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Crianças em idade pré-escolar estão fora
das prioridades do governo

IMMACULADA LOPEZ

O papel das creches e pré-escolas começa a mudar no país. A legislação atual determina aquilo que estudiosos há tempos pregam: que essas instituições devem ser espaços educativos, com profissionais formados e propostas pedagógicas próprias. Em outras palavras, precisam ser muito mais que um lugar para a criança comer, dormir e tomar banho enquanto os pais trabalham, e devem oferecer mais que um mero preparo para a alfabetização.

Em 1999, um pouco mais de 4,2 milhões dos quase 23 milhões de brasileiros de zero a 6 anos com essa idade freqüentaram creches ou pré-escolas, públicas ou particulares, sendo que menos de 44 mil dos seus quase 220 mil professores tinham ensino superior completo, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

Embora o levantamento desses dados só tenha começado em 1997, e eles ainda sejam parciais, chama a atenção o descompasso entre o discurso oficial, presente nas leis, e a prática. Sintonizados com os mais recentes estudos sobre o desenvolvimento infantil e as discussões mundiais sobre cidadania, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) dão um novo significado ao atendimento oferecido às crianças de zero a 6 anos de idade, reconhecendo que também elas têm direito à educação.

Entretanto, a educação nos primeiros anos de vida ainda não é prioridade do governo, e o motivo também pode estar na própria lei. O ensino compulsório – o que significa não só um dever para o Estado, que não pode deixar faltar vagas, como também para os pais, obrigados a colocar os filhos na escola – começa apenas a partir dos 7 anos. A educação infantil, portanto, está fora dessa definição.

Isso tem reflexos diretos na política educacional. "Como a educação infantil não é obrigatória, não trabalhamos com a meta de universalizá-la, mas com a de ampliar sua oferta", informa Stela Maris Lagos Oliveira, coordenadora de educação infantil do Ministério da Educação (MEC). Além do aumento de vagas, deve-se também buscar a melhoria da qualidade, "articulada com políticas sociais que favoreçam as famílias mais empobrecidas", completa a socióloga Gisela Wajskop, consultora do ministério. Ainda não se definiu entretanto qual seria a oferta suficiente de vagas para atender todas as famílias que precisam ou querem optar pela matrícula de seus filhos.

A LDB estabelece que elas devem ser oferecidas pelos municípios, com assistência técnica e financeira suplementar dos governos estadual e federal. "O suporte técnico está chegando do ministério, mas o apoio financeiro de ambas as esferas continua tímido", diz Marleide Lorenzi, secretária municipal de Educação e Cultura da cidade gaúcha de Carazinho e presidente da comissão temática de educação infantil da União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime), que representa os mais de 5 mil municípios do país no âmbito da educação. Marleide observa que a lei não incumbe, mas também não exclui da tarefa o governo estadual, que deveria continuar investindo. Os números, no entanto, dizem o contrário: as matrículas estaduais têm caído continuamente, com uma redução de quase 380 mil vagas de 1996 a 1999.

O atual governo federal, por sua vez, na avaliação de Lisete Areolaro, especialista em políticas educacionais da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), tem demonstrado enorme descompromisso com a educação infantil, evidenciado pela criação do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), o chamado Fundão (ver PB 326, março/abril de 1998, pág. 4). Desde 1998, os municípios e estados devem destinar 60% dos recursos obrigatórios para a educação (que são 25% das suas verbas) para o Fundão. Esse dinheiro só volta para cada governo na proporção das matrículas em ensino fundamental, seguindo um valor anual mínimo por aluno definido pelo presidente da República.

O governo federal defende o Fundão como um esforço para garantir a aplicação das verbas realmente na educação e ampliar a oferta do ensino fundamental obrigatório – mas não está salvo de críticas. "Temos renda per capita e PIB suficientes para investir em uma educação pública ampla. Não podemos pensar um projeto de desenvolvimento que tenha que optar por uma só etapa da educação, sendo que a Constituição reconhece todas como básicas", diz Lisete.

Ela defende a idéia de que, apesar de não haver uma obrigatoriedade expressa, o conjunto de leis obriga o Estado brasileiro a garantir educação infantil gratuita a todas as crianças. Mas admite que a universalização ainda tem grandes obstáculos a superar. "Por um lado, depende da discussão de quem vai assumir esse investimento e, por outro, da mudança de uma cultura que ainda reserva às mães a educação dos filhos pequenos."

Impacto do Fundef

Desde a implantação do Fundef, as estatísticas confirmam o aumento de matrículas a partir dos 7 anos. Municípios e estados teriam corrido em busca desses alunos. Outros setores, como os da educação infantil, especial e de jovens e adultos, que também são responsabilidade do município, teriam ficado de lado. "É visível o impacto negativo do Fundef na rede pública de educação infantil", diz Lisete.

Os números comprovam os prejuízos. Em 1998, perderam-se mais de 180 mil vagas na rede de ensino. E, dessas vagas, apenas 120 mil foram recuperadas em 1999.

"Quem não investia não tem incentivo para fazê-lo, quem já investia está com dificuldade de manter esse atendimento e ainda mais de ampliá-lo", diz Lisete.

Marleide Lorenzi, que acompanha a situação dos municípios mais de perto, concorda parcialmente. Segundo ela, apenas alguns deles, que investiam amplamente na educação infantil, sentiram essa retração.

Lisete não vê futuro na municipalização "sem uma real redivisão de verbas". Em sua opinião, há "um atraso histórico no atendimento social, e o governo federal está se ausentando pelo menos dez anos antes do que deveria". Por isso, ela defende a injeção de mais dinheiro da União no setor.

Walter Takemoto, assessor do MEC, no entanto, considera os recursos existentes – a fatia que sobra da mordida do Fundão – "suficientes para manter a oferta da educação infantil, aumentá-la gradativamente e investir na formação dos professores". Mas alerta que a sociedade deve fiscalizar se esse dinheiro é realmente destinado à finalidade certa.

Novos recursos

Para uma ampla extensão do atendimento, no entanto, seriam necessárias novas fontes de recursos, admite o assessor. O poder público, segundo ele, deverá dividir essa responsabilidade especialmente com as empresas. Marleide concorda, incluindo também o terceiro setor entre os financiadores da educação infantil.

Na sua origem assistencialista, o atendimento à criança surgiu em parte da iniciativa de mães, igrejas, senhoras da alta sociedade, sindicatos, muitas vezes em convênio com a prefeitura. Em 1999, mais de 20% das matrículas na educação infantil estavam ligadas à iniciativa não estatal. "O apoio de fundações e empresas pode ser importante, mas é sempre pontual, limitando-se à doação de um prédio, pagamento de um curso", diz Silvia Pereira Carvalho, coordenadora do Crecheplan, que assessora creches beneficentes do estado de São Paulo. "O poder público, portanto, tem um papel essencial para manter serviços estáveis e de qualidade, principalmente na periferia, onde é difícil a comunidade estar sempre se articulando para obter novos apoios", completa.

Em busca de qualidade

Além do impasse da oferta, os especialistas destacam a urgência de discutir a qualidade da educação infantil. O cenário atual, público e particular, não parece ser muito animador. "O trabalho encontrado é bastante precário ou equivocado", avalia Silvia, do Crecheplan. Em sua opinião, a rotina centrada na higiene e na alimentação é quase uma regra no país. "Na hora de brincar e aprender, as atividades também são mecânicas, limitando-se à repetição de letras ou desenhos prontos para colorir."

"No geral, a educação infantil ainda carece de profissionalismo e de reflexão sobre sua prática", completa a historiadora e pedagoga Fátima Camargo, uma das coordenadoras do Espaço Pedagógico, instituição privada de formação de educadores em São Paulo. Ela comenta que houve um boom de escolinhas particulares nas cidades, muitas vezes seguindo modismos ou propostas vazias.

É certo que, ao mesmo tempo, há experiências pioneiras que constroem um trabalho diferenciado em diversas cidades do país. "Mas ainda são ilhas de excelência", assegura a psicopedagoga Clélia Pastorello, com mais de 40 anos de experiência na educação pública e privada. Na sua opinião, a qualidade geral só virá com "um projeto político de educação que defina princípios e articule essas experiências".

A conquista de qualidade acompanha a mudança do enfoque assistencial – que apenas cuida – para o educativo. Disposta a provocar essa transição, a nova LDB de 1996 estabeleceu metas importantes para os municípios, que se cumpridas poderiam revolucionar o atendimento.

Até o final de 1999, segundo a lei, as creches da rede municipal deveriam ter passado das secretarias de Assistência Social para as de Educação. Ao mesmo tempo, cada município deveria ter providenciado o credenciamento e autorização de funcionamento de todas as escolinhas, berçários, maternais, creches particulares ou beneficentes, estabelecendo critérios para o espaço físico, a proposta pedagógica, a qualificação dos profissionais, além de mecanismos de fiscalização e penalização. A LDB também estabelece que até o ano 2007 todos os educadores da rede básica de ensino tenham curso superior. Passados pelo menos três anos, não se sabe quantos municípios realizaram a tarefa. Imagina-se que poucos.

"Toda essa transição traz implicações que os governos municipais não querem enfrentar, como o investimento na qualificação dos professores e a construção de um conteúdo pedagógico", diz Takemoto. Em sua opinião, faltou até mesmo o exemplo da cidade de São Paulo, que tem a maior rede de creches do país e podia ter se tornado uma forte referência. Para concretizar as mudanças, ele destaca o papel dos conselhos municipais e estaduais de educação e a cobrança da própria população.

Os municípios, por sua vez, repassam à União e aos estados a responsabilidade pela demora. "Em relação à transferência das creches e pré-escolas, esperamos a regulamentação do ministério, que só saiu no decorrer de 1998. Além do mais, ainda há um grande receio em relação aos recursos, pois não sabemos se continuaremos recebendo a verba federal e estadual hoje destinada às creches", informa Marleide Lorenzi, da Undime.

Formando o professor

A tarefa que tem sido mais assumida até o momento, segundo Marleide, é a formação dos profissionais, que engloba o estudo regular e a formação contínua em serviço. Não por mera coincidência, esse tem sido o maior investimento do ministério nos últimos anos. A formação dos professores é considerada a chave da qualidade, pois tudo começa com a compreensão e discussão dos novos valores, princípios e práticas da educação infantil.

Em 1998, o MEC lançou o primeiro Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (ver texto abaixo). "Nosso objetivo maior é gerar a reflexão do professor sobre sua prática, para que ganhe qualidade", diz Stela Maris Oliveira, da coordenação do ministério. Contra o risco de produzir mais um documento destinado às gavetas, o MEC iniciou em julho de 1999, com duração de um ano, o Programa Parâmetros em Ação, levando a discussão do referencial às lideranças da educação pública de todo o país.

"A partir do diálogo com as experiências e os conhecimentos locais, apresentamos novos conteúdos e possibilidades", diz a educadora Rosana Dutoit, coordenadora pedagógica da Creche Central, da USP, e integrante do Parâmetros em Ação. Ela reconhece que a iniciativa é apenas um começo, pois "a mudança só será concretizada com o envolvimento constante da escola na discussão das práticas".

"A formação do educador não é uma capacitação ou reciclagem, mas um processo de reflexão permanente sobre seu dia-a-dia", completa Fátima Camargo, do Espaço Pedagógico. "Cada escola deve destinar tempo e espaço para o estudo, discussão e troca entre os professores." Em sua opinião, ela deve ter clareza de suas escolhas e coerência entre discurso e prática.

Até o momento, poucas creches e pré-escolas já se mobilizaram, mas algumas entidades têm um valioso repertório a oferecer. "Temos conquistado resultados animadores, com importantes mudanças no pensamento e na ação dos educadores – o que representa uma grande diferença na vida das crianças e da comunidade", assegura Silvia Carvalho, do Crecheplan. Nos últimos 13 anos, a entidade tem desenvolvido uma metodologia de formação do educador em serviço. O trabalho de dois anos começa com um diagnóstico e avaliação da creche. A partir de então, ganham vez a observação, a troca e o diálogo entre a equipe e toda a comunidade escolar – da coordenação à cozinha, passando pelos educadores e pelas mães.

Nesse processo, algumas transformações vão acontecendo. Os brinquedos descem do alto das prateleiras, os livros são destrancados da biblioteca, o prato de comida não chega mais pronto às mesas. "A turma passa a ser desafiada", diz Silvia. "O educador, por sua vez, se entusiasma com o trabalho ao descobrir a criança como parceira na convivência e no aprendizado."

 

Gente pequena

A criança, desde os primeiros momentos da vida, é um ser humano completo. Está em desenvolvimento, mas não significa que virá a ser alguém – já é. Tem necessidades e capacidades próprias, que devem ser respeitadas e desenvolvidas. Desde sempre, é uma cidadã, que participa e interage com a sociedade. É esta concepção de criança que está presente no Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil, lançado pelo MEC em 1998, em diálogo com estudos e práticas inovadoras no país e no mundo.

Cada pessoa começa a construir conhecimentos e desenvolver habilidades logo no primeiro ano de vida ao interagir com os outros e com o meio onde vive. "As creches e pré-escolas, portanto, devem ser um contexto que favoreça esse processo", diz a educadora Rosana Dutoit, coordenadora pedagógica da Creche Central, da USP, e integrante do Programa Parâmetros em Ação, do MEC.

A brincadeira, o movimento, os livros, desenhos e figuras, a conversa, música e natureza, as operações e os números são vivências e informações que pertencem a essa fase da vida e devem ser os eixos do trabalho do educador. "Não estamos falando em preparação para uma escolaridade futura, mas em enriquecimento de sua vida presente", diz Rosana.

Ao mesmo tempo, ações rotineiras como comer, tomar banho e escovar os dentes ganham um valor educativo. "Deixar uma criança de cinco anos se levantar da mesa e se servir sozinha mostra que ela é entendida como alguém que pode escolher, tentar e decidir e, ao mesmo tempo, que cabe ao educador apoiar, incentivar e respeitar suas escolhas."

Segundo o documento do MEC, as creches e pré-escolas podem e devem colaborar com o desenvolvimento afetivo, social, físico, cognitivo, estético e ético da criança pequena. No dia-a-dia, as atividades e atitudes do educador devem levá-la a construir uma imagem positiva de si. Por outro lado, devem proporcionar a descoberta e conhecimento progressivo do seu corpo, desenvolvendo e valorizando hábitos de cuidado com a própria saúde e bem-estar.

Ser um lugar que promova vínculos de afeto e troca com adultos e crianças torna-se outro dos objetivos da educação infantil. Também deve ser permitida e incentivada a observação e exploração do ambiente com uma atitude de curiosidade. O conhecimento da arte e da cultura, que a criança saboreia e cria à sua maneira, precisa ser continuamente proporcionado. Sem esquecer do brincar, reconhecido como vital para expressar emoções, sentimentos, pensamentos, desejos e necessidades.

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