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Ficção Inédita

Uma conversa de homem para homem

por Eric Nepomuceno

– É que eu acho que não estou preparada para isso.

Os dois estão sentados na sala de televisão, no segundo andar da casa. Faltam vinte para uma da manhã de um domingo de outono, e eles não estão prestando a menor atenção no filme. A mulher insiste:

– Sei lá. Acho que é cedo demais para isso. Faltou tempo. Não estou preparada.

Bernardo acende um cigarro, apanha o copo, fica olhando o rubi do vinho. A mulher esfrega as mãos, como se quisesse se livrar de alguma coisa. A mulher está aflita. Olha o marido. Ela insiste: 

– Acho que é cedo demais para isso. Você conversou com ele?

Bernardo está impaciente. Olha a brasa do cigarro, e diz:

– Conversei. Quer dizer, acho que conversei. Mas não adianta conversar: essas coisas têm de acontecer, acontecem, e até melhor que aconteçam assim. Sabe o que é? A gente não pode ter o controle de tudo. É a vida dele. Que seja o que tiver de ser. Você sabia que isso ia acontecer. Ou não sabia? Ele tem quase dezenove anos, essas coisas são assim mesmo. Ou você não sabia?

– Acho que sabia. Mas não sabia que ia acontecer agora. É muito cedo. Não estou preparada.

– E como é que a gente se prepara? Isso não existe. É a vida dele.

Do quarto do filho, no mesmo segundo andar onde fica a sala onde eles estão, vem o som de uma música. É como se fosse um aviso, um sinal. Bernardo olha a televisão.

– Olha só que coisa estranha.

– O que?

– O filme.

– Que filme?

– Esse aí. Velhíssimo e ruim.

– Sei. Mas que filme é esse?

– Helena de Tróia.

– Uma droga, estou vendo. Mas o que é que tem de estranho?

– Brigitte Bardot fazendo uma ponta.

– E daí?

– Daí, nada. Estava só lembrando. Será que as pessoas ainda sabem quem foi Brigitte Bardot? Quando vi esse filme, eu tinha treze ou catorze anos. Vi com o Guilherme. Foi num domingo, no cinema da praça. O dia em que Guilherme foi namorar a Sônia Pires. Naquele tempo a gente pedia as meninas em namoro. Lembra? “Quer ser minha namorada?” Era um sufoco. Naquele domingo, sessão das quatro, nós dois sofríamos feito pecador arrependido. Eu estava com o suéter verde musgo que minha mãe fez para mim. Guilherme usava sapato branco e meias vermelhas. A gente achava que era o máximo. Foi a primeira vez que um de nós ia pedir uma menina em namoro. 


– Nossa, que memória!

– Pois é. Certas coisas a gente não esquece nunca. Hoje, por exemplo. A gente não vai esquecer nunca.

– E o que é que isso tem a ver com o filme?

– Nada, é só uma coincidência.

A mulher fica em silêncio, olhando a televisão. Depois de um tempinho, diz:

– Acho que vou dormir.

– Eu também.

– E você acha mesmo que está certo?

– O quê?

– Ora, isso aí.

– Claro que está certo. Pelo menos não está errado... E além do mais, você sabia que a qualquer hora isso ia acontecer.

– Pois é. Sabia. Mas não estou preparada.

– É bom ficar. Você sabe: certas coisas, que nem o que está acontecendo hoje, a gente nunca esquece. Agora, vai ter de estar preparada para isso: para não esquecer...

O homem apaga o cigarro no cinzeiro, dá um derradeiro gole no copo de vinho tinto.

– Esqueci de contar: encontrei o Guilherme, sexta--feira. Foi de noite, quando eu ia voltando para casa. Fazia dezoito anos que a gente não se encontrava. Ficamos conversando um tempão. Ele está ótimo.

– E por que você não me contou antes?

– Esqueci. Acho que a gente devia se encontrar, na próxima vez que ele vier ao Rio. Quero dizer, encontrarmos nós três, com você também.

A mulher sorri para o homem, como quem estivesse lembrando tempos bons. 

– Claro. Vamos dormir?

– Vamos.

A mulher se levantou, desligou a televisão e não conseguiu não perguntar:

– E o que a gente faz com esses dois aí?

O homem sorriu.

– Nada. A gente não tem de fazer nada. Deixa assim, do jeito que está.

– Ah, sei não. De verdade, não estou preparada.

Mas o marido já havia ido embora, caminhando pelo corredor.

A mulher está lendo na cama, na mesa de cabeceira tem um abajur de luz forte, o homem está deitado de costas para a mulher, de costas para o abajur. Do quarto do filho vem o som de um trompete.

– Pelo menos, ele tem bom gosto. Está mostrando Chet Baker para a menina. Como é mesmo o nome dela?

– Não sei. Eu estava tão nervosa quando vi que ela tinha vindo para passar a noite, que nem ouvi direito.

– Não importa.

O homem dormiu quase que em seguida. A mulher continuou lendo um tempinho mais, e depois apagou a luz do abajur e se encolheu ao lado dele. 

Pouco depois das três da madrugada, o homem acordou com o som das risadas que vinham do quarto do filho.

Agora, a música era a do piano alucinado de Egberto Gismonti. O homem entrou num roupão marrom, caminhou pelo corredor e bateu de leve, mas com firmeza, na porta do quarto do filho. E em seguida desceu e foi até a cozinha.

Estava tomando água no gargalo da garrafa de vidro verde quando o filho entrou na cozinha. Vestia as calças do pijama e calçava chinelos de praia. Trazia estampado no rosto o ar de orgulho que resulta das grandes batalhas vitoriosas.

– Tudo bem, pai? Você bateu na porta do meu quarto?

O pai conteve um sorriso de certa cumplicidade, e em seguida tratou de responder num tom natural:

– Essa moça ri muito alto.

O filho respondeu, altivo:

– Essa moça tem nome.

Mas não disse qual era esse nome, e o pai limitou-se a sacudir os ombros enquanto fechava a porta da geladeira. Na porta da cozinha virou-se para o filho, e arrematou:

– E vê se não põe o som tão alto. 

– Está bem.

– Diga uma coisa: de quem foi a ideia de ouvir Chet Baker?

– Por quê?

– Por nada. Eu só queria saber. Era você mostrando para ela, ou ela que quis ouvir?

O filho sorri um sorriso aberto:

– Eu que quis mostrar.

– Esse disco é meu.

– Eu sei. É só emprestado.

– Amanhã, você devolve. Coloca lá no lugar. E da próxima vez que quiser ouvir um disco meu no seu quarto, avise antes.

– Está bem. A que horas você vai acordar?

– Cedo, meu filho. 

– Então, acorda a gente às nove.

O plural pegou o pai de surpresa, como se ele tivesse esquecido da moça no quarto do filho. Já no corredor, disse:

– Boa noite.

O filho não respondeu. Estava preparando um enorme sanduíche de carne assada, alface e tomate para a namorada. 

O pai insistiu, dessa vez em voz alta:

– Boa noite, filho.

O filho se assustou com o tom de voz.

– Boa noite, pai.

– E amanhã, devolve o disco.

O filho sorriu e não disse nada. Porque, em certas circunstâncias, os homens fazem exatamente isso: sorriem, e não dizem nada.



Eric Nepomuceno é autor, entre outros livros, de O Massacre (Planeta do Brasil, 2007)