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Um novo caminho

Foto: Célia Thomé de Souza

Associações, ONGs e entidades diversas substituem o Estado e oferecem serviços sociais a milhões de carentes

CECILIA ZIONI

 

Em 1543 surgiu, em uma pequena vila do litoral paulista, o primeiro hospital brasileiro, a Santa Casa de Misericórdia de Santos. A instituição marcou, no Brasil, o início dos movimentos de caráter assistencialista, hoje responsáveis pelo atendimento a milhões de brasileiros. Pessoas que, de outra forma, não poderiam dispor de serviços sociais mínimos como educação primária, alimentação básica e cuidados médicos essenciais.

Hoje essas entidades somam no país mais de 200 mil, e deixaram de ser produto apenas de iniciativas religiosas, estendendo-se por uma vasta gama de serviços prestados à coletividade.

Elas compõem o que se convencionou chamar de terceiro setor, um vasto segmento ainda desprovido de definição precisa, mas que oferece à população, no Brasil e no mundo, verdadeiras válvulas de escape para os problemas sociais que não faltam em nenhuma região do planeta.

Se fosse um país, o terceiro setor no Brasil teria mais habitantes do que a Bolívia (9 milhões de pessoas assistidas) e seu orçamento (estimado em US$ 9 bilhões) seria igual ao dessa nação. Duzentas e vinte mil entidades, institutos, associações, fundações e organizações diversas sem fins lucrativos formam no Brasil este ainda pouco conhecido setor, destinado a prestar serviços à comunidade. Nele estão engajados 12 milhões de voluntários, número suficiente para povoar todo o Equador.

Os dados são de um recente estudo sobre o terceiro setor, feito por duas instituições abalizadas, a Johns Hopkins University e o Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser), este, aliás, um digno representante desse segmento.

No que se chama hoje de terceiro setor estão agrupados – de maneira um tanto superficial e imprecisa – fenômenos mais ou menos relacionados, como filantropia e caridade, organizações não-governamentais (as ONGs, de que se começou a falar efetivamente no Brasil a partir da Eco-92), organizações sem fins lucrativos e ainda a atuação das empresas, explica Andrés Falconer, do Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo.

A rigor, acrescenta, a expressão "se refere especificamente a organizações privadas, sem fins lucrativos, de finalidade pública, independentes do Estado e das empresas, mas na prática é uma salada que derruba qualquer definição".

Simplificando o assunto, pode-se dizer que o Estado é o primeiro setor, reunindo organismos públicos, e o mercado é o segundo, aglutinando as organizações empresariais e privadas, origem da oferta de bens e serviços. O terceiro setor, independente do Estado e do mercado, é o que dá origem aos bens públicos, como segurança, cidadania, ambiente, etc.

O levantamento da Johns Hopkins e do Iser indica vir de pessoas físicas a maior parte dos recursos que mantêm essas organizações (dois terços do total), ficando a doação individual do brasileiro (11% sobre o total) em boa situação ante a média internacional (10%), embora abaixo da norte-americana (19%).

Em março, será divulgado o resultado de levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento, que desenha o retrato preliminar desse terceiro setor na área empresarial: na região sudeste, diz o estudo, de 445 mil empresas cadastradas no Ministério do Trabalho, 67% desenvolvem algum tipo de ação pela comunidade em que estão instaladas. O que fazem e quanto gastam nisso essas 300 mil empresas será conhecido detalhadamente em março, mas já se sabe que o grosso são donativos a entidades filantrópicas ou religiosas.

Outra pesquisa indica "As maiores entidades do terceiro setor", as 20 principais das quais aparecem na tabela à página 6 (a lista integral pode ser consultada em www.melhores. com.br). Seus gastos chegaram a quase R$ 1,2 bilhão em 1998, valor pouco superior ao do lucro líquido da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) nesse mesmo ano. Destacam-se os trabalhos da Fundação Bradesco, da Associação Congregação de Santa Catarina, dos voluntários da Legião da Boa Vontade (LBV) e dos especialistas do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee) (ver listagem abaixo).

Civilização em crise

"As 500 maiores empresas brasileiras gastam anualmente US$ 2,8 bilhões em segurança patrimonial e US$ 18 milhões por mês em filantropia. Se aumentassem seu envolvimento social, conseguiriam reduzir os custos de segurança", diz Stephen Kanitz, economista brasileiro há anos dedicado ao estudo e análise das ações sociais de empresas e institutos no Brasil. Ele mantém um site sobre o assunto na Internet (www. filantropia.org) e se especializou na elaboração do ranking do segmento.

A indagação de Kanitz sobre a relação entre investimentos sociais e gastos com segurança toca a questão principal: a razão por que o terceiro setor cresce tão velozmente no Brasil. Antonio Jacinto Caleiro Palma, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, dá uma resposta levantada pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor dessa escola. O segmento cresce na proporção direta de quatro crises recentes: a falência do Estado social (por ausência de recursos, estrutura e planejamento), a crise do desenvolvimento (com a paralisação do crescimento aumenta a exclusão social), o fim do socialismo (desmoronamento no Leste Europeu, tido como esperança de justiça social), a degradação do ambiente, da segurança e da educação, rebaixando o sentimento de cidadania.

Pode-se dizer que se vive a crise da civilização. O socialismo frustrou expectativas de realizar a justiça social. "O capitalismo segue a lógica da racionalidade econômica, com interesse centrado na maximização do lucro", comenta Falconer.

O professor, cuja tese de mestrado na USP, apresentada em 1999, com o título de "Promessa do terceiro setor", analisa o segmento a partir de sua gestão organizacional, diz que o enfoque do capitalismo não desqualifica as recentes motivações empresariais, voltadas para a responsabilidade social e ambiental. E Kanitz acrescenta que "o capitalismo ainda não sabe produzir bens e serviços de que as pessoas precisam, mas uma nova geração de empresários está transformando um capitalismo de resultados em um capitalismo de benefícios".

A filantropia nesta transição de século não é distribuir sopa ou agasalho: é reintegrar drogado, alfabetizar adulto, dar empregabilidade, introduzir no mercado de trabalho, adverte Caleiro Palma, que também preside o Centro de Integração Empresa-Escola, considerado um dos maiores participantes do terceiro setor.

Segundo Stephen Kanitz, o grande erro político cometido no Brasil foi a visão do Estado como agente de mudança, em detrimento do fortalecimento da sociedade civil organizada. Por isso, o terceiro setor é encarado como "nossa única esperança de reconquista da agregação social em torno de apoio mútuo, comunitário, sem o autoritarismo do governo, com soluções regionais e locais adequadas".

Especialização

A dimensão assumida pelo terceiro setor já começa a exigir especialização. Luiz Carlos Merege, coordenador do Curso de Administração para Organizações do Terceiro Setor e do Centro de Estudos do Terceiro Setor da FGV paulista, diz que o interesse acadêmico e profissional pelo assunto se intensificou a partir de 1995 e, por isso, já existem cursos nas principais universidades e escolas superiores de São Paulo. Além das iniciativas da FGV, podem ser citados o Núcleo de Estudos de Administração para o Terceiro Setor, da PUC de São Paulo, e, na USP, o Centro de Estudos de Administração da FEA. Registre-se também que a Associação Paulista de Magistrados, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tem procurado formar agentes multiplicadores do terceiro setor, ministrando curso sobre gestão para organizações da sociedade civil.

O próprio setor busca sua especialização, o que tem dado origem a um novo "mercado": o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), formado por 42 empresários, dá apoio técnico e financeiro a pelo menos 25 ONGs, em parceria com outra entidade semelhante, o Instituto Fonte, ministrando cursos, dando treinamento e promovendo seminários. O tema vai desde a captação de recursos até sua administração financeira. E associações diversas se encarregam de dar orientação e sustentação a essas atividades. As mais conhecidas são o Iser, a Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais (Abong), a Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e o site Filantropia.

Stephen Kanitz recomenda a procura de um apurado enfoque empresarial na questão. Em recente artigo, ele diz que as 500 maiores empresas brasileiras doam, aproximadamente, US$ 215 milhões por ano para entidades beneficentes. Mesmo sendo uma quantia irrisória diante de padrões internacionais, ele afirma que a maioria delas faz isso de forma totalmente aleatória, sem estratégia filantrópica definida.

A maioria das empresas brasileiras, diz ele, prevê em orçamento um pequeno recurso de natureza filantrópica e "vive negando pedidos feitos pela filha do prefeito, pelo líder dos vereadores e pela irmã de seu maior cliente". Ele propõe substituir isso por uma filantropia estratégica, "prática que vem crescendo com sucesso". No caso brasileiro, diz ele, é a melhor alternativa para as empresas que querem causar o máximo de impacto com um mínimo de recursos. Em vez de dispersar suas ações, a empresa deve abraçar uma única causa e ficar conhecida por ela. Como o Boticário, que associou sua imagem à proteção ao meio ambiente, e a C&A, que investe R$ 5 milhões por ano em educação infantil.

"O segredo de uma boa estratégia filantrópica é encontrar a causa ideal", ensina Kanitz, acrescentando que, conforme o porte da empresa, "possivelmente a melhor solução seja contratar um serviço de consultoria."

Quem controla?

Quantas são as organizações que formam o terceiro setor não se sabe exatamente, mesmo porque a própria definição do segmento ainda não foi fechada, como explicou Andrés Falconer, da USP. A estimativa mais comum é de 220 mil entidades, e o governo federal decidiu realizar um cadastramento geral, mesmo porque tenta, desde o começo de 1999, promover uma alteração fiscal profunda no chamado setor filantrópico.

Quem está encarregado de fazer o registro dessas organizações é o Conselho Nacional de Assistência Social, criado em 1998 para controlar as entidades de assistência social e conceder registro e certificado às consideradas de fins filantrópicos. Marcos Maia, secretário executivo do conselho, informou, em seminário sobre o terceiro setor promovido no ano passado, que o cadastramento tem prazo para ser concluído até o ano 2000, adiantando haver 14 mil registros de associações sociais e 7,4 mil de entidades filantrópicas.

Já há quem se preocupe também com o controle ideológico dessas empresas. O Prêmio Nobel da Paz, em 1999, foi atribuído ao grupo Médicos sem Fronteiras, um exemplo acabado de entidade do terceiro setor, extremamente afinado com a necessidade de socorrer as pessoas contra cada vez mais freqüentes atentados à cidadania, como os provocados pelo ressurgimento do nacionalismo que promove guerras étnicas.

Um dos maiores milionários do mundo, o rei da informática Bill Gates criou uma fundação com seu nome que, entre outros programas, se dedica a financiar a pesquisa de vacinas contra HIV e tuberculose. Há ainda o Medicines for Malaria Venture, parceria entre a Organização Mundial da Saúde e a iniciativa privada, que se encarrega de criar e instalar uma empresa virtual para divulgar informações de produtos químicos pertencentes a multinacionais para cientistas que trabalham em serviços públicos.

Por atravessar virtualmente as fronteiras (por meio da Internet) ou mesmo fisicamente, em defesa de causas humanitárias, grupos como o dos Médicos sem Fronteiras têm apoio integral das comunidades e representam, de certa forma, um lado light, positivo, da globalização. Mas há movimentos que, sob manto semelhante, podem significar novas formas de colonização, mais sofisticadas, mas nem por isso menos reducionistas.

Antônio Corrêa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, acredita que ainda se está longe de correr esse risco. Ele considera positiva a ação do terceiro setor pelo menos por duas razões: uma, a maior eficácia apresentada em relação à ação do Estado na execução complementar de políticas sociais; segunda, a "criação" de um novo mercado tanto para jovens recém-formados como para pessoas da terceira idade.

Assim, o potencial positivo do setor é bem maior que o risco eventual: o que nem sempre se conhece, assinala Lacerda, é a estratégia de marketing por trás de ações empresariais de cunho social. Isso pode vir a ser controlado por um fórum internacional, com seções nacionais, para evitar extrapolações. O economista considera, entretanto, prematura essa preocupação, já que é característico da maior parte das entidades do terceiro setor estabelecer uma nova relação de forças na sociedade, estimulando a cidadania e favorecendo movimentos de opinião e pressão social. "É recorrente o esforço para reforçar a auto-estima de pessoas afetadas pela exclusão social e recuperar a cidadania perdida", comenta.

Neylar Vilar Lins, do Gife, estabelece paralelos entre a responsabilidade econômica das empresas e seus compromissos sociais. Pelo lado empresarial, disse ela em um seminário sobre o terceiro setor realizado em São Paulo no ano passado, devem ser cumpridos compromissos com o acionista (representados pela necessidade de remunerar o capital investido), com o cliente (garantindo preço, prazo e qualidade dos bens e serviços), com colaboradores e suas famílias (proporcionando sobrevivência com qualidade e capacidade de desenvolvimento econômico, social, psicológico e, eventualmente, espiritual), e com o conjunto da sociedade. Nesse item, a empresa deve se preocupar em prevenir e atenuar impactos negativos no ambiente natural e humano, além de garantir qualidade de vida e realização do homem.

Santa Casa

Ao analisar a evolução histórica do terceiro setor no Brasil, Andrés Falconer aprofunda o assunto. Ele lembra a origem assistencialista e religiosa dos maiores movimentos, persistente até hoje.

A primeira Santa Casa de Misericórdia, criada em Santos em 1543, deu início a esse movimento, que só fez crescer a partir de então, a ponto de, em 1998, o governo paulista ter aprovado, na Assembléia Legislativa, um projeto que o autorizou a firmar convênios com organizações sociais para administrar 11 novos hospitais.

As obras de alguns desses hospitais estavam paradas há anos e o governo pôde concluí-las, mas decidiu que a melhor forma de administrá-los seria confiar em organizações como a do Hospital Santa Marcelina, dos Sanatorinhos de Campos do Jordão e da Associação Congregação de Santa Catarina. Esta é considerada a segunda maior entidade assistencial do país (logo depois da Fundação Bradesco), e suas freiras gerenciam um orçamento de R$ 182 milhões em 1998, em que se inclui um dos principais hospitais da cidade de São Paulo, o Santa Catarina, instalado na Avenida Paulista.

O estudo de Falconer, baseado em dados da Johns Hopkins University, identifica as 220 mil entidades do terceiro setor segundo seus objetivos e áreas de atuação. A maioria são associações ligadas a serviços sociais e têm origem religiosa. Falconer destaca a forte participação de organismos religiosos no terceiro setor, em que, além da secular presença da Igreja Católica, cresce a dos movimentos evangélicos e tem força, apesar de numericamente inferior, a da comunidade judaica. A Pastoral da Criança, ligada à Igreja Católica, tem 200 mil voluntários, 95% deles mulheres provenientes, em quase sua totalidade, das classes C e D, que se encarregam de controlar o peso de cerca de 3 milhões de crianças de até seis anos de idade e ensinar às famílias carentes de mais de 2,5 mil municípios brasileiros alguns cuidados básicos (como o uso do soro fisiológico).

Outra característica dos movimentos do terceiro setor no Brasil é seu funcionamento como um pára-choque a abusos ideológicos. Leilah Landim, coordenadora da Rits e colaboradora do Iser, assinala que eles surgiram e se fortaleceram a partir da repressão imposta pela ditadura militar instalada no país em 1964. As Ongs, segundo ela, derivaram em boa parte dos centros de educação popular e dos de promoção social dessa época.

Também se deve notar, como ressalta o estudo de Falconer, a insatisfação da comunidade ante a redução do conceito de sociedade a simples objeto das relações comerciais do mercado. Isso não deixa de ter peso, pois, como observa o mesmo estudo, em 30 anos o próprio Banco Mundial passou a reconhecer a importância do terceiro setor e, nesse prazo, ampliou de 10% para mais de 50% a participação de ONGs em projetos de desenvolvimento financiados pela instituição. Nesses projetos, as ONGs têm função consultiva e de auditoria social.

Em novembro passado, Gobind Nankani, diretor do banco no Brasil, reuniu-se com dirigentes das três centrais sindicais (CUT, Força Sindical e CGT) para discutir ação conjunta na elaboração das estratégias do banco para assistência a países, a Country Assistance Strategy.

O controle do terceiro setor pode ser exercido, ainda, por entidades representativas de trabalhadores. O levantamento de Falconer mostra que sindicatos, federações e confederações têm presença de 4,5% no total de entidades, índice pouco inferior ao das fundações (5%).

Parceria oficial

O governo não pode dispensar o terceiro setor, em seus diversos níveis. O Programa Comunidade Solidária, órgão do governo federal comandado pela socióloga Ruth Cardoso, se fundamenta intensamente nessas parcerias para executar seus diversos programas. Seu conselho é formado pela presidente, por cinco ministros de Estado (antes, eram 11) e por 28 membros da sociedade civil, que assessoram as ações sociais do governo e testam modelos. Um de seus programas, o Alfabetização Solidária, visa alfabetizar 500 mil adultos por ano, com participação de empresas contribuintes. O Capacitação Solidária reúne a iniciativa privada para destacar ONGs que prestam serviços a jovens. Outro programa é o Voluntários, que, entre suas ações, tem 250 pessoas para orientar o trabalho desses grupos no Brasil, segundo informação de sua coordenadora, Mónica Corullón (ver Problemas Brasileiros nº 335, setembro/outubro de 1999, encarte). O programa tem verba do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de US$ 3 milhões, destinada a organizar e fortalecer instituições de voluntários. Já são 17 os Centros de Voluntários, dos quais sete têm convênio com o BID, e todos mantêm sua identidade, afirma Corullón.

O mais novo programa do Comunidade Solidária é o Comunidade Ativa, que fornece cestas básicas a 1.369 municípios selecionados entre os mais pobres do país. Para novembro do ano 2000, a meta é criar empregos nessas cidades, a partir de estudos que vão identificar a vocação econômica regional em 150 municípios e incentivar sua exploração. Será fornecido crédito para pequenos empreendedores (por exemplo, para compra de máquina de costura).

Para formar parcerias, o governo trata até de mudar a legislação, eventualmente. Em São Paulo foi criado um sistema de atendimento médico domiciliar, o Qualis, que é executado em parceria com o pessoal do Hospital Santa Marcelina, na zona leste, e da Fundação Zerbini e do Instituto do Coração (Incor) na zona norte da capital. Não por acaso, certamente, esse sistema tem obtido índice de 98% de aprovação pelos beneficiados (mais de 300 mil pessoas), segundo dados da própria administração do estado.

O governo federal se vale de parcerias com entidades do terceiro setor pelo menos para dois projetos importantes na área da saúde. Um deles é o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, criado em 1991 para combater a cólera no norte e nordeste, o qual agora tem 107 mil agentes que atendem 58 milhões de pessoas em 3,8 mil municípios de todo o país. Outro é o Programa de Saúde da Família, que recrutou 4.213 equipes para atender 20,7 milhões de pessoas em 1.610 cidades.

Nos municípios, a parceria entre governo e terceiro setor se faz, por exemplo, na área das creches. O sistema não é novo: começou nos anos 70, quando a cidade de São Paulo era administrada pelo prefeito Faria Lima, que construiu as primeiras 17 creches municipais e realizou licitação para entidades assistenciais. A Associação Evangélica Brasileira (AEB) foi das primeiras a entrar no sistema. Segundo seu presidente, Paulo Soares Cintra, ela cuida de mais de 3 milhões de crianças em cidades da Grande São Paulo. É considerada a 35a entre as maiores entidades filantrópicas do país e seu orçamento em 1998 foi de R$ 8,3 milhões.

O modelo, criado quando Soares Cintra era também secretário do Bem-Estar Social da capital, persiste até agora, sendo a maior parte das mais de 300 creches municipais administrada por grupos do terceiro setor. A AEB dirige hoje quase uma dezena dessas creches, além de manter hospitais e escolas. A Cruzada Pró-Infância, entidade criada na capital paulista em 1930 por Pérola Byington, também administra quatro creches da prefeitura e uma casa de passagem e outras quatro creches pertencentes ao estado.

No exterior

Nos Estados Unidos, há 2 milhões de organizações no terceiro setor, e a elas se dedicam 2% da população economicamente ativa, cerca de 1 milhão de pessoas, segundo levantamento citado no estudo de Andrés Falconer. No Brasil, as 220 mil entidades ocupam praticamente o mesmo número de pessoas, bem mais que na Argentina (353 mil) e praticamente o mesmo que em países do Primeiro Mundo, como França e Alemanha.

Um dos exemplos pioneiros do terceiro setor no Brasil é a seção paulista da Câmara Americana de Comércio (Amcham), que desenvolve pelo menos dois grandes projetos nessa área. Um deles é o Eco, ou Prêmio Empresa-Comunidade, criado há 17 anos para destacar projetos sociais desenvolvidos por empresas para ajudar o governo, nas esferas federal, estadual e municipal, nas áreas de saúde, educação, ambiente, participação comunitária e cultura. O outro projeto tem 21 anos e o nome de Amcham International Fellowship Program.

Nestes 17 anos, a câmara registrou participação de 1.044 empresas nacionais e multinacionais no Eco, tendo investido US$ 1,7 bilhão em 1.295 projetos apresentados para os membros do júri do prêmio. Isso significa média anual de US$ 97 milhões.

A Amcham também promoveu uma campanha nacional para recolher alimentos destinados a famílias nordestinas prejudicadas pela seca de 1998, o SOS Nordeste sem Fome. Além de arrecadar doações de alimentos, a câmara se encarregou dos trabalhos de armazenar alimentos e definir a logística de envio e distribuição em igrejas, escolas e locais semelhantes. Participaram da campanha 283 instituições.

Sob a sigla AIFP, o Amcham International Fellowship Program oferece bolsas de estudo integrais para que jovens executivos sem condições financeiras possam obter certificados de mestrado nos Estados Unidos. Desde 1978, mais de cem brasileiros já se beneficiaram desse programa, especializando-se principalmente em técnicas de gerenciamento, e 25% deles foram convidados a permanecer nas universidades americanas para doutoramento.

Quanto e por que doar

"Somos um dos povos que menos doam recursos filantrópicos no mundo. Segundo a Receita Federal, pelo Imposto de Renda apura-se a média para doações e contribuições de R$ 23 reais ao ano por pessoa", diz Stephen Kanitz, para quem o valor é muito pequeno. Segundo ele, a principal razão é que, por incrível que pareça, não se sabe pedir doações: "Nossas entidades ainda estão engatinhando na área de fund raising, expressão que ainda não tem equivalente difundido em português".

As pessoas agem por pressão do grupo, e Kanitz cita iniciativas como o Comunidade Solidária como bons exemplos de pressão focalizada e concentrada. Agem também por culpa e obrigação, para retribuir as oportunidades e sorte que tiveram na vida, ou pelo prazer de doar, continua o especialista. "A maioria das pessoas doa porque isso lhes dá prazer, pura e simplesmente. É uma forma de sentir que estão fazendo uma pequena diferença, deixando o mundo um pouquinho melhor."

Mas, quando se examinam números internacionais, segundo os quais 10% do orçamento das entidades assistenciais provém de doações dos brasileiros, percebe-se não ser pequena a generosidade nacional. Ela, no mínimo, se iguala à das pessoas que vivem em países mais ricos. Essa é seguramente a causa de se calcular que 16 entre cem jovens exercem alguma forma de voluntariado no país.

Quem quiser conferir, pode acessar um site da ONU, www. thehungersite.com, que recebe doações para distribuição de alimentos a crianças carentes em todo o mundo, pelo Programa Mundial de Alimentação. Segundo as estatísticas desse site, até metade de novembro do ano passado haviam feito doações 13,6 milhões de pessoas, colocando-se os norte-americanos em primeiro lugar (9,2 milhões) e os brasileiros em segundo (993 mil), seguidos pelos canadenses (420 mil). Além disso, brasileiros criaram em outubro do ano passado um filhote desse site, o www.clickfome.com.br, cujo contador de presença indicava, em dois meses, participação de 62 mil pessoas. O Clickfome recolhe donativos para o programa da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, inspirado no trabalho de Betinho.

Longe das ondas da Internet, milhares de entidades, escondidas na periferia das cidades, agem quase anonimamente, beneficiando crianças doentes, adolescentes grávidas, órfãos e idosos abandonados. Passam por dificuldades e carências de todos os tipos, mas mostram a verdadeira face do espírito que sustenta o trabalho voluntário, e que representa um mínimo de esperança para parcelas pobres da população. Que pouco podem esperar do Estado, mergulhado em crise permanente de falta de recursos e incapaz de superar o emperramento de suas estruturas defasadas.

 

Os voluntários

Algumas das entidades do terceiro setor

 

• Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) – Fundado no Rio de Janeiro nos anos 70, sua ação está centrada na pesquisa, formação e assessoria, em áreas temáticas como a violência urbana e suas relações com a cidadania, o ambiente e o desenvolvimento sustentado, a religião e a sociedade.

• Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) – Organizado em 1989, realiza fóruns bimestrais sobre o terceiro setor. Estabelece intercâmbio com organizações congêneres nacionais e internacionais, e entre suas metas está criar um Centro de Referência Nacional "sobre conhecimentos e práticas solidárias".

• Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) – Criado em 1981, sua trajetória se confunde com a de um de seus fundadores, Herbert de Souza, o sociólogo Betinho. Assessora ONGs, movimentos populares, sindicatos, associações de moradores, grupos religiosos, rádios comunitárias, emissoras de tevê e universidades, sobre temas políticos, econômicos e sociais. Tem atuação internacional, e é ligado ao organismo da ONU que trata de assuntos da infância (Unicef).

Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits) – Primeiro órgão exclusivamente virtual do segmento. Desenvolve em seu site (www.rits. org.br) um sistema de informação, capacitação e apoio em tecnologias computadorizadas de informação. Opera centros de documentação e bancos de dados, além de oferecer educação formal e a distância.

• Filantropia (www.filantropia. org) – Site criado por Stephen Kanitz para reverter o refluxo de doadores ocorrido devido à publicação de séries de reportagens sobre abusos praticados por parlamentares utilizando-se de ONGs "particulares", como diz o especialista, lembrando ter surgido nessa época a expressão "pilantropia". O site presta serviços gratuitamente, recebendo inscrição de usuários e das entidades pelas quais ele se interessa. A idéia é favorecer doações conscientes, constantes e crescentes a entidades reconhecidamente sérias, e não donativos feitos ao acaso, diz Kanitz.

• Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais (Abong) – Reúne cerca de 200 organizações, entidades e associações. Só podem filiar-se entidades autônomas frente ao Estado, às igrejas, aos partidos políticos e aos movimentos sociais. Devem manter compromisso com a constituição de uma sociedade democrática, incluindo o respeito à diversidade e ao pluralismo.

Entidades filantrópicas

• Fundação Bradesco – Criada por Amador Aguiar em 1965, a entidade visa educar e profissionalizar crianças, jovens e adultos. Da primeira escola, na cidade de Deus, em Osasco (SP), passou a 37 escolas espalhadas pelo Brasil. Nela estiveram matriculados 98.759 alunos em 1999, a maioria filhos de funcionários. Também atende adultos, alunos dos cursos de teleducação.

• Associação Congregação de Santa Catarina (ACSC) – Desenvolve atividades assistenciais, educacionais e sociais. Sua capacitação na área de saúde a levou a ser escolhida pelo governo paulista para gerir um dos 11 novos hospitais da rede pública.

• Legião da Boa Vontade (LBV) – Instituição educacional, cultural, beneficente e humanitária fundada em 1950. Tem 552 seções de atendimento no Brasil e sucursais nos EUA, Portugal, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Em 1999, atendeu 3,8 milhões de pessoas.

• Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee) – Já concedeu 2 milhões de bolsas para estudantes aprovados em estágios e treinamentos, segundo o presidente executivo Luiz Gonzaga Bertelli. Além de oferecer aperfeiçoamento profissional, o Ciee também realiza cursos de alfabetização na periferia paulistana, em parceria com a Igreja Católica, e em Igaci (Alagoas), em parceria com o Comunidade Solidária.

• Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) – Criada em 1944 pelo médico paulista Renato da Costa Bonfim, trata crianças, adolescentes e adultos portadores de alguma deficiência física, para integrá-los à sociedade. Atualmente mais de 600 pessoas participam de seu corpo de voluntários.

 

Fontes preciosas

Fórum do Senac discute mídia e terceiro setor

Organizar e veicular informações sobre o terceiro setor deixou de ser preocupação exclusiva dos líderes de ONGs (organizações não-governamentais) ou instituições que atuam na área. Os meios de comunicação também pautam freqüentemente assuntos relativos a essa área. O desafio atual é a relação profissional entre os órgãos de imprensa e os dirigentes dessas entidades.

Há mais de um ano o Centro de Educação Comunitária para o Trabalho do Senac de São Paulo planejava um diálogo entre esses dois grupos, e em dezembro, com o apoio da Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), promoveu o 1o Fórum Brasileiro de Imprensa, Terceiro Setor e Cidadania Empresarial.

O órgão do Senac, criado em 93, é uma unidade especializada no desenvolvimento de ações socioeducacionais para a melhoria da qualidade de vida das populações de baixa renda. Uma das intenções do centro é, também, promover a profissionalização do terceiro setor e contribuir para a divulgação de suas ações.

O encontro contou com a presença de Oded Grajew, diretor presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e presidente do conselho administrativo da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança; Gilberto Dimenstein, jornalista e diretor do Projeto Aprendiz; Sérgio Haddad, presidente da Abong (Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais); e Neide Duarte, jornalista diretora do programa "Caminhos e Parcerias", da TV Cultura, entre outros especialistas. E contribuiu para abrir caminhos para o entendimento entre esses dois setores.

"É evidente que os jornais, revistas, TVs e rádios estão mais sensibilizados com as ações do terceiro setor e cidadania empresarial, mas no fórum ficou claro que essas instituições têm de organizar melhor suas informações, transformando-se em fontes importantes para os jornalistas", disse Neusa Goys, idealizadora do fórum.

A Andi, que apoiou o evento, é hoje, no Brasil, a maior central de referências para a mídia, promovendo pautas sobre infância e juventude. Foi representada por seu diretor executivo, Geraldinho Vieira, que afirmou que, só no último trimestre deste ano, foram realizadas perto de 30 mil reportagens sobre esse tema. "As instituições têm de dar chance para que os jornalistas conheçam melhor seu trabalho", disse.

Para ele, as relações com a mídia são carregadas de muita fantasia, mas, na verdade, os jornalistas querem informações e liberdade para investigar os fatos. Por isso acredita que as instituições do terceiro setor deveriam profissionalizar seus departamentos de comunicação.

Postura ética

Nely Caixeta, editora executiva da revista "Exame", ressaltou que com a globalização as empresas preocupam-se mais com o termo "empresa socialmente responsável". Para ela, a empresa que percebe a importância dessa responsabilidade tem mais apelo perante o cliente.

Oded Grajew concordou. Para ele, as empresas mais lucrativas do mercado são socialmente responsáveis. E, se não são, perdem prestígio. "A política social continua exigindo uma postura ética das empresas com todos os setores e ambientes em que elas tenham algum tipo de influência", afirmou.

Léo Voigt, diretor executivo da Fundação Maurício Sirotski, do Rio Grande do Sul, ao discutir o tema "Imprensa, terceiro setor e cidadania empresarial", disse que, no Brasil, as matérias sobre terceiro setor são exceções e que é contra projetos que ajudam mais quem faz do que quem recebe.

Neide Duarte, como diretora de um programa que só veicula atividades sociais desenvolvidas por ONGs, igrejas ou pastorais, foi incisiva: "A solidariedade é a grande saída, não só para o Brasil, mas para o mundo. O importante é dar a alma, com profissionalismo. E se o projeto tem esses elementos e também personagens que conduzam uma história com emoção, isso vira matéria", concluiu.

(Simone Dias)

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