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A farsa volta sempre piorada

Não podemos permitir que movimentos neonazistas ameacem nossa liberdade

MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS


Ilustração: MAVERPITA

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) escreveu: "O importante é a lembrança dos erros, que nos impede de voltar a cometê-los. O verdadeiro tesouro do homem é o de seus erros, uma larga experiência decantada por milênios".

O século 20 abrigou uma série de erros monumentais, entre os quais o mais gritante foi a aceitação silenciosa da ascensão do nazismo por parte das nações. Hoje, quase ao final da primeira década do século 21, chega a ser inacreditável que ideias dessa natureza continuem permeando a mente de milhares de pessoas em todos os continentes, inclusive no Brasil. Um recente estudo antropológico constatou que há 13 mil páginas na internet propagando o neonazismo, em 40 sites principais escritos em inglês, espanhol e português, quatro deles de origem brasileira. O mesmo estudo informa que há atualmente cerca de 170 mil simpatizantes do neonazismo no Brasil, com quase um terço deles localizados em Santa Catarina, estado em grande parte colonizado por alemães. Além disso, a Polícia Federal vem efetuando investigações e prisões, em Curitiba e Porto Alegre, de grupos que pregam o ódio contra homossexuais, nordestinos, negros e judeus, em suposta defesa da raça ariana, que Adolf Hitler apontava como superior às demais.

Essas investigações já concluíram que tais grupos estão empenhados na formação de um partido político que lançará candidatos a prefeito nas eleições de 2012. É um movimento que vem ganhando força ainda maior através de blogs, que divulgam e propagam conceitos racistas e tentam minimizar ou negar a existência do Holocausto, ou seja, o extermínio de 6 milhões de judeus durante a 2ª Guerra Mundial. De forma mais específica, os blogs disseminam que os judeus são responsáveis por atos de pedofilia, defesa do aborto, capitalismo selvagem e pelo que ainda resta do credo comunista.

Há mais de dez anos, o Instituto Latino-Americano da Organização das Nações Unidas (ONU) registrou a existência de mais de 30 grupos que professam ideias nazistas no Brasil, com conexões no Chile, Inglaterra e Argentina. De acordo com o mesmo relatório, em um desses grupos "dez envolvidos teriam recebido instrução para fabricar explosivos e outros 30 teriam passado por treinamento armado".

Tais números podem parecer pouco importantes, como ocorreu na Alemanha do início do século passado, quando Hitler, que estava preso, escreveu o livro Minha Luta, obra que dava conta da ideologia do partido nazista alemão. Naquele momento, não se deu a importância necessária ao que estava acontecendo. Contudo, em 1933, menos de uma década após a publicação do texto, Hitler tornou-se chanceler e, no ano seguinte, acumulou o cargo de presidente do país. E em 1939 invadiu a Polônia, dando início à 2ª Guerra Mundial.

As consequências são conhecidas. O mundo foi violentado e os judeus, impotentes, eram marcados como animais com uma estrela amarela à guisa de distintivo e levados pela Gestapo para os campos de extermínio. O estudioso judeu Arthur A. Cohen revelou a esse respeito que não foi capaz de falar sobre Auschwitz por muitos anos porque "...não encontrava a linguagem que tolerasse a imensidade da ferida".

Berlim guarda o testemunho de atos praticados pelos nazistas, paradoxalmente junto aos restos do muro que dividiu as duas Alemanhas, marco da cisão ideológica entre o socialismo e o capitalismo. O registro existente, porém, é o de consciências angustiadas pelas atrocidades do Holocausto, hoje negado pelos que professam a ideologia do nacional-socialismo, que se expande pelo mundo, inclusive no Brasil, como uma ameaça.

"Um fantasma ronda a Europa." Essa frase foi dita em 1848, em um manifesto feito por dois jovens que revolucionaram o mundo, mas por motivos diferentes do que acontece hoje. Naquela ocasião, era uma reação ao capitalismo industrial que agia de modo selvagem. Um deles, Karl Marx (o outro era Friedrich Engels), mais tarde afirmou, ao criticar o sobrinho de Napoleão, que procurava imitar o tio, que a história não se repete, a não ser como farsa. É esse nosso temor, pois a farsa volta sempre piorada. Quais serão as consequências da reencarnação do nazismo?

Na eleição realizada em junho de 2009 para o Parlamento da União Europeia, com vitória esmagadora dos conservadores, o resultado poderia ser interpretado singelamente como o retrato do equilíbrio dos movimentos políticos da última década, com o eleitor se inclinando ora para a direita, ora para a esquerda.

É necessário lembrar, entretanto, que o momento atual, marcado pelo colapso de Wall Street em 2008, guarda similitude com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, considerada uma circunstância que acelerou o desenvolvimento do nazismo e do racismo.

A crise gera desemprego e, em consequência, perseguem-se os imigrantes e as minorias, alimentando a xenofobia. Assim, corre-se o risco de passar do imaginado equilíbrio dos movimentos políticos para o extremismo, outro "ismo" do ideário nacional-socialista, pois a escolha de 33 deputados neonazistas para integrar o Parlamento Europeu no referido pleito não pode ser considerada somente um desejo de ver prosperar um ideal conservador, com propostas econômicas e sociais alternativas, mas a eleição de exterminadores.

Após o sucesso conservador nas eleições europeias, como que para ilustrar esse cenário, no dia 10 de junho de 2009 um cidadão americano, divulgador de mensagens na internet contra negros e judeus, atirou num guarda negro e o matou em frente ao Museu do Holocausto, em Washington. O jornal "The Washington Post" assim intitulou a reportagem: "Um lembrete da importância da missão do próprio museu".

As ações dos nazistas são violentas em termos individuais ou coletivos. Isso está na essência de sua ideologia. Por onde andou, deixou sua marca, como na República Tcheca, onde há o registro em bronze de um judeu esfregando o chão por onde passariam os nazistas, enquanto esperava a morte. As estátuas e os museus que denunciam o Holocausto surgiram para contar os fatos. Entre 1941 e 1943, nos subúrbios de Kiev, capital da então República Socialista Soviética da Ucrânia, as tropas nazistas eliminaram 200 mil pessoas, em sua maioria absoluta judeus. Os prisioneiros eram levados para o campo conhecido como Babi Yar ("Barranco das Velhas"). Esse massacre só foi tornado público 23 anos mais tarde, nos versos do poeta Anatoly Kuznetsov, pois Stálin considerou conveniente silenciar sobre tais crimes, omissão da qual também é acusado o papa Pio XII, que decerto sabia do extermínio dos judeus europeus.

Não podemos cometer os mesmos erros. Não podemos ser omissos. Não podemos silenciar. Já é hora de buscar a lucidez e repetir um princípio gravado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1789: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em todos os direitos". Cento e cinquenta e nove anos mais tarde, lembra o filósofo italiano Norberto Bobbio em A Era dos Direitos, o princípio se repete literalmente no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
Cabe-nos preservar esse princípio, lembrar os erros cometidos e não permitir que se repitam.

Manuel Henrique Farias Ramos é cientista social

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