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Em bom português

Cresce o interesse pelo estudo e uso correto do idioma de Camões

RODRIGO ARCO E FLEXA

Em tempos de globalização, a prioridade é aprender inglês, certo? Nem tanto. Um número crescente de brasileiros vem descobrindo a importância de uma outra língua. Sabe qual? Pois é, o português. Saber se expressar adequadamente na própria língua é uma exigência cada vez maior do mercado de trabalho. O que abrange desde a redação de uma nota até a eficácia de uma fala durante uma reunião. Nos últimos anos, multiplicaram-se as colunas de jornais e programas de rádio e TV dedicados ao uso do português, e cresceu muito o volume de publicações na área. Sem falar em cursos promovidos por empresas. O interesse pelo assunto leva ao chão o mito do brasileiro como um povo que não dá importância ao seu idioma. Na realidade, a língua portuguesa é um tema com audiência garantida.

"Descobrimos que o português dá ibope", afirma o professor Sérgio Nogueira Duarte. Autor da série de livros "Língua Viva" (Editora Rocco), Sérgio Nogueira escreve uma coluna semanal com o mesmo nome para o "Jornal do Brasil", além de apresentar um quadro no jornal "Hoje", da TV Globo. Em seus comentários, o professor procura responder às centenas de cartas que recebe mensalmente, dos mais variados públicos. "São estudantes, profissionais e mesmo aposentados. O brasileiro gosta mais da língua portuguesa do que se imaginava", diz.

A preocupação com o português não se limita ao campo do trabalho e dos estudos. A língua portuguesa também está em discussão no Congresso Nacional, por meio de um projeto de lei do deputado federal Aldo Rebelo (PC do B de São Paulo). O projeto tem como objetivo proteger o idioma nacional contra a excessiva incorporação de termos ingleses. A iniciativa é polêmica, mas já conta com o apoio da Academia Brasileira de Letras (ABL). "Sou favorável. A academia vai colaborar no projeto", afirma o escritor Arnaldo Niskier, presidente da ABL.

Defesa da língua

O projeto de lei visa tornar obrigatório o uso do português no trabalho, nas relações jurídicas e na expressão oral, escrita, audiovisual e eletrônica de todos os documentos e eventos públicos. Também deverão ser escritos e falados em português a publicidade, os textos de imprensa, TV e rádio, assim como as embalagens e toda e qualquer comunicação dentro do território nacional. A proposta, no entanto, faz diversas ressalvas, como em situações associadas à liberdade de expressão e pensamento, em atividades artísticas, intelectuais, científicas e de comunicação.

De acordo com o projeto, o uso desnecessário, abusivo ou enganoso de palavra ou expressão estrangeira será tratado como lesivo ao patrimônio cultural brasileiro. Os infratores serão punidos com multas que chegam a R$ 12 mil, no caso de empresas. A proposta, no entanto, deve receber emendas, pois ainda falta maior detalhamento das situações isentas de multa. A expectativa é que o projeto seja levado para votação ao longo do ano 2000. Assim, a discussão promete esquentar nos próximos meses. "Mais do que uma lei, estamos criando no Brasil o Movimento Nacional de Defesa da Língua Portuguesa", afirma o deputado Aldo Rebelo.

Segundo ele, nosso idioma está sendo desfigurado por um excesso de estrangeirismos incorporados ao vocabulário de forma estranha à grafia e à pronúncia clássicas do português. "Quem sai às ruas, principalmente de uma cidade como São Paulo, corre o risco de precisar de um dicionário bilíngüe para entender o que dizem as faixas, os cartazes, os rótulos de produtos", diz o deputado.

A constatação é inegável. Não faltam exemplos, especialmente numa visita a qualquer shopping center (essa, uma expressão já há muito incorporada): entrega em casa é delivery, liquidação, sale, desconto, off, e por aí vai. Já no campo esportivo surgiu o beach soccer, que dá nome ao futebol jogado na areia, além do play-off, usado para designar séries de três partidas eliminatórias entre equipes de futebol. No caso da informática, a terminologia inglesa é hegemônica, mesmo quando existem termos correspondentes em português, como no caso de "programa", para software, e "sítio", para site.

Mouse e rato

Na realidade, a presença do inglês na língua portuguesa vem de longe. Inúmeras palavras do cotidiano têm essa origem (os chamados anglicismos): "bife" (de beef), "clube" (club), "nocaute" (knockout), "iate" (yacht) e "teste" (test). Somente no caso do futebol (uma invenção britânica, o football), o universo abrange todo o campo de jogo. "Gol" vem de goal, "time", de team e "beque", de back.

A diferença é que, hoje em dia, a influência é muito mais intensa. Ela pode ser conferida em novas edições de dicionários (os quais, aliás, são atualizados com freqüência cada vez maior). É o caso do Novo Aurélio – Século XXI (lançado em novembro pela Editora Nova Fronteira), que já relaciona diversos termos recentemente incorporados ao português. Há desde palavras inglesas como "enter" (o comando do computador para processar informações), até adaptações como "deletar" (apagar um arquivo de computador).

A última versão do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, editado pela Academia Brasileira de Letras em 1998, também registra incorporações ao português como "internet", "intranet" e "mouse", além de adaptações como "scanear". A comissão de especialistas da ABL que analisa o registro de novas palavras leva em conta aspectos como a difusão do termo, além de constatar a existência ou não de uma expressão correspondente na língua portuguesa.

A invasão de termos ingleses não é experimentada apenas pelo Brasil. É um fato do mundo de hoje, que reflete a preponderância econômica dos Estados Unidos. Historicamente, o latim já desempenhou esse papel, durante o Império Romano. O francês também exerceu grande influência, até o início do século 20.

Atualmente, no entanto, há países que procuram estabelecer leis que regulem esse processo. É o caso da própria França, que tem leis que vetam o uso do inglês em anúncios públicos e documentos oficiais, até mesmo com a aplicação de multas. Em Portugal a preocupação também existe, e muitos termos da informática são traduzidos, como "sítio" e "rato" (o mouse).

É com exemplos como esses que o deputado Aldo Rebelo fundamenta sua proposta de lei. "Nosso projeto segue a tradição altiva de países como a França, que preserva seu idioma dos anglicismos, e de províncias como o Quebec, no Canadá, que também tem uma lei de defesa do francês", afirma. "Nem o projeto é autoritário nem a desnacionalização da língua é inevitável. Seu objetivo é fazer o poder público incentivar o ensino e a aprendizagem da língua", diz.

Identidade cultural

O nó da polêmica é saber até que ponto uma lei pode exercer o papel de defesa da língua. "A influência do inglês é inevitável. Mas devemos zelar para que não haja exageros, como esse famigerado play-off", afirma Arnaldo Niskier, presidente da Academia Brasileira de Letras. O professor Sérgio Nogueira entende que o projeto de Aldo Rebelo já é vencedor por colocar o tema em debate. "A iniciativa é bem-vinda. A língua portuguesa merece a nossa luta em sua defesa", diz.

Mas o professor faz uma ressalva: "Discordo da punição. Dificilmente ela será posta em prática, o que poderá ridicularizar a própria lei". Sérgio Nogueira também entende a absorção de termos estrangeiros como um fenômeno natural. "A língua é um sistema evolutivo", diz. Por esse motivo, é permeável a influências estrangeiras.

"Não sou contra a utilização de um termo que não tenha tradução, como é o caso de dumping, palavra que somente posso traduzir para o português por meio de uma frase", esclarece Sérgio Nogueira, sem deixar de explicar o sentido de dumping. "O termo designa o processo pelo qual empresas baixam preços para quebrar a concorrência", diz o professor. "O problema é o exagero. Isso deve ser ridicularizado", afirma.

Essa também é a visão de Henrique Murachco, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Especialista em grego antigo, Murachco é responsável pela organização e tradução da obra clássica Diálogo dos mortos, de Luciano (publicada pela Edusp). "A língua é o instrumento maior da identificação de um povo", diz. "Se for descaracterizada, perde-se a identidade", afirma.

O professor analisa com receio a excessiva incorporação de termos ingleses ao português. "Só poderíamos aceitar palavras estrangeiras que não tenham equivalentes na língua portuguesa", observa. Murachco entende ser importante a criação de uma lei que estabeleça princípios gerais sobre o assunto. "Mas ela não pode ser nem burocrática nem severa demais", pondera.

Evolução social

Outros especialistas não poupam críticas ao projeto de lei. "Vejo isso como um patriotismo exaltado", diz Dino Preti, professor do Departamento de Língua Portuguesa da PUC de São Paulo e coordenador do Projeto Nurc (Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta do Brasil) – programa criado em 1970 com o objetivo de documentar e descrever a norma objetiva do português falado no Brasil. "Não há como uma lei controlar a dinâmica da língua. Ela é produto da evolução social", diz o professor. "O comércio usa o inglês simplesmente por causa do prestígio da língua, que ajuda a vender", aponta.

Esse fato, no entanto, não significa o comprometimento da língua portuguesa. É o que diz o lingüista Marcos Bagno, autor de Preconceito lingüístico : O que é, como se faz (Editora Loyola) e A língua de Eulália: Novela sociolingüística (Editora Contexto): "Os estrangeirismos contribuem no nível mais superficial da língua, que é o léxico, o vocabulário. As estruturas sintáticas e morfológicas da língua não sofrem alteração. Os estrangeirismos não têm a força destruidora que os puristas e ‘defensores’ da língua lhes atribuem", diz o pesquisador.

Para reforçar seu argumento, Bagno também cita a influência do francês. "Até o final do século 19, era essa língua que dominava a vida cultural no mundo, e os puristas do português faziam feroz campanha contra a ‘malária francesa’, como disse um deles. A língua portuguesa nem por isso deixou de continuar viva e dinâmica", conta. "O tempo dirá que palavras ficarão incorporadas ao léxico do português, devidamente aportuguesadas (como aconteceu com ‘boate’, ‘controle’, ‘detalhe’, ‘jornal’, ‘repórter’, entre milhares de outras) e que palavras serão descartadas", afirma.

O pesquisador ainda enfatiza a importância de preservar a liberdade de expressão individual. "O cidadão tem de ser livre para falar do modo que lhe parecer adequado e aceitável. A língua é o seu veículo de pensamento, e não há lei capaz de interferir na maneira como uma pessoa pensa", diz. Segundo ele, o projeto quer combater os males da globalização ("que são mesmo muitos e terríveis") atacando um de seus efeitos mais inofensivos. "Que tal uma lei para melhorar o salário dos professores, que continua obsceno?", pergunta.

Adequado ou não

De fato, quando se fala na língua portuguesa, é impossível não mencionar os crônicos problemas enfrentados pela rede de ensino, especialmente a escola pública. Ainda mais no caso de um país que ostenta uma população de analfabetos próxima a 20 milhões de pessoas. A situação é complexa, e abrange desde a falta de estímulo dos professores, devido a baixos salários, até a necessidade de modernização e atualização dos conteúdos ministrados em aula.

"É comum o aluno ser submetido a um ensino formalista, que não explica a razão das coisas", afirma Henrique Murachco. "Quando é corrigido e pergunta a razão disso, ouve como resposta: ‘Leia a gramática’ ", diz. O professor critica a forma desinteressante como a língua portuguesa é apresentada a tantos estudantes. "O aluno recebe a idéia de que os problemas da língua não são compreensíveis. Deve-se ‘aprender’ e pronto", diz.

Isso tem como conseqüência uma separação entre ensino e realidade. "Para o aluno existem duas línguas completamente diferentes. A que ele fala em casa, na rua e no futebol, e a que aprende na escola." O professor entende que o gosto pelo português deve ser despertado por meio do contato com a literatura, em todas as suas formas.

Outro ponto essencial que o aprendizado envolve é a antiga noção de certo e errado. Trata-se de um conceito em reformulação. Hoje em dia, fala-se em adequação. Desse modo, variantes lingüísticas da norma culta são legítimas quando utilizadas em um contexto adequado. "Ninguém fala com uma gramática embaixo do braço", aponta Dino Preti. "Existe um uso adequado da língua para cada situação", diz.

O professor estende o conceito às inúmeras falas regionais do país. "Se o caipira não puder falar à sua maneira, ficará despersonalizado", explica. "Nenhuma variante da língua é melhor ou pior", afirma. Da mesma maneira, Dino Preti defende a utilização de gírias. "As transformações lingüísticas são conseqüência das transformações sociais. As gírias estão em todas as bocas, tanto as cultas quanto as não cultas", diz. O professor também entende que todas essas possibilidades devam ser apresentadas aos estudantes. O que não significa, porém, que a norma culta seja posta de lado.

As variações da língua podem ser constatadas até na Internet, por exemplo em salas de bate-papo (os chats) ou mesmo na correspondência eletrônica, onde, em situações não profissionais, costuma ser utilizada uma linguagem carregada de gírias, abreviaturas e sinais gráficos – o que não deixa de ser uma experiência para o tão difícil ofício da escritura. "É sempre um exercício para quem não escrevia, e que colabora para a organização mental", diz Sérgio Nogueira.

Futuro do português

A acelerada dinâmica da língua também coloca em questão o futuro do português. Não faltam previsões catastróficas, que, por enquanto, não passam disso. A única certeza é que a língua portuguesa está em evolução. Mas o resultado disso daqui a algumas décadas não pode ser imaginado. "O futuro do português está ligado ao futuro econômico do Brasil", diz Sérgio Nogueira.

Atualmente, o português é falado por cerca de 200 milhões de pessoas. Somente o Brasil compreende 80% dessa população. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda reúne Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe (os últimos cinco na África), além de Macau, Timor e Goa, no Oriente (região também marcada pela colonização portuguesa).

O português é considerado a quinta língua em importância do planeta. Mas o fato de não ter uma só ortografia oficial – situação que remonta ao início do século 20, quando Portugal promoveu a primeira grande reforma ortográfica, não extensiva ao Brasil – é considerado prejudicial para a ampliação do prestígio internacional da língua. Esse é um dos argumentos que alimentam o projeto de acordo ortográfico dos países de língua portuguesa.

Não é a primeira vez, no entanto, que se busca esse objetivo. Diversas tentativas de unificação já falharam, o que mostra que o desafio é enorme, pois envolve realidades bastante diversas. Entre as dificuldades, há o aspecto econômico, devido à necessidade de republicação de livros e documentos, após uma reforma ortográfica. Talvez por isso o projeto esteja "lamentavelmente parado desde 1990", segundo Niskier.

No entanto, ele acredita em sua viabilidade. "É certo que a língua hoje falada no Brasil, como a usada em Portugal, evoluiu. Talvez no futuro se possa falar em língua brasileira, em língua angolana, em língua moçambicana e em língua guineense. Mas, hoje, é preciso batalhar, como faz nosso Itamaraty, pela sua unificação."

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