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Encontros
por Kiko Goifman
Antes de iniciar a carreira no cinema, o mineiro Kiko Goifman concluiu o curso de antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais e, em seguida, mudou-se para Campinas, interior de São Paulo, para realizar um mestrado em multimeios, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – o que, segundo conta, “consolidou” o seu interesse pelo audiovisual. “Naquele momento eu juntava bastante do meu trabalho em antropologia com um interesse mais focado em documentários”, disse durante conversa com o Conselho Editorial da Revista E. É dessa época, início dos anos de 1990, o seu primeiro trabalho atrás das câmeras, o curta-metragem Tereza (1992), que mostra o cotidiano em um presídio. “Esse filme tem a ver com a minha dissertação de mestrado, que era sobre o conceito de tempo na prisão”, explica Goifman. Desde sua estreia, vieram o curta Território Vermelho (2004), os média-metragens Morte Densa (2003) e Handerson e as Horas (2007), feito para a TV, e os longas: 33 (2002), Ato dos Homens (2006) – inédito no Brasil – e FilmeFobia (2009). Goifman também produziu, em setembro e outubro de 2008, o filme Fome de Viver junto com as crianças do projeto Murographia do Sesc Ipiranga. O longa está previsto para estrear no SescTV no dia 19 de julho, às 22h.
A seguir, trechos do bate-papo em que o convidado da seção Encontros desta edição falou sobre a violência como tema do seu trabalho e sobre o que, em sua opinião, divide o documentário da ficção na era dos realitiy shows.
Temática da violência
Meus trabalhos relacionados à violência têm a ver com minha formação em antropologia. Durante um ano e meio da minha vida, eu até dei aula de mestrado na Candido Mendes em criminologia. A disciplina se chamava “cárcere e arte”, e meus alunos eram policiais, médicos legistas, dentistas legistas etc. Eu levava um ?pouco de literatura e filmes que tratassem de questões relacionadas à violência. O que eu acho é que, infelizmente, a violência é uma das formas possíveis para compreender alguns aspectos das relações humanas. Além de ser interessante tocar em assuntos que, de certa forma, são considerados tabu, como a adoção [em 33] e a fobia [em FilmeFobia], por exemplo. No caso da fobia, diz-se que 10% da população é fóbica, embora se acredite que exista um número muito maior. No entanto, 10% também é o número de pessoas que procuram ajuda de psicanalistas, psicólogos etc. Mas geralmente essas pessoas procuram ajuda quando têm algum tipo de fobia social, que as impeça de sair de casa; enfim, que complique a vida delas.
Quando vou fazer algum filme, gosto de mergulhar no universo sobre o qual a obra vai falar. Morte Densa, que dirigi com Jurandir Muller, por exemplo, é um filme que fala sobre pessoas que já mataram uma vez, e foi um momento muito grande de imersão em literatura policial e em filmes relacionados a assassinatos, principalmente os clássicos. Eu trabalho com uma rede de influência que não necessariamente é o cinema. No caso de 33, tem uma forte pesquisa em literatura policial – e, obviamente, em cinema noir. As referências são múltiplas. Às vezes, a referência principal para fazer um trabalho está na literatura. Meu próximo projeto, por exemplo, é baseado em três coisas: um escritor inglês que escreveu sobre assassinatos como uma das belas artes; histórias de um comedor de ópio do fim do século 19 – e que trabalhava com um grupo de devotos do assassinato –; e também uma história que saiu na imprensa há dois anos, a do Vampiro de Presidente Prudente, um cara que tinha os caninos maiores e que conseguiu convencer as pessoas de que era um vampiro – inclusive conseguindo mordê-las.
Filme proibido
Ato dos Homens é meu segundo longa-metragem, foi lançado no festival de Berlim e entrou em cartaz na Alemanha. Ele é inédito no Brasil e fala sobre um massacre de 29 pessoas que aconteceu na Baixada Fluminense, em 2005, no mesmo dia em que o Papa morreu. Tive problemas com o filme. Falei com a Kátia Lund sobre fazer o filme e ela disse que eu não deveria fazê-lo. Ainda não posso passar esse filme no Brasil, tenho mais medo pelas pessoas de lá, que falam abertamente. Até porque 11 policiais foram acusados e sete já estavam em liberdade, e ainda tem um esperando julgamento. Tem pessoas que estão soltas e seria complicado para as pessoas da Baixada. O filme plasticamente é muito feio, com uma câmera que tremia bastante – nós falamos que a câmera tremia de medo. Eu não conhecia nada de Nova Iguaçu e Queimados. O filme chama Ato dos Homens por causa de um curta-metragem do Peter Greenaway chamado Atos de Deus, e que fala de pessoas que sobreviveram a raios. Decidi então fazer um filme sobre pessoas que sobreviveram a massacres no Brasil. Pensei em Eldorado dos Carajás, Candelária, Corumbiara ... Mas, uma semana antes de eu começar a filmar, aconteceu esse massacre. Mandei uma carta para os co-produtores e patrocinadores, que são alemães, e disse que nossa realidade era maior que nosso cronograma, e fui para a Baixada Fluminense. Quando cheguei lá, não conhecia nada, até porque não tive possibilidade nem tempo de fazer uma pesquisa sobre o lugar.
O cineasta Kiko Goifman esteve presente na reunião de pauta do Conselho Editorial da Revista E em 23 de abril de 2009 |
Baseado em atos reais
O Jean-Claude Bernardet costuma dizer que ficção e documentário são conceitos que acabaram, devem ser jogados no lixo e não dão mais conta da produção de audiovisual no mundo. Tendo ainda a pensar em termos de ficção e de documentário. Sinto que filmes que trabalham numa zona de fronteira [entre ficção e documentário] representam uma área pouco tocada. Alguns filmes agora estão trabalhando nisso. Ser um filme híbrido não quer dizer que ele será bom ou ruim. Sinto, pelo lado da ficção, que existia uma crítica há algum tempo em relação à interpretação. Existe um desejo de uma volta do realismo, da utilização de uma câmera mais próxima do documental. E também um processo de trabalho com os atores que esteja mais relacionado à possibilidade do acaso e do improviso em alguns momentos. Tem algumas experiências assim, e no Brasil eu citaria dois filmes geniais dos últimos tempos: Santiago [documentário de João Moreira Salles lançado em 2007 e baseado na vida do mordomo da casa de sua família] e Jogo de Cena [documentário de Eduardo Coutinho lançado em 2007 e no qual 23 mulheres contam a história de suas vidas, que posteriormente é interpretada por atrizes]. Acho que Jogo de Cena é uma das coisas mais absurdas que temos de ficção/documentário. Acho, por exemplo, que o Eduardo Coutinho é o principal cineasta brasileiro, e não o principal documentarista. Uma coisa bacana que existe hoje em dia é o interesse das pessoas pelo real. Pelo que tem aparência de real. Você pode ver isso na internet, em blogs, fotologs, enfim, em histórias pessoais. Mesmo em Hollywood, produções que gastam milhões de dólares em direitos autorais só para, no final do filme, poder colocar que aquela história foi baseada em fatos reais. E tem ainda os reality shows? na tevê. Enfim...Uma esfera do real. Isso não traz garantia nenhuma de que será bom ou ruim, mas esse desejo pelo real vem alimentando a ficção, que talvez andasse meio capenga. Talvez as misturas possam ser boas.
“Uma coisa bacana que existe hoje em dia é o interesse das pessoas pelo real. Pelo que tem aparência de real. Você pode ver isso na internet, em blogs, fotologs, enfim, em histórias pessoais”