Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Depoimento


A bailarina e coreógrafa norte-americana Carolyn Carlson, diretora do Atelier de Paris, fala de sua carreira e do espetáculo que apresentou no Sesc em setembro
 


Carolyn Carlson é alta, esbelta e, embora sua voz carregue sempre o tom da certeza do que está dizendo, a coreógrafa e bailarina norte-americana é simpática, atenciosa e bem-humorada. Nascida na Califórnia, nos Estados Unidos, em 1943, Carolyn começou a realizar trabalhos na Europa – sobretudo na França e na Itália – em 1971. Desde então, entre idas e vindas, nunca mais abandou o continente, onde vive há 35 anos – 30 deles em Paris, capital francesa. “Mudar-me para lá foi algo que teve mais a ver com destino do que com escolha”, disse à reportagem da Revista E durante entrevista exclusiva concedida no hotel onde ficou hospedada, em São Paulo, no início de setembro. A coreógrafa, que atualmente dirige o Centre Chorégraphique National e o Atelier de Paris, ambos na França, esteve no Brasil para apresentar seu mais recente espetáculo, Double Vision, no Sesc Vila Mariana, nos dias 5 e 6 de setembro. O trabalho foi concebido em parceria com a dupla de videoartistas Electronic Shadow, composta pela arquiteta belga Naziha Mestaoui e pelo artista multimídia francês Yacine Ait Kaci, e responsável pelas imagens projetadas durante a apresentação e pela luz do palco. “Foi uma incrível troca de ideias sobre a complexidade do nosso mundo de hoje”, disse a bailarina, referindo-se ao trabalho com a dupla. “Começamos com poesias visuais que foram se transformando em imagens que acabaram inspirando a própria coreografia.” Durante o papo, Carolyn Carlson falou ainda sobre sua vida na Europa e sobre a influência da poesia e da filosofia em suas performances. A seguir, trechos.

Improvisação

É o principal. Aprendi isso com meu professor, Alwin Nikolais, ele era específico no que se referia a concepções: tempo, espaço, forma, movimento. E eu ainda carrego esses temas, levo-os para a companhia. E é incrível, a dança, dentre todas as artes, é aquela que é transmitida para o aluno com o movimento. Você não lê sobre dança, você dança. Você pode ler a música, as notas, mas a dança é um outro tipo de conhecimento: a ação, o movimento. Muitos coreógrafos, talvez, comecem com o balé clássico antes de qualquer outra técnica e depois começam a trabalhar a improvisação. Eu gosto de explorar a técnica e a improvisação no próprio trabalho, para mim as duas coisas tem uma linguagem em comum. Eu coreografei para a Cia. Sociedade Masculina [o espetáculo Pescadores do Ar, apresentado nos dias 19 e 20 de setembro, no Sesc Vila Mariana] e eles conheceram um pouco dessa ideia.

Olhares diferentes

Meus alunos trabalham de acordo com meus preceitos, mas é claro que suas origens, seus repertórios também contam. Em 2004, por exemplo, fiz um trabalho, em uma casa de chá, com um japonês, um chinês e um coreano, e este último tinha acabado de chegar da Coreia, e ele era extraordinário. Eu uso as possibilidades deles. O japonês, o coreano, eles não se parecem conosco [refere-se aos ocidentais], eles têm aquela coisa da meditação, eu não sei, o olhar é diferente. E faço uso desse olhar nos trabalhos.

A dançarina albanesa é absolutamente fantástica. Ela sofreu muito em seu país e, de cara, você já pode ver nela uma profundidade. Enfim, as pessoas são diferentes. E essa diferença está em seus corpos e mentes. Você tem o corpo, que para o bailarino é a chave, mas esse corpo depende da mente. Não dá para separar o corpo do que o bailarino pensa e de quem ele é como pessoa. Depende da personalidade de cada um. Eu acho incrível o que a Pina Bausch costumava dizer. Ela dizia que trabalhava com pessoas, que estava interessada em pessoas.

A vida na Europa

Mudar-me para a Europa foi algo que teve mais a ver com destino do que com escolha. A primeira vez que eu fui convidada para fazer um trabalho em Paris foi em 1971. Ainda lá, me convidaram novamente, até que, por fim, me convidaram para ficar. Eu sempre voltava para Nova York e alguém me chamava novamente – e, de fato, recebe-se muito mais apoio [para a dança] na Europa do que nos Estados Unidos. Depois disso, trabalhei cinco anos na Ópera de Paris, daí conheci um francês – o que foi um ótimo ?motivo para ficar (risos) –, depois fui convidada para trabalhar em Veneza, e fiquei lá por quatro anos. Você não pode dizer não a Veneza. Em seguida eu tive um filho, depois fui chamada para voltar para a França. Estou na Europa há 35 anos e lá é meu lar. Minha alma é americana, são minhas raízes, mas penso que foi mais interessante para a minha carreira ficar na Europa. Os alunos franceses, as companhias francesas, na época, me ajudaram a transformar meu trabalho em algo mais filosófico e poético. A Europa é assim. Os americanos têm aquela energia, uma coisa mais física, e eu trabalho mais com o visual. Por isso digo que não foi uma surpresa eu ter ficado na Europa. Lá eles se conectaram imediatamente com meu trabalho – o que não aconteceu na América. Foi uma evolução interessante.

Dança e poesia

Eu comecei a escrever poesia com 12 anos, quando meu cachorro morreu. É uma história engraçada. Eu tinha nascido com aquele cachorro, ele era meu melhor amigo, estava comigo todo o tempo. Seu nome era Goldie – era um bulldog dourado, daí o nome [a palavra ouro em inglês é gold]. Quando ele morreu, fizemos um enterro para ele no quintal – morávamos numa casa grande, com um enorme quintal. E, na época, eu não conseguia expressar a tristeza que estava sentindo, por isso escrevi um poema. Anos depois, acabei escrevendo um poema para o cachorro.

Pelo fato de escrever e amar poesia, meu trabalho com dança tem uma base poética. Na verdade, para mim, dança é um termo desgastado. “Que dança você vai nos mostrar essa noite?” Não gosto disso. Por isso, geralmente uso o termo dança-teatro, especialmente quando se fala em dança contemporânea. No caso do que faço, uso o termo poesia visual, porque meu trabalho é isso. Sempre trabalho com artes visuais no palco. Estou tentando agora trabalhar com a Maria Bonomi, que é incrível, realmente adoro o trabalho dela. Então combino o visual, sejam pinturas, luzes etc., com a dança. Amo artes visuais e sempre fui conectada com essa área. Tem a ver com possibilidades, espaço e tempo. Quando você se apresenta no palco, você muda o espaço e o tempo.

Dar um tempo

Apresentar-se solo é compartilhar nossa solidão como seres humanos. Porque nós podemos ter amigos, nos socializar com quem for, mas nós ocupamos um espaço solitário no mundo – afinal nascemos e morreremos sozinhos. E isso não é triste, só é preciso aceitar isso. Nós temos as pessoas de que gostamos ao nosso lado, mas estamos sós nessa jornada [na vida]. Se a nossa sociedade de hoje aceitasse isso, as pessoas seriam menos deprimidas. O problema é que ficam martelando na nossa cabeça que não podemos ficar sozinhos, que temos de nos socializar e, mais que isso, que temos sempre que ser entretidos. E isso é algo que aprendi na Europa. Nos Estados Unidos você sempre quer fazer algo. Se você se senta para olhar para a janela logo vem alguém e diz: “Qual o problema? Você não está fazendo nada? Você tem que fazer alguma coisa...”. Na Europa, as pessoas se demoram mais nas coisas, você pode ter três horas de almoço – o que me deixava louca no começo quando me mudei para lá (risos). Nos Estados Unidos você não almoça, você engole um sanduíche e volta para o trabalho. Para mim [demorar horas no almoço] era uma grande perda de tempo (risos).


“Apresentar-se solo é compartilhar ?nossa solidão como seres humanos. Porque nós podemos ter amigos, nos socializar com quem for, mas nós ocupamos um espaço solitário no mundo (...)”