Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

As luzes da estação

Foto: Célia Thomé de Souza

Marco histórico e arquitetônico de São Paulo aguarda restauração

CECÍLIA PRADA

Um dos autores que captou melhor a angústia do homem contemporâneo diante da paisagem constantemente modificada e descaracterizada das metrópoles do Novo Mundo foi o norte-americano Marshall Berman. Tomando como epígrafe uma frase de Karl Marx, "Tudo o que é sólido desmancha no ar", num memorável ensaio da década de 80 ele analisou o dilema imposto pelo "progresso" aos que, felizes na rotina frágil e precária do cotidiano, tornam-se "mais vulneráveis aos demônios que assediam este mundo", porque manter esse tipo de vida "exige esforços desesperados e heróicos: e, às vezes, perdemos".

Enfrentando uma rotina de violência e degradação ambiental constante, o cidadão desta multidesvairada Paulicéia fim-de-século não pode deixar de perguntar: para onde vai esta cidade? Será possível continuar a viver nela, aproveitar seu enorme potencial humano, cultural, social?

Perguntas complexas, cujas respostas incluem a possibilidade de preservação e recuperação de áreas e edifícios de nosso centro histórico, com a transferência de um contingente humano considerável, desprovido de moradia, emprego, condições sadias de vida. Uma preocupação de movimentos organizados e atuantes, como o Viva o Centro e a Operação Urbana Centro. E de autores de projetos que visam englobar os esforços dos vários setores, federal, estadual e municipal, do patrimônio histórico, em convênio com instituições financeiras internacionais.

Mas enquanto a recuperação do espaço da Estação Júlio Prestes, com sua transformação em sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, dotou-a de visibilidade imediata e de alcance internacional, quem passa por um dos monumentos arquitetônicos mais simbólicos de nossa cidade, a centenária Estação da Luz, sente o coração apertado: a famosa torre, escurecida, dilapidada, a precariedade de todo o edifício, o ar de abandono da região, reduto de marginais e drogados, despertam sérias dúvidas se as verbas de sua recuperação chegarão em tempo para evitar, inclusive, uma catástrofe – segundo especialistas, o teto pode até desabar, num dia destes, sobre os freqüentadores. Ou, antes que isso aconteça, é possível que uma fatal interdição de uso tenha de ser de uma hora para outra estabelecida – mais grave do que a da Catedral da Sé, por envolver a rotina diária dos seus 40 mil usuários.

A depredação constante e prolongada do edifício faz até lembrar, aos mais velhos, uma certa madrugada de 6 de novembro de 1946, em que os bairros do velho centro, Luz, Bom Retiro, Santa Ifigênia e Campos Elísios, viram-se de repente invadidos por uma chuva fina de cinzas, fragmentos de papéis chamuscados, um forte cheiro de queimado. O cartão-postal mais tradicional da cidade estava pegando fogo.

Esse incêndio devastador, comprovadamente criminoso, coincidia com a encampação da São Paulo Railway (SPR) pelo governo.

Mas não eram somente os ingleses que se retiravam, queimando, literalmente, suas pontes. Era toda uma época que se encerrava no Brasil – o início do sucateamento completo de nosso patrimônio ferroviário, em prol da implantação da indústria automobilística. Algumas décadas mais tarde já se lamentava o absurdo de desativar um sistema de transporte que nem recentemente, com o esforço das privatizações, pôde ser recuperado – o último trem de longo percurso, o prodígio de luxo e glamour que foi o Trem de Prata, que ligava São Paulo e Rio de Janeiro, deixou de circular em novembro de 1998.

Enquanto nos países mais desenvolvidos as ferrovias continuam a competir em pé de igualdade com o transporte rodoviário, e velocíssimos trens de design ultramoderno, como o TGV francês ou o trem-bala japonês, revitalizam a comunicação entre os pontos mais afastados, no Brasil continuamos a desperdiçar recursos naturais – a topografia plana, as disponibilidades de força motriz elétrica – e a depender quase exclusivamente do combustível importado.

Uma situação de difícil reversão, pelo que dizem os especialistas, visto que todo o sistema ferroviário brasileiro nasceu já com um erro de implantação – o traçado das nossas principais ferrovias, surgidas entre 1854 e 1901, não desenvolveu o sonho de integração nacional do regente padre Diogo Antônio Feijó, que em 1835 assinara a primeira lei que as criava. No entanto, a construção dos 139 quilômetros da São Paulo Railway (popularmente chamada apenas de "a Inglesa") foi uma obra maior de engenharia, principal fator do desenvolvimento econômico da província de São Paulo. Seu engenhoso sistema de cremalheiras realizava o mais antigo sonho paulista: a conquista da serra do Mar e a abertura do porto de Santos para o comércio exterior e para a acolhida às grandes levas migratórias européias.

O milagre ferroviário reduzia a pouco mais de duas horas a travessia da serra, problema que desde os primórdios desafiava a população do planalto – no tempo da fundação de Piratininga, os jesuítas haviam levado quase 20 dias, por brenhas e despenhadeiros, canoa e muares, para chegar do litoral. E mesmo depois de abertos caminhos mais curtos e conservados – o próprio Anchieta abriria o primeiro, o Caminho do Padre José –, no século 19 os tropeiros e comerciantes ainda não faziam a viagem, em lombo de cavalo ou burro, em menos de três dias.

O tráfego da SPR foi inaugurado no dia 6 de setembro de 1865, embora de forma pouco auspiciosa: o trem oficial descarrilou, chegando a causar ferimentos leves em alguns dos ilustres convidados, entre os quais estavam conselheiros e o presidente da Câmara Municipal.

Esplendor e decadência

O primeiro edifício da Estação da Luz, inaugurado em 1867 em terreno destacado da área do Jardim da Luz, redefinia toda a área central da cidade e constituía-se em ponto nevrálgico para todo o tráfego urbano e o comércio, favorecendo também o desenvolvimento dos bairros adjacentes – como os Campos Elísios, antiga chácara do barão de Mauá, o primeiro bairro planejado que tivemos, projetado pelos arquitetos alemães Glette e Nothmann.

Na Rua Mauá, atrás da estação, a partir da década de 80 começaram a surgir hotéis luxuosos, que mudavam os hábitos dos viajantes – até então, quando vinham do interior os paulistas preferiam ir para a casa dos parentes. Em 1865 o imigrante Donato Severino já obtivera concessão para instalar ali um serviço de coches e tílburis. Havia também um serviço de diligências que iam esperar o trem, nos horários previstos, conectando a estação com o centro. Em 1871 circularam os primeiros "bondes", sobre trilhos de ferro e com tração animal. E finalmente, após o término do novo edifício da estação, apareceram em 1900 os bondes elétricos da Light. Uma das primeiras linhas, Bom Retiro-15, passava nas proximidades da estação. Em 1915 era criada uma linha especial, a Aurora, que ligava o centro às estações da Luz e Sorocabana.

Mas a capacidade operacional do edifício simples, utilitário, da primeira Estação da Luz seria quase imediatamente ultrapassada pelo gigantesco crescimento da capital, que passaria de uma população de 26 mil habitantes em 1872 a 240 mil, em 1900. Já na década de 1870 ampliava-se a estação original, sem resolver o problema. Nos últimos anos do século foram iniciadas as obras de um novo edifício, a terceira Estação da Luz, que ainda está aí, decadente mas destacada na paisagem paulistana, reconstruída após o incêndio de 1946. Em 1900 já estava toda pronta e em funcionamento. Aliás, conviveu durante algum tempo com a estação original, para que o tráfego não sofresse interrupção. Mas a inauguração só foi feita no dia 6 de setembro de 1901.

Maria Inês Dias Mazzoco, diretora do Patrimônio Histórico da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (nome assumido pela "Inglesa" após a encampação de 1946), salienta a originalidade da construção, um dos mais belos monumentos da arquitetura em ferro existentes no mundo. Diz: "A Estação da Luz é uma testemunha viva da nossa história. Podemos dizer que foi a verdadeira porta desta cidade, aberta para o mundo, a personificação daquela magia inerente ao trem de ferro no imaginário de todos nós".

Lembranças e problemas

Maria Inês é de uma família de ferroviários: seu pai foi administrador da Seção de Transportes e da Rede Ferroviária Federal e seu avô paterno foi diretor social do clube da ferrovia. Como diretora do Patrimônio Histórico, tenta preservar as lembranças da época de fausto e procura resolver os numerosos problemas da rotina diária da estação, reduzida hoje a um grande entroncamento dos trens metropolitanos.

Todos a conhecem – "até as prostitutas do local", diz. Certa vez, aliás, Maria Inês organizou uma excursão para elas até Paranapiacaba. "Ficaram muito gratas, me beijaram", lembra. Agora conta com a colaboração delas quando, por exemplo, interdita parte da estação para filmagens, inspiradas pela beleza arquitetônica do local.

O projeto, em estilo eclético vitoriano, veio da Inglaterra. Das forjas inglesas saíram também o grande arcabouço de aço, as arcadas gigantescas, as pequenas pontes que ligavam a Rua Mauá ao Jardim da Luz, e até os pregos e tijolos. Coube, porém, ao superintendente da SPR, William Speer, introduzir no projeto original, em 1899, o rebaixamento do nível das linhas, para que estas não atrapalhassem o fluxo do trânsito no sentido norte-sul da cidade. Iniciativa notável, pois evitou que se repetisse na Luz o que aconteceu durante décadas a fio com as famosas e incômodas "porteiras do Brás".

Maria Inês sente não poder incorporar ao patrimônio alguns rolos de filme que lhe ofereceram, que teriam sido feitos pelo Corpo de Bombeiros, na ocasião do incêndio. Um documento precioso, mas que custaria R$ 15 mil. E diz: "A história da estação está ligada a acontecimentos importantes, como a visita do rei Alberto da Bélgica, em 1922, e às revoluções todas, da de 1924 à de 1964. Eu me lembro desta – a ferrovia lotada de soldados, o medo das crianças que, como eu, iam para a escola, as manifestações..."

A restauração

Enquanto a torre da Luz espera, com fleuma britânica, as verbas necessárias à sua restauração, o tempo e seus aliados terroristas – cupins, infiltrações, corrosão de materiais – vão velozmente trabalhando contra a realização desse sonho antigo. Há anos a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) espera a liberação de verbas federais, em convênio com o Bird (Banco Mundial), para o restauro da estação, explica a historiadora Maria Aparecida Lomônaco, do Departamento do Patrimônio Histórico Municipal.

Para esse restauro, foi apresentado em 1988 o projeto da arquiteta Helena Saia, que defende a preservação das características originais da estação. Devido a necessidades de modernização da gare para ampliação do fluxo de trens, contudo, em 1997 a equipe técnica da CPTM introduziu algumas modificações na proposta da arquiteta.

O projeto alternativo pretende reciclar o antigo edifício, dele mantendo, interiormente, apenas a passarela central, e propõe mudar o eixo do seu funcionamento para um sentido longitudinal.

Helena critica especialmente uma das mudanças propostas: a construção de duas plataformas de concreto entre os níveis, com a retirada das pontes metálicas características. Na sua opinião, isso seria um "disparate arquitetônico, um atentado ao nosso patrimônio". Alguns especialistas de nível internacional foram consultados por ela sobre essa desfiguração. O arquiteto argentino Jorge Tartarini, que considera a Estação da Luz e o Terminal de Retiro de Buenos Aires "os dois maiores expoentes da arquitetura ferroviária na América Latina", declarou: "A notícia da possibilidade da retirada das pontes metálicas da Estação da Luz é preocupante, pois mutila uma parte importante dessa identidade que é necessário preservar, e que deveria conviver com o novo programa de usos". De acordo com o brasileiro Geraldo Gomes da Silva, por sua vez, "as partes metálicas das estações ferroviárias são os fatos arquitetônicos que prenunciaram a arquitetura moderna e, sob esse ponto de vista, são o que se deve preservar nesses edifícios".

Defendendo as premissas de sua proposta original, Helena Saia exalta a importância histórica da estação: "A torre da Luz foi a primeira a disputar a primazia com as torres das igrejas, e como tal a estação tornou-se também um templo, não sagrado, presente na nossa história desde o tempo dos imigrantes e da elite cafeeira, testemunha da modernidade que resistiu até mesmo à fúria destrutiva de personalidades como a de Prestes Maia".

Enquanto os especialistas discutem e os políticos não decidem, o patrimônio se perde. Infiltrações graves comprometem as estruturas, e as piores rachaduras se apresentam no concreto mais recente. Na parte que dá para a Rua Mauá, a infiltração contínua forma riacho nas calçadas. É visível a corrosão das estruturas metálicas, com grandes vãos se abrindo entre peças básicas. Sucedem-se, com freqüência diária e grande risco para os usuários, consideráveis desprendimentos da argamassa da fachada e queda de elementos decorativos, externos e internos. E os infatigáveis cupins se banqueteiam.

Além disso, o projeto, que requer um prazo de realização de cinco anos, deveria tentar sanar os inconvenientes da apressada reforma pós-incêndio, dirigida pelo arquiteto Felisberto Ranzinni. Diz a arquiteta Helena Saia: "Os grandes danos causados pelo sinistro são ainda visíveis. Nas paredes que ficaram em pé perderam-se belíssimas pinturas, cujos vestígios ainda são encontrados sob as camadas de tinta. E o terceiro andar, acrescentado num esforço utilitário, desvirtuou a leveza e a graça da fachada original".

Para piorar o quadro, outro projeto que beneficiaria indiretamente a estação também está parado. É o Monumenta-BID, que visa a recuperação e a revitalização de todo o entorno da estação e adjacências (ver PB 327, maio/junho de 1998, pág. 16). O plano, com verba de US$ 12 milhões aprovada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) espera até hoje que a prefeitura paulistana dê sua contrapartida – 20% do total –, segundo cláusula do convênio firmado.

Personagens da Luz

Para quem trabalhou na Estação da Luz em seus tempos áureos, quando os trens chegavam e partiam levando passageiros para cidades distantes, é triste vê-la completar cem anos no estado em que se encontra. Pedro Martins, 74 anos de idade, há 24 é o encarregado do guarda-volumes e hoje em dia vive em suspense, pois seu setor corre sério risco de fechar, por ter deixado de dar retorno financeiro. Assim como ele, Reinaldo de Souza, de 68 anos, lança um olhar nostálgico ao passado. Trabalha há 49 anos na estação como engraxate e não se conforma com a atual falta de segurança. Já presenciou vários assaltos, algo que antes não acontecia.

Mas o retrato mais bem acabado do que já foi a Estação da Luz está numa velhinha encantadora, que aos 82 anos ainda mantém o porte ereto e um ar altivo, apesar da pequena estatura. Francisca de Freitas Nunes, a Chiquita, foi, por 37 anos, a responsável pela sala de senhoras da estação, um recinto em que as mulheres dispunham de toalete e podiam relaxar, aguardando pelo embarque longe da multidão. Simpática e cativante, Chiquita ganhava muitas "caixinhas", e com uma parte delas sempre comprava flores para enfeitar o ambiente.

Chiquita faz questão de dizer que foi muito feliz ali e fez muitos amigos, e seus olhos brilham à medida que ela mergulha em lembranças. De tantos acontecimentos, ela destaca dois, que a marcaram muito.

Certa vez, um senhor muito rico vinha de trem com a família de São José do Rio Preto para São Paulo quando sofreu um ataque cardíaco e morreu. Ao chegar à Estação da Luz, o corpo foi colocado na sala de senhoras até que fosse removido. Durante esse tempo, Chiquita, apesar de abalada, se manteve em seu posto, ao lado da família.

Em outra ocasião, uma mulher grávida estava na sala de senhoras e entrou em trabalho de parto. Chiquita chamou os guardas ferroviários, mas, quando chegaram, ela já estava com o bebê no colo. Chiquita, que nunca teve filhos, diz que a maior emoção de sua vida foi ajudar aquele menino a nascer, num dia 10 de novembro, "no signo de escorpião", ela ressalta.

A magia do trem de ferro

No imaginário do homem moderno, o "trem de ferro", cuja invenção, iniciada ainda no século 18, só foi completada com a da locomotiva, em 1804, resta até hoje como elemento aglutinador de imagens pictóricas e literárias que fundem o tema genérico do "progresso" com a idéia da nova movimentação, contínua, extensa, libertadora, democrática, que a ferrovia veio possibilitar – um paradigma da ordem oitocentista. A primeira ferrovia do mundo, a Stockton-Darlington, criada na Inglaterra em 1825, tornou-se logo objeto de um romance de Charles Dickens, "Dombey and Son". De lá para cá, a estrada de ferro – com a estação ferroviária, a gare – tornou-se o lugar do encontro e do desencontro, da partida, da chegada, da reunião, da diáspora, o próprio símbolo da Revolução Industrial, elemento presente, quase obrigatório, nas artes plásticas, na literatura, na cinematografia, tema recorrente nos quadros dos impressionistas, cenário freqüente de grandes romances europeus, do trágico "Ana Karenina" de Tolstoi ao sofisticado "La modification", de Michel Butor.

Em seu "Manifesto futurista", de 1909, o poeta Marinetti dizia: "Nós cantaremos as gulosas estações ferroviárias que devoram serpentes emplumadas de fumo, as locomotivas de peito proeminente". E a viagem de trem como possibilidade primordial de evasão foi definida por Franz Kafka, nos seus "Diários de viagem": "Estar sentado num vagão de trem, transformar-se num instante em uma criança que viaja sozinha num trem expresso, e em redor de quem o vagão, fremente de impaciência, se materializa em pormenores fascinantes, como se surgisse das mãos de um mágico".

O trajeto São Paulo–Santos pelo trem de cremalheira da SPR e as pitorescas estações da serra, como Paranapiacaba, foram usados pelo cineasta João Batista de Andrade como cenário poético e surrealista de seu filme "Doramundo". E o compositor Villa-Lobos imortalizou em sua música o jeg-jeg dos nossos trenzinhos caipiras.

Comentários

Assinaturas