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Encontros
Homem de palavra
por Ignácio de Loyola Brandão
Nascido em Araraquara – terra de nome como o diretor de teatro José Celso Martinez Correa e a ex-primeira-dama brasileira Ruth Cardoso –, o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão, aos 73 anos, diz-se em plena trajetória para se tornar o escritor que ele considera ideal, aquele que “penetra nas pessoas, nos assuntos, na situação”, conforme disse ao Conselho Editorial da Revista E. “Esse é o escritor que eu venho tentando ser. Um dia, vou conseguir.” Para muitos, ele já conseguiu. Prêmio Jabuti de melhor livro de contos, em 2000, por O Homem que Odiava Segunda-feira (Global, 1999), e de melhor ficção, em 2008, por O Menino que Vendia Palavras (Objetiva, 2007), o autor tem obras suas traduzidas para o alemão, coreano, espanhol, húngaro, inglês e italiano. Durante o papo, Loyola Brandão – ou simplesmente Ignácio, como diz que os amigos em Araraquara o chamam – falou também sobre a infância, sobre as crônicas que nascem de suas 4.619 cadernetas de anotações, nesses mais de 40 anos de carreira, e sobre a relação entre jornalismo e literatura. A seguir, trechos.
Herói nota dez
Acho que eu já era escritor desde criança. As melhores redações da classe eram as minhas. Eu era um sujeito muito feio e muito esquisito. As meninas da sala não me olhavam, e meu sonho era que me olhassem. Um dia descobri uma maneira de seduzir as pessoas, e desde aquele instante, com dez anos de idade, passados 63 anos, eu sei que era uma atitude muito mais consciente do que inconsciente: fiz uma redação que provocou comentários. Era quase um conto. Minha primeira professora, Lourdes, uma vez por semana falava para a gente re-escrever uma história infantil clássica. Ela era excepcional e desde aqueles tempos arrumava um jeito diferente de estimular a criatividade. Falo dos anos 1940. Numa certa manhã, ela falou para nós lermos e re-escrevermos Branca de Neve e os Sete Anões. Eu era apaixonado pela Branca de Neve – já que as meninas da sala não me olhavam eu tinha um amor virtual. Hoje eu olho o filme e a acho cafonérrima com aqueles vestidinhos e lacinhos, mas o amor é cego. Eu odiava os Sete Anões, porque a Branca de Neve era escrava deles e aquilo me irritava.
Dois dias depois, a professora veio entregar a redação, que na época se chamava composição, e ela falava as notas para todo mundo ouvir. Na minha vez ela disse: “A do Ignácio eu vou ler para a classe e vocês vão dar a nota.” Naquele meu conto, os anões saem para o trabalho e quando voltam, ao jantar, feito pela Branca de Neve, eles caem duros e mortos sobre suas tigelas. A Branca se vingou, e eu também. Afora dois alunos que me detestavam, a classe me deu dez. Quando Lourdes acabou de ler aquela redação em que os anões caíram mortos, a meninada, que adora uma maldade e uma sacanagem, deram uma risada e viraram para mim, me olharam. Naquele momento eu me senti olhado. Eles foram para o recreio e contaram para as outras classes. No fim do dia, as pessoas comentavam sobre mim, por eu ter matado os anões. Por um instante eu virei um herói. Não por ser o mais bonito ou o mais bem vestido, mas porque na minha cabeça havia alguma coisa que provocava e podia mexer com os outros, que podia questionar. Acho que naquele instante o menino Ignácio decidiu que escrever era a sua vida, o seu destino.
O escritor Ignácio de Loyola Brandão esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 18 de setembro de 2009 |
4.619 cadernetas
Vim para São Paulo e descobri a noite paulistana. Frequentava a noite o tempo todo. Eu sempre carreguei uma caderneta comigo e anotava tudo o tempo todo. É um vício que eu tenho desde que li uma biografia do Hemingway [Ernest Miller Hemingway, escritor norte-americano]. Ele sempre dizia que quem quer escrever deve ter uma caderneta na mão, para anotar as coisas que vê, tudo que achar interessante. Já tive 4.619 dessas. Até hoje [a caderneta] é minha grande auxiliar na minha crônica. Dela saem contos ou crônicas. Meu grande método de inspiração até hoje é esse: a observação.
Depois eu fui ser repórter, durante anos. Fiz uma carreira jornalística como repórter e redator. O jornalista é aquele que tem que olhar a realidade em volta. Eu nunca me esqueço, no começo da minha carreira, me deram uma matéria que era para entrevistar cafeicultores. Tava acontecendo alguma coisa e tinha algo para estourar, ninguém sabia ao certo o que era. Meu chefe disse para eu ir atrás dos cafeicultores. Eu fui, encontrei e ninguém falava nada. Todos calados. Voltei para ao jornal e meu chefe perguntou se eu tinha trazido a manchete de amanhã. Eu disse que ninguém tinha falado nada, que não tínhamos nada. Ou seja, não tínhamos manchete nem nota. Nesse momento, o Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, um dos grandes jornalistas do Brasil, escutou o que eu disse e perguntou que história é essa de eu não ter matéria. E perguntou para mim como não tínhamos matéria. Eu disse que ninguém tinha falado. Ele virou para mim e disse: “Você não percebeu que essa é a matéria? Por que ninguém quis falar? Volte lá e vá descobrir, pois o jornalista é aquele que descobre as coisas ocultas, o que está por trás, essa é a motivação. Se você não conseguir, nem precisa voltar, pode enviar tua carteira de trabalho pelo fotógrafo”. Desafiado, fiz a matéria e dei a manchete do dia. A literatura também é um pouco assim. Tem a ver com o que você tira e traz para a superfície. Esse é o escritor. Tem que penetrar nas pessoas, nos assuntos, na situação. Torná-la transparente, mostrar as motivações. Esse é o escritor que eu venho tentando ser. Um dia, vou conseguir.
Literatura e jornalismo
Eu devo muito ao jornalismo. Muita gente me pergunta como um escritor com meu tipo de literatura trabalhou na revista Vogue. Antes de tudo, sou profissional. Convidado, aceitei, era uma experiência nova, outro mundo.
Gostei, aliás, gosto da revista, sou do conselho editorial. Graças a ela desvendei um mundo que explorei em um romance. É o meu livro Anônimo Célebre (Global, 2002) que saiu em outubro nos Estados Unidos e foi escrito porque eu trabalhei na Vogue. Ele fala dessa paranoia da fama e da celebridade, em que todo mundo quer ficar famoso e o porquê disso. Ninguém trabalhou mais com isso do que nós [da revista], pois a Vogue alimenta isso. Essa coisa da fama, da celebridade, de como chegar lá e do vazio que é depois.
O livro nasceu em uma manhã em que eu entrei na Vogue e tinha ali umas 50 meninas, pois era o dia em que elas eram escolhidas para os editoriais. Todo mês tem isso. Eu passei e tinha uma menina muito bonitinha, com o book embaixo do braço e tremendo. Perguntei o que estava acontecendo, se ela estava nervosa. Ela disse que não, mas que eu não sabia a dor que era ser anônima. Ela tinha 14 anos. Essa frase me chocou, me bateu e eu fiquei pensando nessa frase e daí eu comecei a criar o personagem. Ficam célebres e rapidamente se tornam anônimos.
Eu lembro que eu passava todo mês por essas meninas e pensava nessa coisa da vida. Quem a vida vai pensar em transformar numa Gisele Bündchen? Porque a vida é que puxa isso, iguais a Gisele há duzentas. Mas ela é uma coisa especial. Essa coisa de quem a vida pinça é que está no meu livro. Então, essa é a relação com o jornalismo.
“Acho que eu já era escritor desde criança. As melhores redações da classe eram as minhas. Eu era um sujeito muito feio e muito esquisito. As meninas da sala não me olhavam”