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Ficção Inédita

 

Os Pintores ?de Domingo

por Antonio Bivar

Hoje não estou com a menor vontade de pintar.

– Nem você nem eu. Desde que chegamos aqui. E olha que é domingo, hein! Domingo é quando pintamos melhor. Sem contar que o dia está lindo e se nos animássemos a pintar uma marinha que fosse... Venderíamos na hora para aquele colecionador freguês do teu galerista...

– Você tem toda razão, adoro pintar no domingo. É quando meu espírito entra em alfa, as formas e as cores saem tão nítidas que até eu me surpreendo.

– Então por que não pintamos? Estamos com todo o material em cima: cavaletes, telas, paletas, pincéis, broxas, espátulas, terebintina, os tubos com as cores todas... Por que não pintar? É nosso último dia aqui e com certeza aqui a gente não volta mais. É muito longe, falam uma língua esquisita, uma gente atarracada embora até muito gentil e simpática e, no entanto, a paisagem é única. Essa atmosfera lunar, esse mar de um azul de metileno, essa vegetação desértica e rasteira, essa vastidão, esse vazio, essa ausência de turistas...

– Acho que é por isso mesmo que não pinto. Nesse de menos tudo é demais! Meu espírito se sente constrangido; meu desejo, confrangido...

– Ora, Duncan, não me venha com desculpas. Dos nossos colegas pintores decorativos você é, por todos, considerado aquele que nunca negou pincelada. Qualquer motivo é pretexto para você tascar mais uma demão de tinta, fala a verdade. Seja sincero. Concorda comigo?

– Sim, é verdade. Mas você também não fica atrás. E por falar nisso, Vanessa, por que você também não pintou nada até agora? Viemos aqui para este fim de mundo foi para pintar.

– E pintar ao ar livre. Pintar na ventania... Ao sol, no meio do mar, na chuvarada e na neblina... Telas e telas... Pinceladas violentas e exaltadas... Sem nem ligar para quantas telas acabaríamos furando... Era esse o nosso intento.

– Viemos com tanta disposição! Nem consultamos a meteorologia para saber que tempo costuma fazer aqui. Viemos como um casal de pintores loucos e aventureiros, com a cara e a coragem. Combinamos até de eu pintar o retrato um do outro com essa paisagem de fundo, lembra?

– É verdade. Só que já estamos aqui há duas semanas, este é o segundo e último domingo de nossa estadia e até agora nada. Nem você nem eu. Isso me deixa numa frustração...

– E você pensa que eu também não me sinto arrasado? Depois do que combinamos: não trazer óleo, pintar só com acrílico para secar logo e a gente não ter problema com o transporte, as telas não grudarem no plástico de bolhas... Combinamos desta vez não fazer aquilo que sempre fizemos, que é ir para os lugares sem carregar telas, cavaletes e nada de material pesado, só com bloco de esboço e no máximo lápis de aquarela...

– E deixar para passar para a tela quando de volta ao nosso estúdio na fazenda.

– Sim, é o que sempre fizemos e nunca falhou, sempre deu certo. No entanto agora que trouxemos tudo não conseguimos pintar nada.

– Então que tal desistirmos de pintar, levar todos os apetrechos de volta à pousada, pegar os cadernos de esboços, lápis, crayon e rabiscar rapidamente o que achamos de mais interessante em nossa temporada aqui?

– Nós, que nem câmera trouxemos, avessos que somos à fotografia. Vamos logo que o céu está ficando carregado e hoje é nossa última chance de registrar nossa passagem por esta geografia. Depois, então, de volta à Inglaterra e ao nosso estúdio na fazenda a gente, com calma, passa tudo para as telas.

– Vamos logo, Duncan, que quero fazer o teu esboço com esse chapéu absurdo de... Como é mesmo o nome dele? Lanterna, Lamparina...?

– Lampião.

– Isso mesmo. Quero te retratar como Lampião.

– E a companheira dele, como é mesmo o nome da personagem? Maria Qualquercoisa...

– Maria Bonita.

– Exatamente. Quero te desenhar com o chapéu de Maria Bonita e essa paisagem de fundo, esses cactos. De volta à Inglaterra e à nossa rotina no estúdio, quando eu passar para a tela, você de “Maria Bonita”, a tela pronta, com as cores vívidas desta paisagem... Virginia vai adorar.

– Levamos o chapéu de presente para Virginia. Minha irmã é muito esnobe. Vai adorar aparecer com o chapéu de Maria Bonita naqueles jantares da alta sociedade que costuma frequentar em Londres. Por falar em chapéu, Duncan, você se lembra do primeiro romance de minha irmã? A história não se passa aqui perto, num lugar parecido com este?

– Não sei, Vanessa. Esse livro da Virginia, A Viagem, eu nunca li. Faz tanto tempo que ela o escreveu! Mas na época li algumas resenhas, o cenário, é sim, a América do Sul. Mas parece que ela não especificou o país.
– Minha irmã é uma escritora esperta. Nunca atravessou o Atlântico, por isso ao escrever o romance localizando-o na América do Sul, achou melhor não arriscar, ou melhor dizendo, não ser explícita quanto à geografia.

– Virginia é um gênio. Mesmo nos dramas ela consegue passar humor.

– É o estilo dela. Estilo original e único. Mas na geografia ela dá cada fora!

– Teu filho, o Quentin, que adora provocar a tia, disse que as noções dela da geografia da América do Sul são grotescas. E aquela colônia inglesa na boca do Amazonas, só na cabeça dela!

– Virginia adora provocar e ser provocada. Depois sofre, tem aquelas crises e precisa ser internada. Quando soube que vínhamos para estas plagas perguntou se de fato aqui as borboletas são tão grandes quanto urubus e se é verdade que as pessoas tropeçam em cobras, lagartos e pumas pelas calçadas.

– Até agora não vimos nada disso. Bem que eu gostaria.

– Em compensação a curiosidade dela não tem limite. Ainda bem que pelo menos uma coisa nós fizemos, em nossa estadia aqui, nos informar ao máximo sobre esses personagens: Lampião, Maria Bonita, a difícil e ao mesmo tempo excitante saga dos cangaceiros, a paisagem, o mandacaru, o carcará... Virginia adora essas coisas. E ela vai adorar mais ainda o chapéu de Maria Bonita, tenho certeza. E, Duncan, agora me ocorreu: você bem que podia levar o teu chapéu de Lampião de presente para o meu cunhado, o Leonardo. Será muito útil para ele cuidar do jardim com esse chapéu de couro na cabeça. Leonardo “Lampião” e Virginia “Maria Bonita”.

– Então vamos começar logo os esboços, que as horas estão passando, é o nosso último domingo aqui e domingo é quando ficamos mais inspirados e trabalhamos melhor.

– Vamos.

– Será que essa é a nossa última viagem?

– Duvido. Enquanto conseguirmos nos arrastar a gente vai indo.

– É, porque já passamos dos oitenta...

– Sim, mas nosso espírito continua jovial e aventuroso.

– É verdade. Quem sabe, na próxima viagem, à Patagônia?

– Nada nos impede.

Fim



Antonio Bivar é autor, entre outros livros, de Bivar na Corte de Bloomsbury (A Girafa, 2005)