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Esporte e educação

Na visão de alguns estudiosos, a prática de esportes sem fins competitivos ou de performance pode trazer contribuições que vão além dos benefícios físicos e psicológicos. De acordo com essas análises, a sociabilização e a superação de limites estariam entre os ganhos dos praticantes. Seguindo essa linha, o Em Pauta desta edição se propõe a discutir mais um aspecto do esporte: seu potencial educativo. Para falar sobre o assunto, foram convidados o professor doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) Osvaldo Luiz Ferraz, especialista em educação física escolar, e a ex-jogadora de vôlei e presidente do Instituto Esporte & Educação (IEE) Ana Moser. Leia os artigos a seguir


Esporte na educação da criança ativa

por Ana Moser, Adriano Rossetto e Caio Martins

A prática do esporte é direito de todo e cada brasileiro, reconhecido na Constituição Federal, ao lado de outros direitos básicos, como saúde, educação, moradia e trabalho. E, como não poderia deixar de ser, esse direito é reforçado no Estatuto da Criança e do Adolescente, denotando aos municípios, estados e à União a responsabilidade por proporcionar os meios da prática esportiva e de lazer para todos.

O esporte como fator de desenvolvimento humano é um conceito perfeitamente aceitável, e até desejável, nos contextos educacionais e políticos atuais. E, se já é aceito como conceito, o desafio passa a ser concretizar as teorias numa prática eficiente e universal, uma prática que represente um rompimento com o histórico de ensino da educação física e do esporte na escola, exclusivamente voltado para o ensino das técnicas relacionadas a diferentes modalidades e acessível somente aos mais habilidosos. De outra maneira, uma prática que leve em consideração fundamental a diversidade de motivações e habilidades entre os alunos/praticantes e que implemente as dimensões do esporte educacional e de participação, por vezes com estruturas e regras “informais”, como alternativa para a prática esportiva por parte da maioria da população, especialmente a população infantil.

O Instituto Esporte & Educação (IEE) há oito anos promove a prática de esporte educacional e de lazer às populações de baixa renda, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Sorocaba e Itatiba, a quem tem pouco ou nenhum acesso às práticas esportivas estruturadas e orientadas, seja na educação física ou em atividades extracurriculares, não reconhecendo os benefícios, valores e possibilidades do esporte e não desfrutando deles.

Também leva o esporte às cidades do semiárido nordestino, Região Norte do país e comunidades indígenas do Centro-Oeste, com baixos índices de desenvolvimento humano, distantes dos grandes centros e apartadas das diversas manifestações esportivas, com o Programa Caravana do Esporte, por meio de festivais e torneios esportivos e da formação de professores locais, responsáveis pela continuidade do desenvolvimento do esporte.

Os programas de esporte socioeducativo desenvolvidos pelo IEE, em parceria com o poder público, a iniciativa privada e as comunidades, seguem os princípios da inclusão social; da construção coletiva; do respeito à diversidade; da educação integral e do rumo à autonomia. Especialmente nos 44 Núcleos Esportivos, são mais de 100 professores planejando, executando e sistematizando as práticas esportivas de crianças e adolescentes, propiciando a saúde, a cultura, o lazer, a educação, a integração comunitária e o protagonismo das crianças por meio do esporte.

Com o foco no atendimento das crianças e dos adolescentes, as ações são planejadas a partir de um currículo de esporte educacional, aplicado pelos professores nas diferentes realidades. Olhar o aluno é enxergar todos os meios sociais que o cercam, seus potenciais e anseios, e com o que o esporte pode contribuir para fortalecer o indivíduo e sua comunidade. Hoje e no futuro.

O resultado do trabalho dos professores em campo vem sendo sistematizado pelo IEE em livros, artigos e trabalhos científicos. A seguir, apresentamos algumas dessas estratégias e seus resultados:

A família no esporte – Nos núcleos são realizados festivais, torneios e eventos que envolvem as famílias das crianças e jovens participantes, assim como toda a comunidade local. São utilizadas a estratégia de jogos da cultura, jogos pré-desportivos e jogos reduzidos. Nessas ações, são promovidas atividades de jogos entre pais e filhos, torneios entre as instituições da comunidade, conscientização da prática de exercícios regulares para a melhora da saúde, reconhecimento do direito à prática esportiva e dos espaços públicos para tal, vivência de esportes desconhecidos pela comunidade, sem falar de teatro, cinema, exposições e dança. Nos Núcleos também são organizadas turmas de ginástica e caminhada para as mães dos alunos e para a comunidade em geral, que estreitam o vínculo com a família e fortalecem as ações, com a valorização da prática esportiva e de exercícios feitos pelos adultos para conscientização dos benefícios e valores do esporte. Resultados dessa prática foram apresentados nos anais do 28º Simpósio Internacional de Ciências do Esporte, realizado em 2005, em São Paulo.

Esporte na escola – O IEE desenvolve parceria com várias prefeituras para promover esporte no contraturno escolar para crianças e jovens nas escolas municipais. Pesquisa realizada pelos professores e coordenação do IEE, que será publicada na Revista Científica do 22º Congresso Paulista de Educação Física, constatou a diminuição da agressividade e o melhor desempenho escolar das crianças e adolescentes participantes do programa. Em artigo publicado no Boletim FIEP do 21º Congresso Internacional de Educação Física – realizado em 2006, em Foz do Iguaçu, no Paraná –, comprovou-se a internalização de valores humanos, como honestidade, paz, liberdade, justiça e solidariedade em crianças das escolas públicas que participavam desse programa.

O programa Caravana do Esporte, com mais de 30 municípios visitados e 9 mil professores capacitados, contribuiu para um impacto positivo na evasão escolar, repetência, frequência dos alunos e implantação de políticas públicas de esporte, conforme foi verificado nos depoimentos de secretários de Educação, diretores, coordenadores, professores e da própria comunidade, apresentados no canal ESPN-Brasil.

Esporte no clube – Alguns dos núcleos coordenados pelo IEE funcionam dentro de clubes municipais de São Paulo. A introdução de ações esportivas orientadas representa a melhor estratégia para fortalecer esses espaços como locais de convergência das comunidades vizinhas. Esse movimento de ocupação pela comunidade segue no sentido oposto ao que tradicionalmente acontece com esses clubes, ou seja, serem frequentados por um número reduzido de praticantes homens, exclusivamente ligados à cultura do futebol de várzea.

No Sesc Tijuca, no Rio de Janeiro, o IEE também desenvolve o esporte com esses objetivos para a comunidade do Morro do Macaco e associados, e colhe excelentes resultados no aspecto motor do comportamento humano e, especialmente, na integração das crianças e dos jovens de classes sociais distintas, que aprendem com a diversidade e constroem uma sociedade mais justa. As diversas experiências, resultados e desafios dessas atividades são apontados no livro Práticas Pedagógicas Reflexivas em Esporte Educacional (Editora Phorte, 2008).
Esporte no bairro – No intuito de estimular o protagonismo, o IEE desenvolve em seus 44 núcleos ações que orientam as crianças e jovens para a monitoria de atividades de recreação e esporte, elaboração de planos de ação para melhora e benfeitoria de espaços de lazer e esporte da comunidade e realização de torneios e festivais envolvendo as instituições dos bairros, com resultados extremamente positivos. Alguns casos de sucesso são descritos no livro Práticas Pedagógicas Reflexivas em Esporte Educacional.

Esporte e vida – Nos programas em comunidades, buscam-se a educação integral, o respeito à diversidade e o ensino de habilidades além das esportivas, gerando competências para a vida das crianças e adolescentes. Os professores desenvolvem atividades esportivas com o objetivo de, por exemplo, diminuir a agressividade, especialmente a expressada pelo vandalismo, ou para diminuir o preconceito às diferenças, especificamente o preconceito contra os homossexuais. Como resultado das ações e dos projetos foi demonstrada a eficácia do esporte no controle e diminuição tanto da agressividade como do preconceito. As experiências foram relatadas em dois artigos científicos apresentados no I Encontro da Associação Latino-Americana de Estudos Socioculturais do Esporte, realizado em 2008, e publicados em revista eletrônica com o mesmo título.

Essas são algumas das inúmeras possibilidades do esporte na educação e lazer que o IEE desenvolve com a intenção de formar crianças e adolescentes ativos, conscientes, críticos, saudáveis, participantes e reflexivos.

“O esporte como fator de desenvolvimento humano é um conceito perfeitamente aceitável, e até desejável, nos contextos educacionais e políticos atuais. (...) o desafio passa a ser concretizar as teorias numa prática eficiente e universal”



Ana Moser é ex-jogadora de vôlei e presidente do Instituto Esporte & Educação (IEE).?Adriano Rossetto e Caio Martins são coordenadores pedagógicos da mesma instituição.

 

 


Infância ativa, adulto ativo?
  Aspectos que favorecem a cultura esportiva

por Osvaldo Luiz Ferraz

Pesquisas sobre o envolvimento em práticas esportivas têm apresentado os principais motivos pelos quais crianças e adolescentes iniciam e se mantêm em programas dessa natureza. Os principais fatores apontados são: competência esportiva, socialização e preocupações com a saúde. Na categoria de competência esportiva incluem-se elementos como: adquirir habilidade, estar em forma, competir, aprender novas habilidades e participar de desafios. Já na socialização, os aspectos contemplados referem-se a: ter amigos, fazer novas amizades, pertencer a um grupo, divertir-se, entre outros. Finalmente, a preocupação com a saúde diz respeito à melhoria da aptidão física e manutenção da forma física.

Em que pese a importância desses três aspectos e a influência do contexto social e cultural sobre essas motivações, pretendo, neste breve ensaio, abordar um aspecto que considero extremamente importante nos programas de prática esportiva e de atividades físicas em geral, a saber: a ludicidade das ações.

O pressuposto básico é que programas de atividades físicas e esportivas que procuram promover a saúde e o lazer estarão fadados ao fracasso se não considerarem os aspectos lúdicos em suas atividades.

Nesse sentido, a ludicidade presente nas ações esportivas é um componente que necessita ser respeitado, seja no planejamento das atividades de ensino, seja no momento de sua implantação. Sendo assim, propõem-se indicadores que permitem inferir a presença do lúdico nas atividades de ensino, para que profissionais envolvidos com esses programas possam considerá-los. A ideia central é que grande parte das resistências, desinteresses e dificuldades de envolvimento dos aprendizes pode ser minimizada se aspectos lúdicos forem contemplados nas atividades de ensino.

Valorizar o lúdico nos processos de ensino significa considerá-lo na perspectiva dos aprendizes, uma vez que, para eles, apenas o que é lúdico faz sentido, sobretudo se são crianças. Outra função da proposição desses indicadores é contrapor a noção de que lúdico significa, necessariamente, algo sempre prazeroso e agradável para aquele que realiza a atividade. Sabe-se o quanto pode ser angustiante e não tão agradável o início de novas aprendizagens.

Pode-se analisar a dimensão lúdica nas atividades considerando-se cinco indicadores, a saber: prazer funcional, desafio, criação de possibilidades, dimensão simbólica e expressão construtiva ou relacional.

Inicialmente, tem-se o prazer funcional, que é o exercício de um certo domínio sobre uma habilidade motora.

Nesse caso, as atividades que compõem os jogos esportivos não são meios para outros fins, são fins em si mesmos. Na perspectiva do aprendiz não se joga para ficar mais inteligente, o interesse que sustenta a relação é repetir algo pelo prazer do exercício, do funcionamento. É muito comum observarmos nossos alunos realizando controle de bola com os pés (embaixadinha do futebol) sem uma intenção específica de aprendizagem ou de marcar gol, a não ser pelo simples prazer do movimento. Essa característica da ludicidade da ação já se manifesta muito cedo na vida do ser humano, como quando o bebê repete várias vezes o mesmo movimento pelo simples prazer do funcionamento.

Outro indicador é o desafio, ou seja, a situação problema que se constitui em um obstáculo a ser vencido.

Caracteriza-se por uma dificuldade que requer superação. É quando se depara com a surpresa de não se conseguir controlar todo o resultado. Por isso, os conteúdos das atividades não podem ser repetitivos e sua realização e demandas não podem ser demasiadamente previsíveis. O aprendiz avalia aquilo que é necessário fazer relacionando-o às suas competências e habilidades e à situação ou adversário.

O terceiro indicador é a mobilização de possibilidades. O que se quer dizer é que, na perspectiva do aprendiz, não se realizam tarefas ou atividades impossíveis. É necessário que a criança ou o adolescente disponham de recursos suficientes para a realização da tarefa ou de parte dela. Os recursos podem ser internos ou externos. O primeiro refere-se às habilidades e competências e o segundo relaciona-se aos objetos, ao espaço, ao tempo e às pessoas com quem se realizam as atividades.

O quarto indicador refere-se à dimensão simbólica, significando que as atividades são motivadas e históricas. O sentido e o significado das tarefas estabelecem uma relação entre a pessoa que faz e aquilo que é realizado.

Esse aspecto é fundamental para a ludicidade da ação, pois se constitui em uma forma de se relacionar com o mundo pela via da imaginação, do conceito, do sonho e da representação. O jogo simbólico presente nas atividades das crianças é o exemplo mais significativo da gênese desse aspecto na dimensão lúdica. Atribuem-se sentidos aos objetos, simulam-se personagens e acontecimentos, projetam-se desejos, sentimentos e valores, expressando seus modos de incorporar o mundo e a cultura em que se vive. No caso dos jogos de regras e das atividades pré-desportivas, pode-se observar o interesse nas dicas de aprendizagem que remetem as crianças a um fazer mais próximo das técnicas esportivas praticadas pelos adultos ou jogadores mais habilidosos. O saque “viagem ao fundo do mar” do voleibol, as “enterradas” no basquetebol e o drible “pedalada” no futebol são exemplos da expressão desse aspecto na dimensão lúdica das ações no esporte.

Finalmente, propõe-se a expressão construtiva ou relacional como o último indicador da presença do lúdico nas atividades de ensino do esporte. O que caracteriza esse aspecto é o desafio de considerar algo segundo diversos pontos de vista. A apreensão das características dos objetos do conhecimento não pode se dar de uma só vez, dada sua natureza relacional e diversa. Por exemplo, quando se joga futebol é necessário observar as posições e deslocamentos dos adversários e companheiros, a bola, o ataque, a defesa, entre outros aspectos. Mesmo sabendo que isso tudo faz parte de um todo, o processo de aprendizagem implica considerar a relação múltipla de fatores. Investigar, planejar, estudar possibilidades, rever posições, pensar estratégias e alternativas constituem-se no estabelecimento de uma direção que ora diferencia esses aspectos, ora os integra.

Além da atenção sobre os aspectos lúdicos que os profissionais envolvidos em programas esportivos e de atividades físicas devem ter, podemos falar também sobre o papel dos pais. Gostaria de oferecer algumas dicas para os pais, a fim de estimularem seus filhos para uma vida ativa. Os pais podem:

1. Brincar com seus filhos, cultivando nossa cultura lúdica;

2. Ensinar brincadeiras conhecidas pelos pais e avós e que, hoje, não são tão frequentes (pião, bola de gude, pipa, diabolô...);

3. Fornecer materiais que possam auxiliar e oferecer desafios para o desenvolvimento de competências de movimento (bolas, cordas, tacos, raquetes, perna de pau, amarelinhas, elásticos etc.);

4. Conversar sobre a importância das atividades motoras para a saúde;

5. Assistir a eventos relacionados à cultura de movimento, fornecendo jornais, fotos e revistas sobre o tema;

6. Conversar sobre atitudes, estratégias, lances espetaculares, regras e personalidades ligadas à cultura de movimento, pedindo à criança que faça comentários a respeito;

7. Auxiliar seu filho a lidar com o sentimento de perda e vergonha no que diz respeito a dificuldades para participar de atividades de movimento, incentivando sua participação e auxiliando-o a relativizar determinado ponto de vista.

Por fim, é importante ressaltar que as crianças necessitam de abundância de oportunidades numa variedade de atividades motoras vigorosas e diárias, com o objetivo de desenvolver suas capacidades singulares de movimento. Contribui-se, assim, para a formação de um cidadão apto a participar de programas esportivos em geral e de um consumidor crítico em relação a espetáculos esportivos e informações veiculadas pelos meios de comunicação.


“(...) as crianças necessitam de abundância de oportunidades numa variedade de atividades motoras vigorosas e diárias, com o objetivo de desenvolver suas capacidades singulares de movimento”


Osvaldo Luiz Ferraz é professor doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) com ênfase em educação física escolar – olferraz@usp.br