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O Brasil no país das minas

Foto: Leonardo Sakamoto

Há interesses brasileiros em Angola, que vive uma sangrenta guerra civil

LEONARDO SAKAMOTO

Angola está completando 25 anos de uma guerra civil. Mais de 1,5 milhão de pessoas foram mortas, e outros milhões – tirados à força de suas casas – vagam sem rumo pelos campos e pelas cidades. Caso não morram de fome, servem de alvo aos bombardeios e expõem-se a 20 milhões de minas terrestres espalhadas pelo território. Dia após dia, cresce o número de internações nos hospitais de pessoas mutiladas. Donas de casa, crianças, soldados sem pernas ou braços. Cegos, surdos, paralíticos. Inválidos. O país mais minado do mundo (são duas minas para cada habitante) ganhou recentemente outro título: o de pior lugar em todo o planeta para uma criança viver.

A guerra, que já teve caráter ideológico entre os socialistas do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e os capitalistas da União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), transformou-se hoje em pura disputa de poder. O presidente José Eduardo dos Santos, do MPLA, reina absoluto desde 1979. Também desde então a Unita, de Jonas Savimbi, luta para tirá-lo de lá.

Enquanto a Unita é financiada por campos de diamantes a leste do território, o MPLA é bancado pelo petróleo abundante, a oeste. Os petrodólares garantem um alto padrão de vida a integrantes do governo, enterrando as instituições públicas até o pescoço na corrupção.

No mês de outubro de 1999, o alto comando da Unita divulgou em nota à imprensa que os "interesses brasileiros em Angola" tornavam-se, a partir daquela data, alvos a ser destruídos. Na semana seguinte, a segurança no vôo Luanda–Rio de Janeiro das Linhas Aéreas Angolanas – o único direto entre os dois países – foi redobrada. Além de passar por vários detectores de metal e revistas policiais, os passageiros tiveram de reconhecer suas malas na pista do aeroporto, ao lado do avião. O governo teme possíveis atentados terroristas.

A mensagem da Unita atingiu em cheio duas corporações multinacionais brasileiras que possuem grandes negócios no país: a construtora Odebrecht e a Braspetro, braço internacional da Petrobras.

A empreiteira baiana é parceira do governo em dois campos de extração de diamantes no interior do país, uma atividade que não agrada aos rebeldes. Um descontentamento compreensível: os dois campos já renderam quase US$ 200 milhões.

Outros projetos sob o controle da Odebrecht são a construção da Usina Hidrelétrica de Capanda, melhorias na infra-estrutura do abastecimento de água em Luanda e a urbanização de cidades. No aeroporto internacional de Luanda, é comum a movimentação de trabalhadores brasileiros ligados à construção civil. O governo brasileiro, através de uma linha de crédito do Tesouro Nacional administrada pelo Banco do Brasil, financia essas obras públicas. Recentemente, Angola remeteu US$ 450 milhões referentes ao pagamento dessa conta.

Apesar de possuir uma fatia pequena do bolo quando comparada a outras empresas petrolíferas, como a Elf e a Chevron, a Braspetro também tem contrato de pesquisa e exploração nas águas angolanas. O acordo com o governo é padrão para todas as empresas: a multinacional utiliza seu próprio capital para realizar sondagens em determinada área. Se encontra petróleo, paga royalties ao governo. Caso não encontre nada, arca com o prejuízo.

A Petrobras é uma das poucas empresas petrolíferas do planeta a dominar a prospecção em águas superprofundas, áreas nas quais foram descobertas novas jazidas em Angola com grande potencial. Atualmente, a Braspetro explora três campos offshore (plataformas marítimas) de petróleo na costa norte do país.

Mas o ódio que a Unita tem ao Brasil não é só por causa dos bons negócios recentes. Nosso país foi o primeiro em todo o mundo a reconhecer a independência angolana e a legitimidade do governo do MPLA. Após as conversações de Lusaka (Zâmbia), em 1994 – uma das inúmeras tentativas de chegar a um acordo que colocasse fim à guerra –, tropas brasileiras foram enviadas para fazer parte da força de paz das Nações Unidas. E ainda hoje, no plenário da ONU, o Brasil apóia incondicionalmente as ações do governo de José Eduardo dos Santos.

E não é para menos. Angola é um dos maiores reservatórios de investimentos brasileiros no exterior. Somando-se o que é injetado nos setores público e privado, o total ultrapassa a marca de US$ 1 bilhão, segundo dados de nosso Ministério das Relações Exteriores.

Parceria

O Brasil também tem em Angola um importante parceiro comercial. É significativa a exportação de produtos brasileiros, tanto do setor agrícola como do de industrializados, para suprir as necessidades criadas pela guerra. De frangos congelados, provenientes da região sul, a automóveis, do sudeste.

Isso sem levar em consideração o comércio de aviões com a Embraer. As estradas estão intransitáveis, esburacadas devido à explosão de minas e com pontes destruídas. Por causa disso, as viagens aéreas têm sido o meio mais seguro de transporte (apesar de os dois lados do conflito possuírem vasta artilharia para abater aeronaves). Aviões de passageiros para vôos regionais fabricados pela Embraer, que no comércio internacional já brigam em pé de igualdade com os canadenses da Bombardier, têm sido bem vistos no país. Aviões militares também. Seis aparelhos modelo Tucano foram adquiridos recentemente para treinamento de pilotos. Isso irritou ainda mais as tropas de Savimbi, que acusa brasileiros de realizarem esse treinamento com a conivência de nosso governo. O Itamaraty nega qualquer envolvimento. Na lista de exportações ainda há outros itens bélicos, como armas e tanques de guerra, um comércio já antigo, que remonta aos tempos da ditadura.

O intercâmbio comercial não se restringe aos gigantes da construção, do petróleo e do transporte. As micro e pequenas empresas brasileiras despontam também como grandes interessadas pelo mercado angolano.

O país teve seu parque industrial reduzido devido à guerra, o que vem obrigando à importação de boa parte dos produtos manufaturados. Como conseqüência disso, os preços são altíssimos, aumentando ainda mais a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Para se ter uma idéia, o queijo prato, considerado produto de luxo, chega a ser vendido pelo valor equivalente a R$ 80 o quilo, enquanto a garrafa de água mineral está cotada em R$ 6.

Uma saída encontrada por pessoas que conseguem guardar algum dinheiro depois de muito esforço é montar um negócio de fundo de quintal, garantindo, assim, uma renda extra. Normalmente, são funcionários públicos que, de dia, carimbam pilhas de formulários nas repartições, mas, de noite, fabricam sabão com soda cáustica e óleo de dendê, fraldas descartáveis e pipoca doce. Além de complementar o salário, barateiam vários produtos no mercado, tornando-os acessíveis à população mais pobre.

Os equipamentos para essas fabriquetas são fornecidos por pequenas indústrias brasileiras que oferecem produtos a preços compatíveis. E, junto com eles, insumos para a produção, como óleo para as máquinas, algodão para as fraldas, linha de costura, sacos plásticos. Essas importações são pagas à vista.

A parceria tem sido vantajosa para ambos os lados. Em vez de se aventurarem em busca de tecnologia norte-americana, européia ou japonesa, os pequenos empresários angolanos têm encontrado no Brasil soluções mais eficazes. Devido às semelhanças físicas e culturais entre os dois países, nosso conhecimento nas áreas de produção se adapta mais à sua realidade. Com isso, o Brasil começa a enxergar na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) um parceiro em potencial.

Assim, se de um lado nosso país tem contribuído para a continuidade da guerra ao comercializar armamentos pesados, de outro tem ajudado o florescimento da pequena empresa local. Em um lugar onde quase não há apoio à pesquisa, esse intercâmbio de conhecimento e tecnologia é fundamental para combater o atraso. Ao mesmo tempo, expande nosso comércio com a África, favorecendo a micro e a pequena empresas nacionais – responsáveis por mais da metade dos postos regulares de trabalho no Brasil.

Guerra de interesses

Bernardete dormia quando ouviu barulhos surdos do lado de fora de sua casa. Ela estava acostumada com o estampido dos bombardeios, mas esse som era diferente, mais próximo. Explosões seguidas de gritos, choro e desespero. A essa altura, a casa não parecia ser tão segura quanto antes, e ela correu para fora. Não percebeu o pequeno embrulho na soleira de sua porta. A explosão arremessou-a para longe. As forças da Unita estavam atacando seu vilarejo, na província de Huambo, região central do país. Antes de disparar as metralhadoras, colocaram uma mina na porta de cada casa.

Quando acordou, Bernardete estava sem o pé direito, mas, felizmente, o filho ainda se mexia em seu ventre. Levada para o hospital esperou. Esperou muito, por não poder pagar as taxas do serviço público de saúde. O atendimento demorou tanto que, quando chegou, teve de amputar a perna direita inteira.

Isso aconteceu em 1998. Hoje, aos 21 anos, Bernardete de Joaquina vive com a filhinha na cidade de Benguela, no sul do país, em um centro de refugiados. Divide espaço com outras 4 mil pessoas em uma antiga escola transformada em depósito de gente.

A guerra civil angolana perdeu a razão de existir há muito tempo. Continua matando a população porque algumas pessoas, de ambos os lados, têm grandes interesses financeiros no conflito. Além de Jonas Savimbi, líder da Unita, muitos integrantes do governo do MPLA recebem milhões de dólares com o superfaturamento de armas, a construção de infra-estrutura militar e o favorecimento de grupos ligados ao exército.

"Generais do exército vendem aos mercados a comida que estava destinada aos soldados e ficam com o dinheiro", denuncia Maria José Fernandes, uma das coordenadoras da Caritas International no país.

Como o governo é financiado pelas vastas jazidas petrolíferas e a Unita pelos enormes campos de diamantes, ambos têm como bancar a guerra por um longo tempo. Mas, mesmo que o conflito terminasse hoje, as próximas gerações ainda continuariam colhendo seus frutos. Desativar uma mina custa mais de mil dólares, enquanto armá-la pouco mais de um dólar. Uma fortuna seria gasta para encontrar e recolher todas elas, considerando que há cerca de 20 milhões de minas espalhadas pelo país.

Em Luanda, esses explosivos estão à venda no maior mercado a céu aberto da África – batizado de Roque Santeiro, em homenagem à novela da Rede Globo – por US$ 10 cada um. Balas custam US$ 4. Lançadores de mísseis e equipamentos mais sofisticados, só por encomenda.

Arrepios

O governo terceirizou o povo angolano. A tarefa de cuidar de refugiados de guerra, de doentes e famintos está quase que totalmente nas mãos de organizações não-governamentais internacionais. Se não fosse o Programa Alimentar Mundial (PAM), os Médicos sem Fronteiras e a Ação Agrária Alemã, o quadro de catástrofe seria bem pior.

Hans Vikoker, um dos coordenadores do PAM na província de Malanje, região central do país, afirma que esse é um trabalho sem perspectivas. O Estado desistiu de procurar soluções para a situação dos refugiados. "O governo me dá arrepios!"

A manutenção de algumas regiões na mais profunda miséria é propaganda gratuita para o governo. O quadro de calamidade corre o mundo, comove e traz donativos.

Enquanto isso, um estádio de futebol está sendo construído na capital, e um monumento de milhões de dólares é erguido em homenagem a Agostinho Neto, líder da independência do país.

Se estivesse vivo, ele provavelmente iria preferir que esse dinheiro estivesse sendo investido para aplacar a fome da população.

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