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O encontro das ruas Triunfo e Vitória, no Centro de São Paulo – próximo à famosa esquina da “Ipiranga com a São João” –, foi durante muitos anos reduto da produção cinematográfica da cidade. Primeiro vieram as distribuidoras de filmes, atraídas pela proximidade com as linhas férreas; depois, chegaram as produtoras, até que, já no final da década de 1960, na “Triunfo com a Vitória”, teve início a ebulição do movimento que entrou para a história do audiovisual brasileiro como Cinema da Boca. O nome faz referência à região da cidade conhecida, na época, como Boca do Lixo, dado o grande número de prostitutas que começaram a circular por ali, no início da década de 1950, após decreto do governador Lucas Nogueira Garcez, que pôs fim à zona de meretrício instalada no Bom Retiro. O movimento mudou as feições das imediações, antes pontuadas por residências de classe média, hotéis e pensões familiares.
A indústria cinematográfica veio pouco depois e acabou herdando o nome e o estigma. No final da década de 1950 e meados dos anos de 1960, a maior parte das distribuidoras de filmes – tanto estrangeiros quanto nacionais – tinha escritório pela região, o que facilitava o escoamento da produção devido à proximidade com as estações ferroviária e rodoviária. Lá estavam as norte-americanas Paramount, Columbia, Warner e Paris Filmes, entre outras. Sem contar a brasileira Cinedistri, do paulistano Oswaldo Massaini, grande responsável por transformar o ponto, que concentrava apenas a distribuição, em pólo de produção cinematográfica.
Por conta e risco
Mas o que foi, afinal, o Cinema da Boca? O crítico de cinema Alfredo Sternheim, um dos diretores que atuaram na Boca e autor do livro Cinema da Boca (Imesp, 2005), explica que muita gente confunde o que foi produzido ali com um gênero ou uma tendência – como é o caso do Cinema Novo brasileiro ou da Nouvelle Vague francesa –, restringindo tudo à chamada pornochanchada, versão “picante” das antigas comédias (chanchadas) produzidas pelos estúdios Atlântida e Vera Cruz. “Mas não é isso”, afirma o crítico. “A Boca tem a ver com a região onde as produções aconteciam. E a Boca não é só essa coisa de pornochanchada. De lá saíram produções variadas, como O Pagador de Promessas [1962], por exemplo, único filme brasileiro a ganhar a palma de ouro do Festival de Cannes”, esclarece.
Não é possível traçar um perfil para definir a produção da Boca – que reuniu desde cineastas como Ozualdo Candeias e Carlos Reichenbach até José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Mas, segundo alguns especialistas, há características que podem ser notadas na maior parte das produções. Uma delas – e talvez o maior mérito da Boca – é a autossustentabilidade, uma vez que, em São Paulo, não havia um órgão governamental que apoiasse os cineastas. A Boca buscava seu sustento sozinha. Os filmes precisavam ter público, dar retorno. Segundo Máximo Barro, professor de cinema na pós-graduação da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), era a boa bilheteria de um título que garantia a produção de outro. “E para isso era preciso descobrir o que levava as pessoas às salas de cinema. O resultado foi uma grande dinamicidade na produção, que vivia em constante processo de ajustamento.”
Foi nessa busca por fórmulas de atrair o público que a Boca esbarrou no erotismo. “O público, principalmente o masculino, ia para ver as musas da época”, afirma Alfredo Sternheim. Máximo Barro lembra que, às vezes, a “promessa” feita por um título mais ousado nem chegava a ser cumprida. Mas isso não incomodava a plateia, que acompanhava com afinco as aparições de determinadas atrizes. “A conquista do nu foi de centímetro em centímetro”, diz Barro. “Primeiro apareciam só as costas, depois, um dos seios. Para dar o giro de 180 graus demorou uns dez anos.”
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Contas da Boca
Se a preocupação dos produtores e diretores era agradar o público, pode-se dizer que tiveram êxito. A Enciclopédia do Cinema Brasileiro (Senac, 2000) apresenta o cálculo de que, na década de 1970, o país registrava uma média de 90 produções nacionais por ano. Destas, cerca de 60 eram da Boca. Espalhavam-se pelas salas de cinema os cartazes com títulos maliciosos, típicos do que era feito na região. Nomes como As Prostitutas do Dr. Alberto (1981), de Alfredo Sternheim, Os Garotos Virgens de Ipanema (1973), de Oswaldo de Oliveira, ou O Pornógrafo (1970), de João Callegari.
A lei existente desde 1939, e que obrigava a exibição de filmes nacionais, ajudou a abrir espaço. Mas não foi só isso. Como avalia o professor Barro, os exibidores queriam os filmes porque eles davam bilheteria. Tanto que muitos começaram a comprar cotas de 20% a 30% ainda na fase de produção, o que aproximou donos de cinema e produtores.
Destacou-se nesse cenário a Servicine, uma sociedade entre os produtores Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante, que durou de 1968 a 1976 e comandou a maior parte do que foi feito na Boca nesse?período. A fórmula encontrada pelos sócios era a de produções baratas, o que acabou virando a tônica dos filmes da Rua Triunfo. Sternheim, no livro Cinema da Boca, faz as contas: “Um dos filmes foi rodado com 18 latas grandes (300 m) de negativo, em apenas três semanas. A edição final precisava ter, no mínimo, oito latas. Ou seja, na média, uma cena só podia ser repetida duas vezes e meia”.
Família do Bixiga
Além de barato e popular, o Cinema da Boca inverteu uma tendência que predominava no país até então. Se antes eram os atores homens que atraíam o público – comediantes como Oscarito e Grande Otelo –, os filmes da Boca, sobretudo os produzidos a partir da década de 1970, elegeram as mulheres como chamarizes. Vera Fisher, Helena Ramos, Aldine Müller, Matilde Mastrangi e Zaira Bueno foram algumas das estrelas responsáveis por levar público às salas de exibição. A maior parte delas começou a atuar na própria Boca. É o caso de Helena Ramos, “queridinha” de espectadores e de diretores, e que foi descoberta trabalhando como tele-moça no programa do Sílvio Santos. “Para mim foi tudo uma novidade”, conta Helena. “Eu não tinha a intenção de ser atriz, nunca tinha passado pela minha cabeça. Quando descobri que era vista como sex simbol, por causa dos filmes, comecei a perguntar: o que eu fiz?” Mas quem pensa que o destaque dado às mulheres e a inclusão de cenas mais “quentes” nos enredos representavam uma revolução em relação à moral e aos bons costumes, engana-se. No discurso, ainda predominava o bom-mocismo, o moralismo e o machismo. “Podia ter bandido, podia ter prostituta, mas tudo sempre acabava bem”, conta Máximo Barro. “Se tivesse um bandido, por exemplo, na última tomada ele morria ou se regenerava. A Boca era muito moralista. Parecia uma família do Bixiga.”
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Corta!
Foi o sucesso de um filme estrangeiro, em 1982, um dos maiores responsáveis pela reorientação das produções da Boca. Nesse ano, estreou no Brasil O Império dos Sentidos, película japonesa que abriu espaço no país para as, até então, censuradas cenas de sexo explícito. Diante do sucesso da obra estrangeira e do arrefecimento da censura, produtores da Boca passaram a investir em produções que, digamos, iam mais às vias de fato – de olho no filão de público que se atrairia por esse tipo de filme. A Enciclopédia do Cinema Brasileiro contabiliza que, já em 1984, as fitas de sexo explícito representavam mais da metade dos títulos nacionais exibidos em São Paulo.
Eram 69 produções, de um total de 105. Por outro lado, essa nova realidade afastou muitos dos diretores e dos atores e atrizes responsáveis pelo sucesso da Boca até aquele momento. Outros grupos foram ocupando o espaço da Rua Triunfo, e o cinema ali produzido passou a ter cada vez mais cenas de sexo e menos enredo.
Junto a isso, havia o fato de a televisão, naquela época, já concorrer fortemente com o cinema voltado à classe C. Mesmo assim, a Boca ainda resistiu até o começo da década de 1990, tendo o chamado pornô como carro-chefe. No entanto, com a crise econômica e o fim da Embrafilme, dois dos fatos mais importantes a marcar o início daquela década, a Boca não resistiu e riu – junto ao que ainda restara do cinema nacional da época. Tinha início um hiato no audiovisual brasileiro, que só voltou a dar sinais de vida quase dez anos depois.
Atores que acabaram se consagrando nas telenovelas brasileiras, como Nuno Leal Maia, Vera Fisher e Sônia Braga, surgiram na Boca – ou ao menos passaram por ela. Mas nem só de futuros globais se faziam os elencos dos filmes rodados pela turma da Rua do Triunfo. Representantes de outros mundos, como o da música, sempre participavam das tramas:
Waldick Soriano – Muito antes do documentário dirigido por Patrícia Pillar, Waldick, Sempre no Meu Coração, de 2007, o cantor baiano já havia tido seus flertes com a telona. O ícone da música brega participou de Paixão de Um Homem, de 1972, dirigido por Egídio Eccio.
Sérgio Reis – Todos devem se lembrar do cantor sertanejo em atuações televisivas na década de 1990, como nas novelas Pantanal (1990), A História de Ana Raio e Zé Trovão (1990/1991) e O Rei do Gado (1996/1997). Mas, nos idos da década de 1970, Sérgio Reis se revezou entre o microfone e as câmeras em duas produções do diretor Jeremias Moreira Filho, o clássico O Menino da Porteira (1977) e Mágoa de Boiadeiro (1978).
Agnaldo Rayol – O cantor é figurinha carimbada no cinema nacional, tendo estrelado Agnaldo, Perigo à Vista (1969), de Reynaldo Paes de Barros, no qual vive um sedutor que, de um lado, foge do casamento e, de outro, de uma quadrilha que quer extorqui-lo. Também participou de A Moreninha (1970), de Glauco Mirko Laurell, e Possuída pelo Pecado (1976), de Jean Garret. Antes da Boca, já havia atuado em filmes de Mazzaropi.
Rita Cadillac – A dançarina e ex-chacrete fez parte de uma das maiores bilheterias do cinema paulista, o filme Aluga-se Moças [a grafia é mesmo assim, com erro de concordância], de 1982, feito por Deni Cavalcanti. Atuou também em Tessa, a Gata, de John Herbert, e O Vale dos Amantes, dirigido por Tony Rabatoni, ambos de 1982.

Mostra de filmes no Sesc Consolação recupera nomes e títulos do Cinema da Boca

Apesar de ser a experiência de produção cinematográfica brasileira de mais fôlego, tendo durado quase 20 anos, e de maior independência, já que durante esse período atuou por conta própria, o Cinema da Boca ainda é pouco estudado e muitas vezes é associado apenas às pornochanchadas. Para fazer jus à importância desse que foi um dos principais espaços de produção de cinema do país, o Sesc Consolação organizou, no mês de maio, a mostra Os Bons da Boca. Foram exibidos oito títulos, acompanhados por debates com gente que fez a Boca, como a atriz Helena Ramos, o ator e produtor David Cardoso, e os diretores Alfredo Sternheim, Sebastião Souza e Carlos Reichenbach. Na abertura da mostra, no dia 4, foi exibido o documentário Os Bons da Boca, produzido especialmente para o evento, com depoimento de quem viveu o período e a movimentação intensa dos “anos de ouro” da produção cinematográfica paulistana.