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Entrevista

 


O filósofo e professor traz à tona alguns dos males que afligem a sociedade ao propor uma análise aguda do comportamento humano nessa primeira década do século 21

Fotos: Fernanda Zaborowsky
 

O hoje professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle, concluiu a graduação na área em 1994. É formado também em comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), possui mestrado em Filosofia pela USP (1997) e doutorado em Lieux et transformations de la philosophie (Espaços e transformações da filosofia, numa tradução literal) pela Universidade de Paris VIII (2002).

Safatle, também professor visitante das Universidades de Paris VII e VIII, desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século 20 e filosofia da música, além de ser um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. Durante a entrevista que concedeu à Revista E, o estudioso falou sobre uma ampla esfera de assunto, como o esvaziamento do campo da política no cotidiano do brasileiro, a obsessão da sociedade atual pelas cirurgias estéticas e a visão do ser humano sobre as mudanças sociais ao seu redor. “É interessante notar como ninguém acredita realmente no presente”, afirmou. A seguir, os melhores trechos.

O que você acha dessas correntes que dizem que as causas foram completamente destituídas de valor? As pessoas hoje em dia não morrem mais pelo que morriam antigamente, como morriam pelo ideal do comunismo, por exemplo.

Primeiro, o fato de morrer por um ideal não faz dele algo necessariamente provido de conteúdo de verdade. No entanto, percebo que sua pergunta visa claramente uma dinâmica, muito utilizada, de desqualificação do presente como tempo sem causa, sem acontecimento. Diria que este é um embate, não fechado ainda, e cuja principal estratégia é dizer que causas e acontecimentos habitam apenas ações passadas.

Ou seja, uma amortização contemporânea sobre essa ação passada?

Eu diria que, de certa forma, sim. É verdade que, no exemplo trazido por você, há ao menos um ponto que vale a pena salientar. Trata-se da ideia de que uma dimensão fundamental da vida dos indivíduos se passa lá onde minhas ações deixam de ser apenas minhas e podem ser vistas como ações de um processo histórico. Nas minhas decisões particulares, vejo a realização de um processo que, em larga medida, me ultrapassa. A perda dessa visibilidade, a retração das minhas ações à dimensão de sistemas particularistas de interesses traz, necessariamente, um certo tipo de sofrimento cada vez mais partilhado. Diria que há, atualmente, a tentativa de nos impor a ideia de que este sofrimento deve ser aceito, que a figura do indivíduo autárquico deve ser hipostasiada, isto para que catástrofes mais brutais não ocorram. Age-se para perpetuar o presente, como se sair dele só pudesse produzir catástrofes. Na verdade, o passado é lido como catástrofe. Veja como há uma forte tendência atual em descrever o século 20 como o século das catástrofes – totalitarismos, grandes guerras, os ideais que se transformaram em desastre, as revoltas que não deram em nada e coisas dessa natureza. No interior deste quadro, teme-se que o futuro possa sempre abrir uma repetição do passado. O presente seria algo como nossa ilha de segurança.

Mas é interessante notar como, ao mesmo tempo e de uma forma bastante peculiar, ninguém acredita realmente no presente. Talvez seja por isso que nossas figuras de autoridade são, normalmente, figuras que, a todo momento, pedem para que não as levemos a sério, pedem que nós apenas atuemos como se acreditássemos. Até porque realmente acreditar exigiria uma ética da convicção impossível para épocas em crise de legitimidade como a nossa. Um belo exemplo desse perfeito líder do presente é Silvio Berlusconi, alguém que, ao mesmo tempo em que procura passar leis mais duras contra a prostituição no Parlamento italiano, transformando essa questão francamente bizantina em problema político, ao mesmo tempo em que manda cobrir uma pintura com corpos nus no gabinete por ser muito indecente, transforma o espaço público do poder em espetáculo patético de orgia privada. Berlusconi é a essência da lei que não acredita mais na lei e só por isto pode ter a graça amarga de uma farsa cansada demais para pedir que não seja vista como farsa.


Você acredita que nisso está um ensinamento, uma constatação de que a política perdeu a importância no cotidiano?

Não. Acho que esse é um caso de esvaziamento do campo da política. As figuras, cada vez mais presentes, do poder que ri de si mesmo, a elevação do medo a afeto fundamental do campo do político, a redução do político ao espaço de discussões sobre segurança: tudo isso representa tendências fortes de esvaziar, o mais rápido possível, o campo do político.

Você não acha que isso seja, neste caso, um grupo de indivíduos, uma nação que perdeu sua motivação pelo futuro? Temos um país como os Estados Unidos, que tinham o Bush como presidente e elegeu o Obama, que é algo completamente novo.

Eu estou longe de desqualificar um fato como esse. Barack Obama, apesar de certas limitações, representa uma mudança qualitativa real. É inquestionável. Lembraria, por exemplo, que nos meus 36 anos de vida, foi a primeira vez que vi um presidente norte-americano criticar um golpe de Estado na América Latina. Não seria irresponsável a ponto de desconsiderar fatos desta natureza.

Diria que nosso presente é o espaço de uma grande tensão. Por um lado, vemos o medo em levar a crítica do presente a seu ponto de ruptura e, por outro, o crescimento da consciência de que há algo insuportável em nossas formas hegemônicas de vida – com todas as gradações possíveis que essa consciência do insuportável apresenta. Por isso, creio ser muito importante hoje identificar os atores sociais que insistem na ideia de que nós não temos nenhum acordo a respeito do que é o presente, assim como sobre o que queremos conservar dele. Trata-se de uma condição importante para mostrar que a ideia de que algo como o esvaziamento da política na sociedade atual é falsa. A questão, na verdade, é saber onde a política está, quais são os eventos realmente políticos na atualidade. Muitas vezes, a política está além de jogos partidários, da simples formação de conscientes eleitorais. Às vezes, ela está em outras dimensões, em obras de arte que trazem imagens da desestruturação da ordem, em movimentos sociais que lembram que velhos problemas não passaram, em ações que lembram como nem sempre a justiça se confunde com o direito.

“Barack Obama, apesar de certas limitações, representa uma mudança qualitativa real. É inquestionável. Lembraria, por exemplo, que foi a primeira vez que vi um presidente norte-americano criticar um golpe de Estado na América Latina”

Você acredita que ao desmontar essa motivação política, na medida em que se tira o valor das causas, dos embates, leva-se a essa pasmaceira atual do desengano, da desmotivação?

Tenho uma leitura diferente disso. Conheço muita gente que fala coisa parecida, mas lembraria que o discurso de não termos mais projetos de reconstrução faz com que o sentimento de desconforto e descontentamento perca a sua força transformadora. Talvez seja o caso de desconfiar do espírito por trás desta afirmação. Até porque as grandes transformações não foram feitas por pessoas que sabiam para onde queriam ir, e sim por pessoas que sabiam claramente que não dava para ficar no lugar aonde estavam. Se sua casa está pegando fogo, você não precisa ter outra casa para saber que está na hora de sair. Isso apenas mostra como as grandes transformações e ideias foram, na verdade, produtos de embates do cotidiano. Não foi algo como: “Nós temos um grande projeto e vamos ?aplicá-lo”. Na verdade, elas foram feitas no calor da hora, mas porque existia ali um elemento fundamental, que era a confiança na força popular da transformação. Uma confiança de que aqueles que insistiram no caráter insuportável da situação seriam capazes, também, de dentro do embate cotidiano, saber como criar outras formas de gestão. Não se trata de defesa irresponsável do espontaneismo, mas de lembrar que mesmo as grandes ideias nascem do embate entre tradições do pensamento e a irredutibilidade de problemas materiais locais. Esse me parece um dado muito interessante, caso contrário temos coisas como: “Bem, nós não temos uma grande teoria, não temos uma grande ideia, então é melhor ficarmos em casa”. Assim, podemos ter uma consciência infeliz feliz. “Infeliz” porque estamos descontentes com o presente e “feliz” porque não precisamos sair de casa. No entanto, não devemos esperar as grandes ideias que vão nos explicar o que devemos fazer. Devemos, de fato, é acreditar que, a partir do momento que se abandonam certas coisas, as possibilidades são múltiplas. Se há algo que devemos aprender é como abandonar certas coisas. Se você quiser, eu completaria dizendo que isso é apenas o fruto de confusões a respeito do que são “grandes ideias”. Pois grandes ideias são, no fundo, apenas maneiras de nos ensinar a abandonar modos gastos de pensar e agir.


Sobre essa questão do ideal romântico, essa prevalência das palavras “heroísmo”, “amor”, “felicidade” etc. é algo vendido como uma necessidade brutal do ser humano. Você acha que isso é o que seria também uma construção, cultura de massa?

Eu acho difícil responder a essa pergunta, pois temos três pessoas nesta sala [refere-se também à fotógrafa presente], que provavelmente têm ideias diferentes sobre as palavras que você descreveu. São palavras que eu nem sei bem para que usar, pois elas são tão indeterminadas que o seu uso perde muito o sentido.


Devido ao uso constante, a banalização?

Não, devido ao fato de que são elementos centrais no embate a respeito do que nós realmente queremos. Veja a ideia de felicidade. Lembre de como o primeiro parágrafo que precede a Constituição Francesa de 1793, fruto maior da Revolução Francesa, afirmava: “O objetivo da sociedade é a felicidade comum e o governo é seu defensor”. O que a ideia de uma felicidade ligada necessariamente à dimensão do “comum” pode significar para alguém que aprendeu o que é felicidade por meio de slogans publicitários e comerciais de margarina? Por isso, acho que há momentos em que parar de falar algumas palavras é a única forma de respeitá-las.


Por falar em felicidade, como você vê essa ânsia pela modificação do corpo? O alto volume de cirurgias estéticas, por exemplo?

Acho que é um dado muito interessante por duas razões. Primeiro porque todos os nossos ideais de reformas políticas passaram pelo corpo. A partir de certo momento, o corpo foi visto como o grande espaço do político, principalmente dos anos de 1970 para cá. Falo da ideia de que a sexualidade seria uma questão política, assim como a maneira de expor e tratar o corpo. Toda a política de diferenças, para boa parte das minorias, passou pela problematização do corpo. Dado isso, desenvolveu-se a ideia de que o corpo é um lugar de verdade, espaço de exposição fundamental da subjetividade, do que tenho de mais singular. Daí a necessidade de modificá-lo todo a partir de um projeto, do meu projeto. Quem fez uma crítica muito interessante desse processo é uma artista plástica chamada Orlan [francesa e que vem, desde 1990, se submetendo a “cirurgias-performances”, por meio das quais modifica seu corpo]. Nos anos 1980 e 1990, ela pegou as imagens ideais de feminilidade – como a Vênus de Botticelli, a Mona Lisa, entre outras –, fez uma montagem e começou a se operar a partir dessa imagem construída. Tais operações eram transmitidas para as galerias de arte no mundo inteiro e em tempo real.


“Na verdade, o passado é lido como catástrofe. Veja como há uma forte tendência atual em descrever o século 20 como o século das catástrofes – totalitarismos, grandes guerras (...), as revoltas que não deram em nada e coisas dessa natureza”



O resultado, como você pode ?imaginar, é uma monstruosidade. Mas, de certa maneira, é forma de exposição crítica dessa ideia do corpo como projeto da individualidade, pois se trata de lembrar que cada peça desse “projeto” é resultado da internalização de imagens de outros. Assim, Orlan colocou em cena a representação do processo de identificação constitutivo da nossa experiência corporal desde o início, que demonstra como nossa relação com o corpo sempre foi, de certa forma, virtual. Ela é, primeiro, uma relação à imagem do corpo, isso antes de ser relação à materialidade do corpo. Como nos lembra Lacan, a maneira como o sujeito constitui essa noção de imagem do corpo próprio vem da capacidade que ele tem de, num dado momento na infância, aprender a imagem do corpo formada no espelho ou a imagem do corpo de uma outra criança, vem de como esse sujeito internaliza essa imagem e a toma por sua.


Segundo sua ideia, a imagem do homem e da mulher, hoje em dia, passou a ser um campo de batalha de uma nova construção ideológica, é isso?

Eu diria que virou um campo fundamental das nossas expectativas políticas, o que coloca uma série de questões sobre o que significou esse processo. Reformar a sociedade é difícil, mas reformar o corpo está cada vez mais fácil. Será que não há um vínculo entre esses dois elementos? Dada a possibilidade de uma reforma social, parece que a reforma do corpo está mais à mão, por conta da possibilidade de uma estrutura social em que os processos de reconhecimento sejam mais efetivos. O que restou foi uma espécie de transformação do corpo como espaço fundamental de reconhecimento.

Você acredita que a luta pela preservação ambiental é uma das grandes causas vindouras?

E inegável que ela tem uma importância muito grande, mas se você quiser uma análise desse processo, eu diria que os partidos verdes europeus, que são os que melhor representam isso, tiveram muita dificuldade em ampliar sua agenda. Eles têm uma agenda que parece ser muito importante, conseguiram colocar essa discussão, que vai da esquerda à direita hoje em dia, no entanto, eles têm dificuldade em acrescentar elementos à vida. E mesmo no poder. O partido verde alemão, por exemplo, que governou a Alemanha juntamente com os social-democratas, abandonou o pacifismo e apoiou o envio de soldados ao Afeganistão.


A luta aí não seria nem pelo ganho de plateia, e sim pelo espaço físico mesmo, espaço para exibição?

Acho que isso é um dado extremamente importante e negligenciá-lo é um equivoco, pois a existência do espaço facilita o processo de formação. Eu diria que há, de fato, um público muito forte para manifestações culturais distintas das hegemônicas, a questão é quem vai organizar isso. Posso dar um exemplo: na França, hoje não sei como está, mas durante um bom tempo existiu uma política de Estado muito forte para a criação de espaços para música contemporânea – que a princípio, na esfera das artes, seria a que mais sofreria com a questão de público. Para você ter uma ideia de como a coisa é brutal no Brasil, se eu perguntar para qualquer pessoa quais são os cinco maiores escritores atuais do Brasil, um bom leitor vai dar sua lista. Se perguntar pelos cineastas ou artistas plásticos, eles respondem também. Se eu perguntar por cinco músicos, eles só vão me responder sobre músicos de música popular. Não vão ser sequer capazes de me indicar nomes de outros músicos que não sejam de música popular, como Carlos Gomes, Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Almeida Prado, Flô Menezes, Gilberto Mendes.


“As grandes transformações não foram feitas por pessoas que sabiam para onde queriam ir, e sim por pessoas que sabiam claramente que não dava para ficar no lugar aonde estavam”



Voltando ao caso francês, a partir de determinado momento se compreendeu que a criação de espaços para música contemporânea deveria ser uma política de Estado. Isso permitiu a sustentação de um espaço de reprodução, que é claramente identificável e que permite a visibilidade de certa produção cultural. Não temos isso aqui, pois se parte muito da ideia de que são as estruturas do mercado que devem definir tudo. Mesmo o sistema de financiamento de produção estatal é decidido por diretores de marketing. É absurdo como esse processo funciona. Você se inscreve, vai captar e, por último, quem decide são os diretores de marketing de grandes empresas. O resultado é, por exemplo, você direcionar um dinheiro que é público para o tipo de produção de entretenimento como o Cirque du Soleil. Nesse sentido, diria que o Estado é muito mais democrático do que o mercado, pois você pode interferir, colocar uma nota no jornal, obrigar o ministério a discutir suas escolhas, a negociar. Mas discutir com a direção de um banco não é algo exatamente evidente. Além do que há, atualmente, uma profunda intervenção no processo de difusão da cultura ligada imediatamente aos atores fundamentais do mundo empresarial. Você pode perguntar qual o problema. A resposta é: uma empresa normalmente não se associaria a algo polêmico a ponto de lhe trazer prejuízos de imagem, mas é possível exigir do Estado que ele faça isso em nome da pluralidade radical de posições. Por outro lado, o cinema de um banco dificilmente passaria um filme denunciando a participação deste mesmo banco na ditadura militar.

Mas, além desse problema na difusão, há um problema mais grave de produção. Como a arte se tornou, em larga medida, espaço maior de rentabilização do capital mundial, as obras começaram a serem produzidas tendo em vista a participação nesse processo. Os jovens artistas sonham em participar dessa plataforma de rentabilização e isso interfere necessariamente na configuração das próprias obras, que devem ser sexies, funny, imediatas, como uma espécie de playground para adultos. Processo de transformação do potencial disruptivo da arte de vanguarda em glamour. Mesmo os catálogos são feitos cada vez mais para colecionadores. Não é por outra razão que a revista de arte mais famosa da Alemanha hoje se chama Monopol. Chega a ser até engraçado, você abre a revista e julga ter às mãos um caderno de investimentos, não uma revista de arte.

 

“Uma empresa normalmente não se associaria a algo polêmico a ponto de lhe trazer prejuízos de imagem, mas é possível exigir do Estado que ele faça isto em nome da pluralidade radical de posições”