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Cidadão do Mundo

Maior nome da geografia no Brasil, Milton Santos expandiu os limites da disciplina ao propor uma interpretação do país baseada nas necessidades dos excluídos
 


A história do homem que viria a mudar as feições da geografia no Brasil e ganhar destaque no cenário mundial resvala, em muitos momentos, na própria trajetória do país, que sempre surpreendeu pelas discrepâncias socioculturais. No caso de Milton Santos, nascido em 1926, em Brotas de Macaúbas, na Bahia, isso já pode ser notado desde as origens, que misturam campo e cidade, analfabetismo e eruditismo. Neto de pequenos agricultores distantes das letras por parte do pai, do lado materno descende de avós que promoviam saraus e reuniões literárias em casa, com direito à presença de convidados do calibre de Ruy Barbosa – conforme narra o texto Milton Santos: A Formação de um Pensador Universitário Crítico, do geógrafo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Armen

Mamigonian, presente no livro Milton Santos e o Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004).
Os pais eram professores primários estaduais, o que fez o garoto desenvolver o gosto pelos estudos desde muito cedo. Ainda em casa, até os dez anos e entre as mudanças de cidade da família, aprendeu álgebra e francês. Em seguida, partiu para o Instituto Baiano de Ensino, em Salvador, onde foi aluno interno. “Mesmo morando em pequenas cidades da Bahia até os dez anos, Milton foi sendo preparado por sua família para ser um cidadão de Salvador”, escreve Mamigonian. “A cidade civilizada por excelência, com suas escolas universitárias de alto padrão, onde poderia alcançar as alturas que haviam alcançado André Rebouças (1838-1898) e Teodoro Sampaio (1855-1937), que se destacaram nacionalmente como modelos de ascensão intelectual, valorizados pelos baianos de origem africana.”

Zona do cacau
Uma vez no ambiente acadêmico, começou a se destacar. Aos 13 anos, por exemplo, substituía o professor de matemática em suas faltas. Isso na época em que ambicionava a Escola Politécnica, ideia rapidamente descartada por influência dos “familiares, a partir da constatação da dificuldade excessiva de acesso, inclusive por razões de preconceito racial”, explica Mamigonian. Voltou, então, seus interesses para o direito e passou a frequentar o chamado curso pré-jurídico, em 1942, na mesma época em que começou a lecionar geografia para os colegas atrasados na matéria. De 1944 a 1948, Milton Santos cursou a Faculdade de Direito da Bahia e, em 1949, ocupou a cadeira de geografia no Colégio Municipal de Ilhéus. Durante esse tempo, passou a dividir o magistério com o papel de correspondente do jornal baiano A Tarde, para o qual escrevia artigos sobre a região conhecida como zona do cacau, em Ilhéus. “Naquele momento, a formação de Milton Santos estava quase completa”, escreve Mamigonian. “Na verdade, faltava se formar geógrafo e conhecer mais intimamente os meandros da política.” Ainda de acordo com o texto publicado em Milton Santos e o Brasil, o convívio com a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) contribuiu para a primeira tarefa, e o conhecimento adquirido pela relação com o jornalista Simões Filho, editor de A Tarde, encarregou-se da segunda. “[Milton Santos] Começou a frequentar a AGB, em Belo Horizonte, em 1950, tendo seu trabalho sobre a zona do cacau rejeitado duas vezes”, lembra Mamigonian, referindo-se à análise que, na terceira tentativa, foi aceita pela AGB e, em 1955, transformou-se no livro Zona do Cacau, considerado seu primeiro trabalho importante na área que viria a dominar.

Turbilhão político
Durante o tempo em que trabalhou também como jornalista, Milton Santos viu seu nome ganhar notoriedade no ambiente político. Tanto que Jânio Quadros, ao assumir a presidência do país – cargo que ocupou entre 31 de janeiro e 25 de agosto de 1961, quando renunciou –, chamou o jornalista/geógrafo para acompanhá-lo durante uma visita a Cuba. Tinha início mais um período de sua história. “O Jânio também era professor de geografia, tinha uma formação muito integrada e correta, de uma escola aqui de São Paulo”, diz o geógrafo e professor Aziz Ab’Sáber, que conheceu Milton, “desde muito mocinho”, afirma. “E o Milton começou a falar sobre geografia, sobre as coisas que ele via, sobre o que ele fazia, sobre a região do cacau etc., e quando chegou lá em Cuba o Jânio ficou muito impressionado de conversar com Milton Santos e de perceber que aquele jovem simpático e sorridente sabia muito mais que ele, Jânio, professor de uma escola secundária aqui em São Paulo.” O resultado disso foi a nomeação de Milton para um cargo de representante do governo federal na Bahia. “Aí começou outra fase da vida do Milton, porque ele tinha mais força do que o próprio governador da Bahia, isso deu muita ciumeira”, relata Ab’Sáber. No livro Território e Sociedade (Editora Fundação Perseu Abramo, 2000), o próprio Milton Santos lembra desse momento. “[Jânio Quadros era uma pessoa] De quem eu gostava muito”, diz em resposta a uma pergunta sobre seu trabalho com o político. “Gostava porque achava que ele era progressista. As coisas progressistas que apresentei a ele (...) ele aceitou e assinou.”

Rumo ao exílio
No entanto, a trajetória do professor, geógrafo e jornalista foi interrompida, em 1964, quando se instalou o regime militar no país. Acusado de comunismo, Milton foi preso e torturado. “Judiaram do Milton ao extremo durante meses”, conta Ab’Sáber. “Ele quase perdeu os olhos por passar a noite inteira com uma luz no rosto, e os policiais querendo que ele falasse e ele não tinha nada para falar. Ele nunca foi uma pessoa de esquerda radical.” Milton, em seguida, partiu para Estrasburgo, na França. E, também lá, tratou de driblar as adversidades e seguir seu caminho. É quando tem início a história de um Milton Santos como nome internacional da geografia. “Bem antes disso, em 1956, tinha passado pela Bahia um conjunto de professores estrangeiros que tinham vindo para um congresso internacional de geografia”, continua Ab’Sáber. “E foi quando o Milton conheceu os grandes geógrafos da primeira metade do século passado e que gostaram muito dele.” Entre eles, estava Jean Tricart, sumidade na área, que o acolheu no exílio e serviu de canal com a intelectualidade francesa. “Milton conseguiu trabalhar na Universidade de Toulouse, indicado pelo professor Tricart, lá ele fez carreira, escreveu artigos, deu aulas brilhantes”, diz Ab’Sáber. “E a partir dali teve contatos com órgãos franceses de auxílio à pesquisa, e foi para a África. Lá, estudou as cidades africanas pelas quais pôde passar e escreveu um livro, que é o da minha preferência na obra dele: A Cidade nos Países Subdesenvolvidos (Civilização Brasileira, 1965).”

Reconhecimento internacional
Quando Milton Santos voltou ao Brasil, em 1978, depois de inúmeras viagens, chegou, como ele mesmo descreve em Território e Sociedade, com “uma enorme vontade de reaprender o Brasil”, o que o levou a uma postura crítica aguda com relação às análises do país feitas pelas “autoridades”, como ele diz. Fossem elas professores, jornalistas ou políticos. “Eu aprendi a duvidar profundamente dos textos não apenas pelo seu conteúdo político, mas pela própria qualidade intelectual dessa produção”, diz na entrevista transformada em livro. São dessa fase alguns dos seus trabalhos considerados mais importantes, como Por Uma Geografia Nova (Hucitec, 1978) e Economia Espacial: Críticas e Alternativas (Hucitec, 1979). “Um levantamento das principais noções, categorias e conceitos criados ou revisados pelo autor [Milton Santos] pode nos dar uma ideia da riqueza do referencial teórico produzido por Milton Santos e sua inquietação intelectual (...)”, escreve o geógrafo e professor da Universidade Federal da Bahia Pedro de Almeida Vasconcelos no texto A Geografia Nova de Milton Santos, também presente em Milton Santos e o Brasil.

Para o geógrafo Aziz Ab’Sáber, o colega reuniu todo o “conhecimento do mundo do seu tempo para pensar as necessidades do Brasil como intelectual comprometido com a sociedade e com os excluídos”, conforme disse em depoimento ao jornal Folha de S.Paulo na ocasião da morte de Santos, em 2001. O professor Pedro de Almeida Vasconcelos conclui chamando a atenção para o “grau de reconhecimento nacional e internacional” do geógrafo. Reconhecimento esse comprovado ao ganhar o prêmio Vautrin Lud, considerado uma espécie de Nobel da geografia, pelos 14 títulos honoris causa que lhe foram concedidos e pela “participação em comitês de redação de revistas em vários países, assim como convites para realizar conferências e pesquisas em mais de 20 países, além da participação como consultor em órgãos internacionais”, diz. Milton Santos deixou saudades e uma vasta produção acadêmica, dezenas de livros e centenas de artigos.


Do livro aos palcos
[Espetáculo utiliza o pensamento de Milton Santos sobre sociedade e globalização
 

Como parte do projeto Circo Mínimo 20 Anos: As Narrativas de Imagens, realizado pelo Sesc Pompeia para comemorar as duas décadas do grupo criado pelo ator Rodrigo Matheus, o espetáculo NuConcreto, apresentado em abril e maio, foi beber da fonte do geógrafo Milton Santos para falar de sociedade e globalização. Conceitos como território, lugar, verticalidade e horizontalidade, território usado e espaço de fluxos serviram de ponto de partida para a criação de cenas, imagens e situações relacionadas a temas como a metrópole contemporânea e o homem que nela habita. O livro de Santos que serviu de inspiração para o grupo foi Por uma Outra Globalização – do Pensamento Único à Consciência Universal, cujos conceitos foram associados a propostas cenográficas para criar os canais de diálogo entre a obra e a peça. Dessa forma, canos de ferro fizeram referências à cidade, com seus compartimentos e verticalidades, e à sensação de abafamento e aperto dos centros urbanos.