Postado em 03/11/2009
Os Pintores ?de Domingo
por Antonio Bivar
Hoje não estou com a menor vontade de pintar.
– Nem você nem eu. Desde que chegamos aqui. E olha que é domingo, hein! Domingo é quando pintamos melhor. Sem contar que o dia está lindo e se nos animássemos a pintar uma marinha que fosse... Venderíamos na hora para aquele colecionador freguês do teu galerista...
– Você tem toda razão, adoro pintar no domingo. É quando meu espírito entra em alfa, as formas e as cores saem tão nítidas que até eu me surpreendo.
– Então por que não pintamos? Estamos com todo o material em cima: cavaletes, telas, paletas, pincéis, broxas, espátulas, terebintina, os tubos com as cores todas... Por que não pintar? É nosso último dia aqui e com certeza aqui a gente não volta mais. É muito longe, falam uma língua esquisita, uma gente atarracada embora até muito gentil e simpática e, no entanto, a paisagem é única. Essa atmosfera lunar, esse mar de um azul de metileno, essa vegetação desértica e rasteira, essa vastidão, esse vazio, essa ausência de turistas...
– Acho que é por isso mesmo que não pinto. Nesse de menos tudo é demais! Meu espírito se sente constrangido; meu desejo, confrangido...
– Ora, Duncan, não me venha com desculpas. Dos nossos colegas pintores decorativos você é, por todos, considerado aquele que nunca negou pincelada. Qualquer motivo é pretexto para você tascar mais uma demão de tinta, fala a verdade. Seja sincero. Concorda comigo?
– Sim, é verdade. Mas você também não fica atrás. E por falar nisso, Vanessa, por que você também não pintou nada até agora? Viemos aqui para este fim de mundo foi para pintar.
– E pintar ao ar livre. Pintar na ventania... Ao sol, no meio do mar, na chuvarada e na neblina... Telas e telas... Pinceladas violentas e exaltadas... Sem nem ligar para quantas telas acabaríamos furando... Era esse o nosso intento.
– Viemos com tanta disposição! Nem consultamos a meteorologia para saber que tempo costuma fazer aqui. Viemos como um casal de pintores loucos e aventureiros, com a cara e a coragem. Combinamos até de eu pintar o retrato um do outro com essa paisagem de fundo, lembra?
– É verdade. Só que já estamos aqui há duas semanas, este é o segundo e último domingo de nossa estadia e até agora nada. Nem você nem eu. Isso me deixa numa frustração...
– E você pensa que eu também não me sinto arrasado? Depois do que combinamos: não trazer óleo, pintar só com acrílico para secar logo e a gente não ter problema com o transporte, as telas não grudarem no plástico de bolhas... Combinamos desta vez não fazer aquilo que sempre fizemos, que é ir para os lugares sem carregar telas, cavaletes e nada de material pesado, só com bloco de esboço e no máximo lápis de aquarela...
– E deixar para passar para a tela quando de volta ao nosso estúdio na fazenda.
– Sim, é o que sempre fizemos e nunca falhou, sempre deu certo. No entanto agora que trouxemos tudo não conseguimos pintar nada.
– Então que tal desistirmos de pintar, levar todos os apetrechos de volta à pousada, pegar os cadernos de esboços, lápis, crayon e rabiscar rapidamente o que achamos de mais interessante em nossa temporada aqui?
– Nós, que nem câmera trouxemos, avessos que somos à fotografia. Vamos logo que o céu está ficando carregado e hoje é nossa última chance de registrar nossa passagem por esta geografia. Depois, então, de volta à Inglaterra e ao nosso estúdio na fazenda a gente, com calma, passa tudo para as telas.
– Vamos logo, Duncan, que quero fazer o teu esboço com esse chapéu absurdo de... Como é mesmo o nome dele? Lanterna, Lamparina...?
– Lampião.
– Isso mesmo. Quero te retratar como Lampião.
– E a companheira dele, como é mesmo o nome da personagem? Maria Qualquercoisa...
– Maria Bonita.
– Exatamente. Quero te desenhar com o chapéu de Maria Bonita e essa paisagem de fundo, esses cactos. De volta à Inglaterra e à nossa rotina no estúdio, quando eu passar para a tela, você de “Maria Bonita”, a tela pronta, com as cores vívidas desta paisagem... Virginia vai adorar.
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