disse: "Vamos agora afinar o discurso, o que e como vamos dizer". Ele disse: "Eu não preciso de discurso. Para fazer a campanha, quero ter segurança de que há gasolina para o avião e talão de cheques no bolso".

Grande parte dos políticos raciocina dessa forma. É o que ocorre no sistema de lista aberta. O candidato com recursos, com avião e com talão de cheques corre todo o estado, vai recolhendo votos, elege-se sem compromisso com ninguém, nem com o partido, e vai exercer seu mandato segundo seus interesses. Isso é o que tem liquidado nossos partidos. Mais: no sistema proporcional de lista aberta a competição raramente se dá entre adversários, mas entre correligionários. Terminada a eleição, os partidos estão de tal modo traumatizados que precisam passar um período longo para cicatrizar todos os ferimentos da campanha. A meu ver, o sistema distrital resolveria a questão, além de dar mais representatividade ao eleito. Estabeleceria uma vinculação mais permanente do eleito com o eleitor e defenderia melhor os interesses das regiões que elegem seus deputados, porque eles, para se manter, teriam de ser fiéis aos que votaram neles, e a disputa se faria em função do desempenho do deputado. E isso também asseguraria a formação de maiorias.

O grande problema político dos governos hoje é a dificuldade de formar maioria sólida e homogênea, que permita a governabilidade. Por isso defendo o sistema distrital. Não o distrital puro, porque levaria a uma distorção no sistema plural que praticamos, conduzindo ao longo do tempo inevitavelmente a um sistema bipartidário.

Por que o distrital misto? A questão não é decidir entre distrital puro e misto. É encontrar a melhor fórmula para aprovar o sistema. Se não foi adotado um sistema distrital quando havia um regime de força, hoje acho muito difícil, porque os deputados que se elegeram por um sistema não querem correr o risco com outro. Portanto, é uma reforma que entendo necessária, seria muito útil para a democracia brasileira, mas dificilmente acontecerá porque depende do voto do congressista.

Os partidos, que na democracia são a parte principal e essencial, com o sistema atual são a menos importante do processo.

Com relação à reeleição, concordo plenamente com Cláudio Lembo. Combati muito a reeleição e paguei caro por isso. Não me arrependo, porque está provado que não é um sistema que se ajuste aos costumes e à prática política brasileira. Nossa tradição é da perpetuação no poder, é do uso da máquina para ganhar eleições. As reeleições municipais não vão ser apenas uma tragédia, mas uma grande imoralidade. O primeiro mandato do prefeito vai ser destinado a preparar a reeleição, e não há como fiscalizar a eleição municipal. O dinheiro da eleição é invisível. País nenhum conseguiu até agora estabelecer uma regra de financiamento de campanha eficaz. Há sempre meios de burlá-la.

Quanto à fidelidade partidária, penso que é essencial na política. Mas, no quadro de hoje, considero-a arriscada. Muitos acham que ela fortalece os partidos, mas entendo que ela é conseqüência do fortalecimento dos partidos. Na situação em que eles hoje se encontram é preciso perguntar: a fidelidade será a quem e a quê? Ao programa do partido? Ou será à vontade dos donos, dos chefes dos partidos? No sistema que está aí, os três maiores partidos apóiam o governo. Então o governo, quando decide enviar determinada matéria ao Congresso, chama os líderes dos partidos, instruindo-os para que a aprovem. Havendo a fidelidade partidária, qual a conseqüência de não aprovar? Perda do mandato. Acho muito arriscado. Primeiro é preciso melhorar os partidos, para ter a fidelidade. O ideal é que ela fosse resultado de maior conscientização política, do convencimento do membro do partido da importância e da necessidade de ser fiel àquelas idéias e àqueles princípios que o partido defende. Quanto ao candidato avulso, sou contra. Estou falando em fortalecer os partidos, em torná-los instrumentos de prática da democracia. O candidato avulso enfraquece completamente o partido e escancara ainda mais as portas para o oportunismo político e para aqueles que têm dinheiro e podem se candidatar independentemente de partido, sem nenhum compromisso com qualquer idéia.

Cláusula de desempenho nós já a temos na legislação. Isso é bom. Entendo, porém, que é preciso moderar o pluripartidarismo. Com a Constituição de 88 voltamos ao pluripartidarismo, mas por falta de regras mais eficazes para exercê-lo acabamos caindo num multipartidarismo que é anárquico e caótico, que ninguém administra e que está desorganizando a vida política, com reflexos no desempenho do próprio Congresso Nacional.

LEMBO – Sou absolutamente contra o voto distrital. Imagino uma lista fechada, mas no proporcional. O distrito cria corrupção e produz, numa linguagem muito vulgar, o vereador federal.

PRISCO – O primeiro-ministro britânico Winston Churchill era eleito por um distrito pequenininho. No entanto, teve uma projeção mais do que nacional.

 

LEMBO – Sim, você conhece muito bem aquela velha piada da política inglesa em que no dia da eleição o lorde colocava seus empregados num barco e levava-os até o Atlântico norte, para um lugarzinho que era dele, comprado a preço baixo, onde tinha uma aldeia, um burgo podre, pelo qual se elegia todos os anos. Isso acontece até hoje.

PRISCO – Mas Churchill não se enquadrava nisso. Ele colocou seu mandato à disposição dos eleitores, quando divergiu do partido, e foi reconfirmado por assembléia popular.

LEMBO – Mas esse foi um caso ético. Você sabe que o burgo podre existia. Ele permite deformações imensas do resultado eleitoral.

PRISCO – O curral também.

LEMBO – Sim, mas o burgo é pior. Trazer o voto distrital para o Brasil, mesmo misto, seria complicado. É uma visão pessoal.

Temos conflitos internos dentro do PFL, mas o partido segue certa diretriz quanto a decisões tomadas nas suas direções e nas suas bancadas. Apresenta seus equívocos, mas certamente foi bem colocado que o PT e o PFL são os dois únicos partidos que hoje têm uma situação orgânica razoável.

Moacyr Guimarães fala sobre a Federação. Nesse assunto também me coloco em posição de antagonismo. A Constituição de 88 na verdade criou uma federação nova, que é embrionária e complexa. Os constitucionalistas divergem sobre o tema, com razão. Estamos criando uma Federação não só de estados, mas também de municípios federados. É algo novo e talvez possa romper o ciclo de insolidariedade do brasileiro. É possível que isso seja o embrião de algo novo, que possa permitir uma melhor federação no Brasil, não a partir dos estados tradicionais, históricos, e mesmo os novos, mas a partir do município.

Prisco falou de algo que omiti: o problema do financiamento das campanhas eleitorais. Esse é um tema complicado em todo o mundo. Os americanos agora estão utilizando fundos públicos. Nós não temos condições para isso. Os alemães têm os piores processos em juízo em razão dos fundos. São os famosos casos de empresas que colocavam o financiamento nos próprios balanços, criando uma vinculação entre empresa e partido político. É complicado. Não vejo solução fácil para esse tema. Talvez a legislação brasileira, tendo permitido a contabilidade individual do candidato, tenha avançado. A democracia é um processo político muito caro. Mas não existe outro melhor, como diria Churchill.

Compreendo o problema do custo da campanha. Mas eleições em todos os municípios brasileiros em um único dia é algo absurdo. Como a reeleição de todos os parlamentares federais e estaduais num único dia e por regiões do país. É perigoso. Nos Estados Unidos, de dois em dois anos, as eleições ocorrem em estados diferentes.

OLIVEIROS S. FERREIRA – Não estou entendendo seu raciocínio. Qual é o perigo de eleger o prefeito, ao mesmo tempo, em São Paulo e em Cabrobó?

LEMBO – Em termos de município há menor risco. Estou de acordo. Mas quando se trata de Congresso Nacional é extremamente perigoso. Solta-se boi no pasto, como fez Orestes Quércia pela televisão, e o partido ganha e arrasa. Altera a fisionomia parlamentar. Você está acompanhando a Alemanha...

OLIVEIROS – Mas lá existe um complicador, que é o Bundesrat. Ao eleger um senador, eu mudo a composição do Senado.

LEMBO – Não. O Senado lá é por tabela, quem indica são os governadores. Não é como aqui. É um sistema inteligente. O senador, como representante de um estado, não pode ser eleito pelo voto popular. Mas não gosto da eleição num único dia, alterando toda a composição da Câmara Federal, por exemplo. Era melhor fazer eleições no Rio Grande do Sul e no Acre, em São Paulo e em Pernambuco, com um revezamento para que de dois em dois anos tivéssemos pleitos.

PRISCO – Você desvincularia a eleição para o Congresso da eleição para presidente?

LEMBO – Sim. Pode-se alegar que nesse caso o presidente perde a base parlamentar. Ele que conquiste essa base.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – Gostaria de contribuir para o debate referindo-me às raízes desses defeitos e distorções, porque seria inútil, a meu ver, buscar a solução dos efeitos, e não das causas. E aí cabe uma pergunta que me faço há muito: por que o Brasil não é igual aos Estados Unidos? Fomos descobertos e colonizados 120 anos depois do início da colonização inglesa na América do Norte. No entanto, 500 anos após, alcançamos 10% apenas, em todos os aspectos, da prosperidade, da segurança e da influência americana. Qual é a razão? Esqueço o fato de que o Brasil não está colocado na faixa dos climas temperados, esqueço a formação social e étnica brasileira para só me fixar num ponto que me parece fundamental: foram as distorções causadas pelo modelo político.

Se continuarmos com esse modelo, iremos celebrar séculos avante as mesmas deficiências. Isso significará para o Brasil um grande período de atraso. O modelo político que adotamos se caracteriza na superfície, para o observador ocasional, pela inexistência de maioria estável e confiável. Mas por que isso acontece? Num regime representativo de tripartição do poder, os três deveriam ser independentes e, como na inspiração americana deduzida de Montesquieu, mais harmônicos.

Nas primeiras Constituições brasileiras, a expressão "harmônica" era freqüente. Mas não resistiu. Então o Estado foi constituído por três braços independentes e hostis, sem harmonia.

Objetivamente falando, essas distorções decorrem de erros institucionais. Em primeiro lugar, o voto proporcional criado em 1932. Com ele não estávamos contribuindo para a formação de partidos, que constituem exatamente o instrumento fundamental para a ação governamental numa democracia. Democracia é o governo de partidos, e decretamos sua morte prematura em 1932, com a eleição proporcional. Produzimos posteriormente o enfraquecimento partidário, a difusão do poder, em vez de concentrá-lo para que o país fosse governável, com a adoção do pluripartidarismo. Há um mal maior do que o regime autoritário. É a hipertrofia do pluripartidarismo. Há 44 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, e 19 na Câmara. Como alcançar uma maioria estável e confiável? Dominados pelas exigências dos cabos eleitorais das províncias, que são por sua vez submetidos ao aguilhão dos interesses individuais, eles se tornam adeptos da solução única, que é a seguinte: como compraram o voto, vendem o voto ao Executivo. A lista aberta ou fechada é uma distorção desse nascimento infausto ou do exercício inadequado do sistema representativo.

Fui o autor da emenda parlamentarista no Congresso, movido pela idéia de que 44 ou 19 partidos são uma solução inviável, que torna impossível o funcionamento da divisão dos poderes. Como conseguir esse denominador fundamental, que é a maioria estável e confiável, com 19 partidos, todos eles sedentos de buscar atender a solicitações clientelistas e patrimonialistas dos seus grupos de eleitores municipais? É uma feira de favores.

Por outro lado, seria igualmente fundamental a eficiência do sistema representativo, o qual é condicionado pela capacidade de discernimento do eleitorado. Por isso o parlamentarismo naufragou na Nigéria. O que tentaram implantar lá virou anarquia. Ora, num país como o nosso, com 75% de pobres e iletrados, pobres porque iletrados e iletrados porque pobres, evidentemente o discernimento está comprometido. Os eleitores tendem por força disso a atender a seus interesses imediatos. Isso só se modificará com o desenvolvimento, cujos frutos são o bem-estar, a segurança e a educação. Até lá continuaremos com o clientelismo e com o patrimonialismo.

Há também a considerar o federalismo dos estados e municípios. Qual é a conseqüência? A União federal, que cuida do interesse de todos, é prejudicada. Hoje, o governo tem apenas 6% do orçamento para investimentos federais, o resto é consumido pelo clientelismo, pelo privilégio e pelo patrimonialismo, que é o denominador comum do privilégio.

A monetização da eleição é um desdobramento desse quadro. É óbvio. Os interesses criados procurarão se preservar através do financiamento das eleições. Temos a bancada dos fazendeiros, dos bancos, do Banco do Brasil, e assim por diante. Eles agem em função de seus interesses corporativos. Por isso sonhei que o bipartidarismo, que é a característica essencial do regime parlamentar, pudesse afastar essa perspectiva pessimista que tenho.

OLIVEIROS – Cláudio, você é pessimista. Segundo Calvino, a natureza humana é degenerada. Eu sou um degenerado. Não vou tomar posição sobre as coisas que você disse diretamente. Vou convidá-lo a fazer uma reflexão. Tenho a impressão de que há um espírito pairando em cima de nós há muito tempo. Esse espírito chama-se governo militar. Estamos debatendo as questões que ele sempre discutiu e procurou solucionar. O governo militar achava que 13 partidos (14 com o PC, que estava na ilegalidade) eram a causa da destruição da democracia. Nós achamos que 19 são a causa da destruição da democracia. Então ele criou dois. Só que não eram dois. A sabedoria está aí. O erro foi ao manipular a fórmula de contar os votos. Não eram dois, eram seis. Isso nós esquecemos. Depois vamos admitir que ele tenha criado o voto distrital. De que ano é?

LEMBO – De 1965.

OLIVEIROS – Muito bem, o voto distrital misto era a salvação da democracia brasileira, para alguns. Não foi regulamentado, e depois retiraram-no da Constituição, por ser entulho autoritário. Hoje é de novo a salvação da democracia.

Depois os militares acharam que era preciso instituir a fidelidade partidária. Então quebramos a fidelidade partidária porque achamos que o candidato à presidência da República não encarnava os princípios do partido e, portanto, ela não era necessária. E hoje ela é a salvação da democracia de novo. Permito-me dizer o seguinte: você é contra o voto distrital misto porque implica o autoritarismo das direções. Eu lhe peço que considere o que significa a fidelidade partidária decidida pelas direções.

LEMBO – Nesse caso você teria que analisar o mecanismo, Oliveiros. Como criar a fidelidade?

OLIVEIROS – Se é das direções, fortalece as direções. Você disse: "direções partidárias firmes".

LEMBO – E não a fidelidade.

OLIVEIROS – No caso da reeleição, eu me pergunto: não estamos personalizando demais a questão? O governador Quércia não foi reeleito. Mesmo assim ele quebrou o estado de São Paulo. O prefeito Paulo Maluf não foi reeleito. Deixou uma grande dívida à cidade de São Paulo. Todos os governadores, presidentes e prefeitos não reelegíveis elegiam os seus candidatos a qualquer custo. Portanto, o uso da máquina não está implícito na reeleição. A reeleição deve ser examinada sob outro aspecto, não do uso da máquina. Isso é importante. Do contrário, caímos no personalismo e aí realmente a coisa fica muito confusa. Quanto ao candidato avulso, você mesmo criticou a existência de microfigurantes sem representatividade no cenário político. O candidato avulso é um microfigurante. E a sua solução, desculpe, é absolutamente autoritária.

LEMBO – Falei em criar o bloco parlamentar.

OLIVEIROS – Exatamente. Eu sou avulso porque não quero me filiar a nada. Uma vez sentado lá, sou obrigado a me filiar a alguém que não sei quem é, por decisão autoritária.

LEMBO – Do Congresso.

OLIVEIROS – É autoritária, desculpe. A lei pode ser autoritária.

CLÁUDIO CONTADOR – Tenho três questões. Uma delas: como fortalecer os partidos, que medidas poderiam ser tomadas sem causar maiores transtornos ao modus vivendi atual?

BURGOS-CABAL – Reduzindo o número.

CONTADOR – Sim, mas isso é arbitrário. Como vai ser feito? Por isso gostaria de ouvir o doutor Prisco Viana sobre a questão do voto distrital. Eu tinha uma visão muito clara, era a favor. Agora, pelo que conversamos aqui, começo a ter dúvidas. O terceiro ponto é sobre as eleições gerais, essa cartada única. Como fazer a transição? Precisaríamos ter mandatos-tampões de dois anos. Mas quem estaria se candidatando a esse mandato-tampão? Teria que ser criada a possibilidade de reeleição dessa pessoa.

LEMBO – Burgos-Cabal falou sobre as causas de nossos problemas. Elas não estão na ficção legal brasileira, na ação do Congresso, das Câmaras, etc., ou em nossos equívocos. Nosso grande problema é que o Brasil é a última expressão do feudalismo europeu, com as capitanias hereditárias. Aí começa a complicação nacional. Um país que nasceu de um feudalismo tardio. Em segundo lugar, este é um país, como toda a América Latina, de hegemonia religiosa. Onde não há conflito religioso não se cria opinião pública. E o que temos? Uma minoria de senhores rurais que dominavam totalmente a sociedade, a qual ficou abafada até a recente redemocratização, com que se começou a ter um pouco de liberdade.

Nos Estados Unidos, depois da Guerra de Secessão, os negros libertados receberam uma parcela de terra, para poder exercer uma função econômica. No Brasil, todos os latifundiários foram indenizados, e ainda foram ao Poder Judiciário e receberam precatórios muito bons na época.

Nossa deformação é secular, são 500 anos de uma sociedade em que um só sabe explorar o outro. E não temos opinião pública. Nos Estados Unidos, por volta de 1860, 60% do PIB estava nas mãos de 1% da sociedade. Mas eles conseguiram alterar tudo. Nós não temos capacidade para isso. Existe a hegemonia de uma minoria que domina a sociedade. Isso vai resultar em um conflito, é inevitável. A guerra civil já está instalada em nossas ruas, e vai ser pior. O Brasil é um país constrangedor, uma sociedade extremamente egoísta. Nunca vi uma fundação trabalhar pelo bem da sociedade. Aparecem senhores e senhoras mostrando-se dadivosos, como foram os americanos da era progressista. É tudo ainda artificial, um pouco para aparecer nas colunas dos jornais.

Oliveiros, acho que não me fiz entender. Eu disse que era paradoxal defender a candidatura avulsa e ao mesmo tempo os partidos. É verdade, é paradoxo mesmo, é absolutamente surrealista. Porém a candidatura avulsa talvez tivesse um pouco da alma nacional.

OLIVEIROS – Como defendi em 66.

LEMBO – Você defendeu? Está vendo? Eu jogo isso para o debate. Tem riscos muito grandes. Cláudio Contador pergunta como fortalecer os partidos. Fazendo uma transfusão de caráter nos dirigentes partidários. Se o dirigente partidário não tem caráter, a agremiação é fraca. Não há nenhum mecanismo legal que fortaleça partido político. O brasileiro quer sempre fazer acordo, e isso não é possível em política. Às vezes é preciso tomar uma atitude nítida, clara, vigorosa para criar o partido político forte, senão ele fica frágil.

Ney Figueiredo falava sobre o PFL de São Paulo. O que fizemos foi tomar atitudes. Por exemplo, um prefeito tem a máquina e quer se filiar ao PFL. Ele não entrará no partido, se seu estilo de governo não se coadunar com nossos princípios em São Paulo. Ponto. Assim começam a se fortalecer os partidos. Partido que tem medo de ter antagonismo é fraco, e então não pode ser partido político. Não é com legislação que ele se fortalece. Isso é um engodo, é a ficção jurídica brasileira.

MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – Quanto àquela citação de dom Manuel e dos reis católicos da península Ibérica, gostaria de fazer uma colocação bem rápida. Isso foi discutido na ética do protestantismo por Max Weber. Obviamente, é daquelas coisas que têm sustentação empírica, mas não permitem a generalização de modo a constituir ciência, como pretendia Weber. Nem todas as colonizações que se originaram na Reforma tiveram o mesmo sucesso que houve nos Estados Unidos. Portanto, não há como fazer a generalização. Então não condene os portugueses por tão pouco.

Acho que no essencial vou concordar com o senhor. Estou me referindo à democracia direta. Como estamos fazendo uma série de coisas, esquecemos que deve haver o controle social. Isso só vai ter sucesso quando criarmos os mecanismos para esse controle. É o que está faltando. Esse é o desafio. Temos algumas coisas embrionárias, ONGs, associações, etc., mas precárias, ainda. Se queremos realmente formar este país, temos de fazer algo. Não podemos mais confiar nos iluminados, nas elites que dirigem o país. A consciência social transcende qualquer elite que pretenda conduzir o processo histórico.

Quanto ao voto distrital, tenho dúvidas. E receio partidos fortes. Essa sociedade deve criar seus próprios controles, dispensando esses partidos fortes. Ao longo da história, os partidos fortes realmente deixaram muito a desejar, tanto na União Soviética como na Alemanha. Reeleição é outra coisa de que fico receoso. Pode ser a oportunidade de dar continuidade a um bom governo ou de alongar um mau governo. Nos municípios, vai ser uma desgraça total.

VAMIREH CHACON – Congratulo-me com Cláudio Lembo, mesmo porque ele muito bem não insistiu na diferença entre partidos ideológicos e de interesses. A mania de partido ideológico é européia. Nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália não há agremiações ideológicas, existem partidos assumidamente de interesses. Concretamente, o Partido Democrata dos Estados Unidos, ainda hoje, tem veleidades progressistas no norte. Progressismo nos Estados Unidos significa casamento de homossexuais, legalização de drogas, defesa do aborto, da eutanásia, não sei mais o quê. E no sul dos Estados Unidos o mesmo partido é racista e municipalista. E as duas partes convivem muito bem, obrigado. Quando se vê uma convenção do Partido Democrata, lá estão os racistas da Ku Klux Klan a favor das feministas defensoras da produção independente, e pastores protestantes fundamentalistas. No sul dos Estados Unidos é um partido fundamentalista, protestante, anticatólico, anti-semita. Pois esses mesmos pastores fundamentalistas anti-semitas e anticatólicos caem nos braços dos defensores da eutanásia e votam juntos, elegem Clinton. Eles estão se lixando para a ideologia. O Partido Republicano é menos extremado, mas lembro-me de Nelson Rockefeller, que era tido e havido como a esquerda do partido.

Nós temos de acreditar em idéias, mas em ideologias, não. Idéias, na medida do possível, conciliáveis, no sentido de que possam convergir. Mesmo porque Karl Marx não levava a sério ideologias, mas idéias. Na Ideologia alemã, obra de juventude de Marx, ele ridiculariza a ideologia. E na maturidade, no livro Dezoito Brumário, faz o mesmo. Mas, como descendente de Emmanuel Kant através de Friedrich Hegel, ele tinha de valorizar idéias. Por exemplo, um quadrado ter quatro lados ou quatro ângulos é uma idéia. Não é uma ideologia, nem jamais será. A União Soviética inventou a genética marxista-leninista e deu no que deu. Não se pode fazer em matemática nem em metafísica ideologia nenhuma. E na prática também não. Haja vista que quem ganhou a guerra fria foram os Estados Unidos. Quem perdeu foi a União Soviética, teimando ainda numa pseudo-ideologia para tentar fazer remendões aqui e acolá, absolutamente infundados.

Eu concluo concordando com a necessidade da descoincidência dos mandatos. Os social-democratas e os ecologistas alemães elegeram-se na base demagógica, acusando o chanceler federal Helmut Kohl de ser cruel e darwinista social quando anunciou que as pensões e aposentadorias na Alemanha tinham de ser cortadas pelo menos pela metade. Acontece que a aritmética é a maior inimiga da ilusão. A pirâmide demográfica da Alemanha está invertida. Quando se começa a ganhar dinheiro, a primeira coisa que se faz é deixar de querer ter filhos. Isso acontece no mundo inteiro, tanto entre os esquimós, no Alasca, como entre os chineses, os alemães ou os brasileiros. E o resultado é que na Alemanha hoje um ativo sustenta quatro inativos. Para sorte dos alemães, 20% da previdência social é paga por turcos. Porque turcos ainda têm filhos. Há um processo análogo nos Estados Unidos, porque os americanos históricos, filhos de americanos, também não têm mais filhos. Quem tem filho é mexicano, porto-riquenho, paquistanês, jamaicano. Os Estados Unidos ainda se agüentam, mas o mesmo não acontece na Alemanha. Na França é um pouco diferente porque Charles de Gaulle teve a sabedoria de instituir prêmios para quem tivesse filhos. A França tem se agüentado, embora com uma grande ajuda dos árabes, que têm alta taxa de natalidade e já são 12% da população. Na Alemanha, os turcos são 6%.

Enfim, meus amigos, descoincidência de mandatos é excelente. Na Alemanha, devido à grande quantidade de estados da Federação, há em média duas eleições estaduais por ano. Berlim como estado, e não como município, levou à derrota Schroeder e Oskar Fischer, simplesmente porque mentiram. Mentiram contra a aritmética, e agora vão ter de fazer o trabalho sujo. Se não o fizerem, o que vai acontecer nos próximos três anos e meio na Alemanha? A previdência social deles vai falir antes da brasileira. A nossa prevê-se que vá falir por volta de 2015, 2020, segundo projeções. A da Alemanha não agüenta cinco anos.

JOSEF BARAT – Faço uma pergunta muito curta e objetiva. Que mecanismos protegeriam o Congresso Nacional de ter entre seus membros figuras como Hildebrando Pascoal, para dar um exemplo bem recente e claro? O que é impressionante na história da cassação desse deputado é que 41 votaram contra e 19 se abstiveram. Portanto, 60 deputados em 513 são simpatizantes de uma figura como ele. Que há uma degradação, uma decadência em todos os parlamentos do mundo é um fato óbvio, até porque hoje as eleições são decididas não num contato mais direto com o povo no palanque, mas pela televisão. E os meios de comunicação têm deformado a idéia da representação popular. Esse é um fenômeno que tem ocorrido em todos os lugares, mas no Brasil é chocante. Seja pelo voto distrital, seja pelo distrital misto, é possível evitar esse tipo de coisa?

LEMBO – Cuidado com as direções partidárias. Hildebrando Pascoal é do PFL. As direções por vezes são omissas na catalogação dos candidatos. Na busca de votos, esquecem de analisar a vida pregressa deles. Esse é um risco que todo partido corre e que não pode acontecer daqui para o futuro, depois desses exemplos dramáticos. As lideranças partidárias são as grandes responsáveis. É óbvio que a direção nacional não pode analisar todos os municípios, mas no caso de candidatos ao Congresso Nacional teria de tomar cuidado.

Manuel Henrique citou os partidos fortes, e tem toda a razão. Eu não falei jamais em partido forte. Queremos partidos ativos, que permitam a governabilidade. Partido forte nem existe na sociedade contemporânea, porque a própria sociedade tem formas intermediárias de representação, e o partido em si é apenas um ente permanente de representação da sociedade, de idéias, etc. Deus me livre de partidos fortes. Voltando ainda a Portugal, eu diria que aquele ato de dom Manuel produziu uma grande deformação que é o duplo agir. É o mostrar-se católico em público e judeu ou muçulmano na vida íntima, na vida em família. Isso deformou as sociedades brasileira e portuguesa. Falamos de uma forma, mas pensamos de outra.

Falemos de reeleição, para voltar a Oliveiros, com quem tenho sempre conflitos ideológicos e filosóficos. A ideologia está superada, segundo Vamireh Chacon. Mas vamos lá. Reeleição no Brasil leva à fadiga da personalidade.

OLIVEIROS – Estou de acordo.

LEMBO – Basta ver o presidente brasileiro para perceber como há fadiga. A personalidade não mudou, ele é quem era, porém o excesso de sua presença nos meios de comunicação destrói qualquer figura.

EDUARDO SILVA – Existe uma disfunção entre as instituições que perpetua os problemas. Por exemplo, a primeira coisa que o Executivo, com qualquer presidente, quer é convencer a sociedade de que precisa mudar as leis para poder governar. Então assume o papel do legislador principal. A primeira coisa que o deputado que se elege quer é se reeleger. No segundo dia do mandato, já está pensando nisso, e para tanto precisa de cargos. É muito barato para o Executivo fazer a vontade do deputado. É um processo que vai se perpetuar, porque os pedidos são verdadeiras migalhas. Então, por que não atender? Se queremos melhorar o sistema, precisamos caracterizar as ações. O presidente foi eleito sob um conjunto de leis. Não tem de mudar as leis para governar. Uma ou outra iniciativa vá lá, mas não esse enxame de leis. Isso já é uma traição ao eleitorado.

Quanto à reeleição, é um mal que afeta todos os políticos, não só os do Executivo. Talvez fosse o caso de acabar com ela. Se o sujeito foi deputado em uma legislatura, que fique de fora na subseqüente. Assim não vai se preocupar imediatamente com ganhar a eleição seguinte e talvez isso o prepare mais para discutir as leis.

Última observação: se queremos melhorar a harmonia entre os poderes, precisamos nos habituar a dizer que quem governa o Brasil não é só o Executivo. É o presidente, mais o Congresso, mais o Supremo. É esse trio que governa. Enquanto não tivermos clareza disso, não vamos poder exigir desempenho, tanto do Legislativo como principalmente do Judiciário.

MÁRIO AMATO – Minha pergunta é bem simples. No mundo moderno, o homem começa a exercer uma função importante. Hoje ele tem força. Antigamente, nas grandes crises, ficava quieto e morria de fome. Atualmente há uma força de massa que orienta as posições, de uma forma às vezes violenta. Mas é um instrumento para conseguir objetivos. Mesmo nos Estados Unidos existe essa terceira via. A Itália, a França, Portugal têm um progresso extraordinário por causa dela. Tenho a impressão de que ela vai se manifestar aqui também. Pergunto: como pode ocorrer a terceira via no mundo?

Para finalizar, eu diria que a corrupção no Brasil passou a ser endêmica. Chegamos a um estado insuportável. De todos os grandes programas, nenhum deu certo no país. O Mobral, a Sudene, a Sudam, o SUS, nada dá certo. Por quê? Porque a preocupação não é fazer, é se locupletar.

LEMBO – Por que há excesso de leis? Porque nós, brasileiros, imaginamos que pela lei podemos resolver os problemas sociais, e nunca ouvimos a sociedade para saber o que ela deseja. Então há sempre um equívoco: a lei não casa com a sociedade.

Mário Amato, no Brasil a corrupção é endêmica, sabemos disso, conhecemos as causas, etc. Há um temor de falar em ética no Brasil. Em todo o mundo se fala em ética. Por quê? Porque o capitalismo exige ética. Não é porque seja puritano, mas porque precisa de regras de comportamento, senão as pessoas não se entendem. Portanto, é inevitável que a ética chegue ao Brasil. Por que o Mobral e outros movimentos não deram certo? Porque o sebastianismo brasileiro-português, messianismo, faz com que cada um que assume o poder pense que é o Messias que veio nos salvar. Não há Messias. O que existe é um cidadão que, transitoriamente, ocupa um cargo público. Se ele exercesse com humildade sua função, seria útil. Mas, como todos são Messias, o resultado é este: nenhum plano tem continuidade. É um problema histórico.

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