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A nova família


Divórcio, novos casamentos, técnicas de fertilização, mudanças nas leis de adoção, legalização de uniões estáveis. Estes são alguns dos fatores que especialistas destacam na hora de avaliar as mudanças no núcleo familiar tradicional que o mundo ocidental conhece, e reconhece, há mais de quatro séculos. Em artigos exclusivos, a psicóloga e coordenadora do núcleo de pesquisa Dinâmica das Relações Familiares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Adriana Wagner, e a psicanalista e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Belinda Mandelbaum, abordam o tema.

Novas Famílias? Uma indagação sobre as novas configurações familiares

por Belinda Mandelbaum

Sem dúvida, o século 20 assistiu as mudanças que revolucionaram as configurações familiares tradicionais, em especial no mundo ocidental. A origem do que estamos chamando de “configurações familiares tradicionais” remonta à ascensão da burguesia, a partir do século 16, na Europa, quando foi se tornando dominante, primeiro entre as classes mais abastadas, mas progressivamente se disseminando pela sociedade em todos os seus extratos, um modelo de família que chamamos de nuclear, constituído por um casal heterossexual com papéis e funções sociais definidos e diferentes entre si – o homem como provedor econômico da família, autoridade central dentro dela e seu representante junto à sociedade, sendo o seu local de atividade principalmente a esfera pública, e a mulher como responsável pelos afazeres domésticos e pela educação dos filhos, sendo seu espaço principal de atividade e circulação a esfera doméstica. Com estas atividades definidas e bem demarcadas, o casal assim constituído seria o responsável pela criação dos filhos, co-habitando todos juntos numa unidade doméstica independente e separada do convívio social. A burguesia desenvolveu a privacidade e a intimidade.

Nem sempre tinha sido assim: os estudos de diversos historiadores da vida cotidiana, dentre eles Philippe Ariès, na França, mostraram como a vida familiar desde a Idade Média até o início do Renascimento foi caracterizada por uma sociabilidade na qual a separação entre o espaço público e o espaço privado, bem como entre os diferentes espaços de ?intimidade no interior da casa, era bem menos demarcada, com um trânsito mais aberto entre a casa e a rua e no interior da própria casa, onde os mesmos espaços eram utilizados para comer, dormir, trabalhar e brincar, sendo também mais difusos as diferenças e limites entre a infância e a vida adulta.  

No entanto, este modelo nuclear de família caracteristicamente burguês, que se implantou com força tal na cultura e no imaginário do Ocidente – a ponto de ser considerado por muitos setores da sociedade como o modelo ideal, desejável e mesmo natural do que seria uma família –, veio a sofrer transformações significativas a partir de fins do século 19. Isto porque crises econômicas em diversos países da Europa, que culminaram nas duas grandes guerras mundiais, geraram um empobrecimento material de grandes setores da sociedade, com a consequente perda do poder aquisitivo, da posse dos meios de produção e do patrimônio de muitas famílias.

Com isso, o homem burguês, que tinha sua autoridade como chefe de família baseada em seu poder econômico, viu sua posição fora e dentro de casa ser abalada. Ele se tornou um marido e um pai enfraquecido em seu poder, não mais reconhecido com o mesmo respeito, não mais fonte de saber e identificação para os filhos.

Junto com esta fragilização do homem, e ligada a ela, a mulher também mudou. Não apenas ela se profissionalizou a partir de uma racionalização cada vez maior de todas as atividades sociais, inclusive as domésticas, numa sociedade capitalista administrada em todas as suas esferas, como mudanças importantes no mercado de trabalho nas primeiras décadas do século 20 estimularam o ingresso da mulher em atividades profissionais fora de casa, em diversos setores do comércio e da indústria. A partir dos anos 1950, como fruto desta maior participação da mulher na esfera pública, os movimentos feministas ganharam força, organizando as mulheres em torno de reivindicações que incluíram a participação política, a igualdade com os homens no trabalho e em casa, e a liberação sexual.

O período pós-guerra também assistiu a uma crise profunda das instituições sociais, a partir de um questionamento radical de como sociedades tidas como tão civilizadas, com tantos progressos na área cultural e tecnológica, puderam caminhar para uma barbárie como foi a matança nazista. Assim, desde os anos 1950, diversos movimentos sociais, boa parte deles conduzidos por intelectuais e estudantes em vários países do mundo, puseram em xeque as instituições de ensino, a moral burguesa, a ética das relações humanas, num contexto geral que ficou conhecido como contra-cultura. A família tradicional não escapou a este questionamento, em tudo o que ela continha de autoritarismo, violência e hipocrisia moral.

Estas ideias revolucionárias, que circularam com força nas sociedades ocidentais por diversos meios – a mídia, a literatura, o cinema, as artes plásticas, a produção intelectual de forma geral, principalmente entre as décadas de 1960 e 1970 –, contribuíram em muito para abrir a possibilidade de manifestação no espaço público de outras formas de relação entre homens e mulheres, mais igualitárias, mais livres, mais baseadas no afeto e menos em convenções formais; para a emergência mais ampla na vida pública das uniões entre pessoas do mesmo sexo – a partir da primazia do afeto e do desejo sobre a moralidade convencional – e de todas as novas formas de composição e recomposição familiares, que também tiveram na emancipação dos indivíduos e de suas opções pessoais um motor para mudanças. Estas novas configurações familiares refletiram-se em importantes mudanças em todas as dimensões da vida social, inclusive no campo jurídico, com a legalização do divórcio e da possibilidade de recasamento e, mais recentemente, como fruto das lutas sociais e do diálogo entre a sociedade civil e o poder judiciário, com as alterações propostas pelo Código Civil de 2002 no tocante ao Direito de Família, que incluíram, dentre vários pontos importantes, a substituição da figura do pátrio poder pela de chefe de família – que agora tanto pode ser um homem como uma mulher –, a possibilidade da guarda dos filhos ser igualmente da mãe ou do pai e, ainda mais recentemente, a guarda compartilhada dos filhos. Estamos acompanhando também a luta pela legalização das uniões homossexuais em diversos países do mundo. Estas mudanças nas leis sugerem que a sociedade de forma geral e o poder judiciário, como expressão disto, cada vez mais reconheçam a diversidade e a singularidade dos arranjos familiares, que precisam ser compreendidos e legitimados em suas especificidades. Ainda outra fonte importante de mudanças para a família é o conjunto de novas tecnologias na área da reprodução, que têm possibilitado que os casais possam escolher se e quantos filhos querem ter, o sexo deles e, o que é tema extremamente polêmico, até mesmo certas características genéticas suas, o que certamente já suscita um amplo debate ético e jurídico no conjunto da sociedade.

Frente a todas estas mudanças, e diante deste novo quadro ampliado de possibilidades, devemos, no entanto, nos indagar sobre a natureza destas mudanças e sobre o que de fato mudou. Dizemos isto a partir da observação de que, mesmo em arranjos familiares que rompem com o modelo tradicional, como é o caso de uniões homossexuais, vemos que não apenas há uma luta legítima por serem reconhecidos perante a lei da mesma forma que as famílias mais convencionais, formadas por casais heterossexuais, como parece haver uma ânsia por seguir um modelo convencional de família nas suas relações internas, na forma como, por exemplo, desempenham os papéis feminino e masculino. O mesmo parece se dar em muitas das novas formas de composição e recomposição familiares. O fato é que não parece surgir, a partir destas novas configurações, uma proposta crítica ao modelo tradicional, mas uma vontade de igualá-lo. É como se houvesse, apesar de todas as mudanças, de todas as novas possibilidades de escolha, uma espécie de nostalgia de uma família que pudesse funcionar como refúgio protetor e conhecido em relação a um mundo muitas vezes tão hostil. Como se a família tradicional, apesar de todas as críticas que compreensivelmente recebeu, permanecesse no imaginário social como aquela mais capaz de prover as necessidades físicas e psíquicas de seus membros. Será verdade? Ou o tempo poderá nos mostrar novas possibilidades de pensar, educar e ser abertas pelas novas famílias?


“Desde os anos 1950, diversos movimentos sociais (...) puseram em xeque as instituições de ensino, a moral burguesa, a ética das relações humanas (...). A família tradicional não escapou a este questionamento (...)”



Belinda Mandelbaum é psicanalista, professora e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Endereço eletrônico: belmande@usp.br

 

E a família, como vai?

por Adriana Wagner

Essa já não é mais uma pergunta fácil de responder. Primeiro, temos que pensar de que família estamos falando. Quem são as pessoas da família? É evidente o quanto a configuração da família atual se modificou. Na realidade, enquanto que há poucas décadas podíamos definir quem era da família pelos laços consanguíneos e pelo grau de parentesco, hoje outras variáveis ampliaram tal definição. Os vínculos de solidariedade, afeto e convivência que foram sendo incluídos na definição daqueles que “são da família” ampliaram esse conceito, a ponto de a família hoje passar a ser um conceito plural, sem, entretanto, perder a referência de ser uma estrutura íntima de afeto.

Podemos falar da desconstrução da família tradicional, que se deu a partir da diversidade sexual, da perda da ?bilateralidade e do propósito de procriação e cuidado dos filhos. Mas como se traduz isso em nossa realidade? Tais princípios definiam a família como um grupo composto de duas pessoas adultas e sua prole. No caso, os adultos, necessariamente um homem e uma mulher, e que tinham a função de unir-se para a procriação e cuidado de seus descendentes. Tal desconstrução reverberou numa diversidade de arranjos, hoje nomeados de distintas formas, entre eles famílias mosaico, recasada, original, substituta, socioafetiva, nomoparental, homoafetiva, unipessoal, conjugal, entre tantas mais.

Vários foram os fatores que contribuíram para que se ampliassem as possibilidades de “ser família” tais como a lei do divórcio e o recasamento, as diferentes tecnologias de fertilização, as mudanças na legislação quanto a facilitação da adoção e a legalização de uniões estáveis tanto homo como héteroafetivas, entre outros.  De fato, desde o polêmico processo de aprovação do divórcio nos anos setenta, a família não parou mais de modificar sua configuração. Prova disso é o número crescente de notícias que tem surgido na mídia, nos últimos tempos, sobre os atuais arranjos familiares, que revelam uma nova realidade e até mesmo chegam a prognosticar o fim do modelo clássico tradicional de família – pai, mãe e filhos – no lugar do que tem sido chamado de “a nova família”. Mas quem é essa nova família? O que essa nova configuração tem de diferente? A realidade atual convive com uma falta de explicação que dê conta de descrever tal diversidade familiar ao mesmo tempo em que aumenta a demanda de regras alternativas de funcionamento e manejo das diferentes situações geradas nesse contexto.

Frente a isso, surgem inquietações a respeito de como a família vem desempenhando suas funções em meio a essa diversidade. Pergunta-se: a família, então, está em crise? É esperado que toda a mudança traga consigo uma sensação de desassossego e até mesmo de insegurança para lidar com o desconhecido. Assim, podemos observar que os parâmetros norteadores e que balizavam nossas ações e definições a respeito da família, até então, já não são suficientes para explicar essa nova realidade. Nesse caso, constata-se que existe uma crise do modelo tradicional de família, mais do que uma “crise da família”. 

Nessa perspectiva, a saúde do grupo familiar já não pode ser pautada pela configuração dos personagens que compõem tal núcleo, mas sim por sua estrutura, definida pelos aspectos relativos às regras, ao poder, aos limites e aos contratos de convivência entre seus membros. Sendo assim, não é incomum a existência de núcleos familiares que não conseguem estabelecer fronteiras nítidas entre seus membros, com pais e mães que não exercem a necessária liderança para seus filhos, dificultando o estabelecimento dos limites e da hierarquia.

Nesses casos, são famílias que se invadem uns aos outros, se machucam e não conseguem respeitarem-se como indivíduos com características e necessidades próprias. A exemplo disso, podemos pensar na importância de que pais e mães exerçam os papéis e funções que lhe competem, independentemente de coabitar ou não com seus filhos; que padrastos e madrastas assumam o papel de adulto na relação ?com os filhos de seu cônjuge, sem que tenham que amar instantânea e incondicionalmente seus enteados como condição para a sua felicidade conjugal; que pais e mães deixem de ser “o(a) melhor amigo(a) do filho(a)”, mas que sejam pais e assumam suas responsabilidades de forma efetiva e afetiva, sem perder a autoridade.

As mudanças na configuração das famílias não fizeram com que desaparecessem as necessidades mais fundamentais dos seres humanos enquanto membros desse grupo: amor, proteção e segurança. Isso é, ainda que plural, a família segue sendo o primeiro núcleo responsável pela promoção do desenvolvimento e bem-estar de seus membros e o espaço de convivência social mais importante do sujeito. A família ainda é o palco em que experimentamos as emoções mais intensas e marcantes da existência humana. É o lugar onde é possível o aprendizado e a vivência do amor e do ódio, da alegria e da tristeza, do desespero e da desesperança. A busca do equilíbrio entre tais emoções que coexistem nas relações familiares segue sendo uma das mais antigas e complexas tarefas a serem realizadas pelas famílias, independentemente de quem sejam os personagens que compõem tal núcleo. 

Frente a isso, seguimos perguntando: e a família, como vai? Podemos dizer que vai bem, se ela consegue definir, de forma clara, as fronteiras entre os seus membros, as regras que delimitam os espaços e as responsabilidades de cada um, a hierarquia que dá o lugar e o poder àqueles que devem exercê-lo, de forma a facilitar o crescimento e o bem-estar de todo o grupo. Esses são aspectos fundamentais aos quais todas as famílias devem estar atentas, pois mesmo em uma configuração mais diversa, podem definir uma convivência saudável e harmoniosa e que resultará no mais precioso patrimônio que acompanhará todos os sujeitos ao longo de suas vidas e na construção de suas próprias famílias. 

“As mudanças na configuração das famílias não fizeram com que desaparecessem as necessidades mais fundamentais dos seres humanos enquanto membros desse grupo: amor, proteção e segurança”



Adriana Wagner é doutora em psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do núcleo de pesquisa Dinâmica das Relações Familiares (www.ufrgs.br/relacoesfamiliares)