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Mulher de verdade

 


Nos 50 anos da morte de Dolores Duran, um pouco das proezas da menina prodígio saída do subúrbio para conquistar as luzes de Copacabana e o respeito da boemia carioca
 


O nome Adilea pode até aludir sonoramente a Amélia, mas Adilea da Silva Rocha – mais tarde conhecida como Dolores Duran – nem um pouco lembraria a mulher dependente e submissa da canção de Ataulfo Alves e Mário Lago. Nascida em 7 de junho de 1930, foi criada no subúrbio do Rio de Janeiro, junto de mais três irmãos. Desde pequena, queria ser cantora. Meteu-se a aprender línguas estrangeiras – para interpretar as canções de fora – e a estudar música. Teve algumas aulas de canto, e aproveitou a presença de um piano na sala da professora para ter lições básicas de como se tocava o instrumento. Das línguas em que cantava – espanhol, italiano, francês e inglês – fez curso apenas deste último. Mesmo assim, um dia a professora mandou-a levar um recado para a mãe dizendo que não ia mais dar aulas para a menina. A mãe se desesperou, achando que a filha tivesse aprontado algo para ser expulsa. Qual o quê! A professora correu a deixar claro que só não ensinaria mais porque a garota não precisava.

O prodígio de Adilea parecia antecipar sua breve passagem pelo mundo. Aos dez anos, incentivada por um amigo da família, foi cantar no programa apresentado pelo cantor e compositor Ary Barroso, Calouros em Desfile. Não deu outra. Ganhou a simpatia de Ary e o prêmio em dinheiro. O show de calouros serviu de pontapé na carreira de Dolores. Mais tarde, com 16, já corria os principais clubes da zona sul carioca, onde desfiava um repertório que mesclava canções estrangeiras de sucesso e outras do estilo samba-canção.

“Para Dolores Duran a noite começava no [clube noturno] Cangaceiro, onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas, mas quando sentia que ‘a solidão vai acabar comigo’ tomava uísque puro”, relata Maria Izilda Santos de Matos em Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos Anos 50 (Bertrand Brasil, 2001). “Lá batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club, outra boate da área, do mesmo dono do Cangaceiro.”

A pesquisadora, também professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escreve ainda que, no final da noite, antes de começar tudo novamente, Dolores engolia dois comprimidos para dor de cabeça juntamente com uma mistura de água com açúcar – “um cálice e meio d’água”, especifica – e já estava pronta para outra. “Dificilmente dormia antes do início da manhã”, segue a pesquisadora. “Cantava até tarde nas boates, prolongava por alguns locais e chegava a ir assistir a primeira missa do dia (...).”


Compositora

E foi a boemia carioca que serviu de palco para um dos casos antológicos da carreira de Dolores. Ela era uma das poucas mulheres compositoras à época, e isso lhe garantia carga extra de respeito e de admiração no circuito boêmio do Rio de Janeiro, meio frequentado predominantemente por homens e onde às mulheres cabia, geralmente, o papel de intérprete ou de plateia.

A habilidade com as palavras lhe valeu a liberdade para, em 1957, mandar um bilhete para o então jovem Tom Jobim lhe sugerindo que trocasse a letra de uma composição que ele e Vinicius de Moraes haviam feito em parceria. “Esta é a letra que fiz para esta música. Se não concordar, é covardia!”, teria escrito Dolores no recado que mandou a Tom. Conta a história que Dolores havia se encantado com a melodia, mas não lhe agradara a letra. Resolveu então sugerir outra. O resultado são os versos que hoje conhecemos de Por Causa de Você: “Ah! Você está vendo só/ Do jeito que eu fiquei/ E que tudo ficou/ Uma tristeza tão grande/ Nas coisas mais simples/ Que você tocou”.

O trabalho de Dolores no campo da autoria, aliás, merece destaque. Ela, junto à também intérprete e compositora Maysa, abriram, na década de 1950, espaço para as mulheres compositoras e levaram a poética feminina para as canções, introduzindo os sentimentos sob a ótica das mulheres na música popular brasileira. Mais que a mulher frágil, buscaram mostrar a força da mulher que procura a superação pela dor e que junta forças para seguir adiante. Como em Tome Conta de Você, de Dolores: “Tome continha, tome, por favor/ Guarde pra mim todinho o seu amor/ Lembre desta vida tão bonita que eu lhe dou/ E tome continha de você, meu bem/ Que eu sei tomar conta de mim muito bem”.

No entanto, engana-se quem pensa que no repertório de Dolores só cabia a tristeza. Um exemplo é a ironia fina e a graça de Feiúra Não é Nada, de Billy Blanco, canção que compunha o repertório de Dolores. Na música, a preocupação da mulher com a aparência é ironizada, mostrando que com os tratamentos de beleza, qualquer uma pode ficar mais bonita para conseguir um bom partido: “Põe um decote melhorzinho no vestido/ Tem fé em Deus que tua feiúra não é nada/ Gente mais feia encontrou marido/ Enquanto a bonitona ficou encalhada”.

Coisas do coração

Para a irmã mais nova, Denise Duran, associar a imagem de Dolores à tristeza é, inclusive, um dos erros mais comuns. Denise conta que Dolores era uma pessoa alegre, não vivia triste a chorar pelos cantos, como muita gente pensa ao ouvir suas canções. “Ela era muito namoradeira”, diz a irmã. “Quando brigava com o namorado, chorava muito, mas esquecia rapidinho. Acontece que naquela época as pessoas ouviam muita música romântica. A Adilea pegou essa fase e fez muito bem esse tipo de música.”

Irônico é que a cantora que ficou conhecida pelas melodias de “dor-de-cotovelo” e por falar tão bem das coisas do coração foi levada justo por um problema cardíaco. A doença era antiga. Denise explica que, ainda menina, Dolores já tivera de ir para o hospital por causa do coração. Ela sabia que a saúde era frágil e que a qualquer momento uma complicação podia lhe valer a vida. Mas, de acordo com Denise, isso nunca foi motivo de desespero para a cantora, que, apesar da doença, não largou o cigarro. “Ela queria viver a vida da melhor forma possível”, relembra.

E foi com pesares que, no dia 24 de outubro de 1959, a música popular brasileira recebeu a notícia de que perdera a jovem Dolores, então com 29 anos. Contam as histórias de Copacabana que Dolores chegara em casa às sete da manhã, após uma “esticada” pelas boates cariocas. Antes de dormir, recomendara à empregada: “Não me acorde, estou muito cansada. Vou dormir até morrer”.


Em boa companhia
Lançamento em CD recupera sarau da década de 1950
 
Uma bela homenagem aos 50 anos sem Dolores Duran é o CD Entre Amigos, lançado neste ano pelo selo Biscoito Fino. No disco, um conjunto de dez gravações do final da década de 1950, nas quais Dolores canta em um ambiente informal e despretensioso. No repertório, predominam as músicas americanas e os sucessos do samba-canção da época. O CD é resultado de um processo de recuperação de uma fita analógica na qual estava registrado um sarau na casa de Geraldo Casé, um dos pioneiros na televisão brasileira e colega de Dolores na TV Rio. Há ainda três faixas-bônus, sendo duas anteriores a Dolores adotar seu nome artístico, usado desde o fim da década de 1940, quando passou a cantar na boate Vogue. Esses pequenos tesouros da música popular brasileira estavam guardados até o fim da década de 1990, quando foram encontrados e levados para transcrição do sistema analógico para o digital. O resultado é uma bela seleção de canções na voz de Dolores, que levam quem as ouve para a companhia da cantora, em um dos saraus na casa de amigos.

 

Dolores revisitada

Show no Sesc Pinheiros relembra os sucessos da intérprete e compositora



Os mesmos sambas-canções que invadiam as boates da moda na Copacabana dos anos 1950 cantados por Dolores Duran foram relembrados no show Dolores Duran, 50 Anos de Saudade, apresentado no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, no dia 22 de outubro, antevéspera do aniversário de morte de Dolores. Além das músicas de “dor-de-cotovelo”, o repertório contou com um bloco especial rememorando as canções que a intérprete e compositora cantava quando trabalhava como crooner nas boates cariocas. Três cantoras encarnaram Dolores no palco: a carioca bossanovista Claudette Soares, a sambista paulistana Célia e a cantora Vânia Bastos, ligada ao movimento musical da Vanguarda Paulista. Longe da elite carioca que frequentava os shows de Dolores nas boates de Copacabana, o público paulistano se emocionou e aplaudiu o trio.