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Quando o objetivo do negócio é social

Cresce o número de organizações sem fins lucrativos que buscam ser sustentáveis

JULIANA BORGES


Trabalho promovido pela Aliança Empreendedora
em Curitiba / Foto: Divulgação

No ano passado, as paulistanas Cecília Zanotti e Mônica Barroso Keel, criadoras do Projeto Bagagem, uma associação sem fins lucrativos que busca fortalecer o turismo comunitário no Brasil, enfrentaram um dilema típico de empreendimentos que começam a se expandir – como crescer sem perder o foco do negócio.

O Projeto Bagagem vende pacotes para pessoas das grandes cidades que querem conhecer modos de vida tradicionais. Sua principal estratégia é apoiar a criação de roteiros que beneficiem prioritariamente as comunidades visitadas por meio da geração de renda e participação direta da população local. Para garantir a sustentabilidade da iniciativa, imprimir mais regularidade às viagens e incluir outras comunidades, as duas precisavam fortalecer a área comercial e aumentar as vendas de pacotes, que, até então, eram feitas no boca a boca. Ao fazer isso, porém, Cecília e Mônica tinham receio de que o objetivo inicial do Projeto Bagagem se desvirtuasse e ele se tornasse uma agência de viagens comum.

Por outro lado, se elas conseguissem dar escala ao empreendimento, o Projeto Bagagem poderia caminhar sem depender de financiamento externo, e possivelmente mais comunidades seriam beneficiadas. Por isso, Mônica e Cecília, amigas de faculdade e formadas em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), decidiram que era hora de profissionalizar a organização. "Percebemos que havia preconceito em absorver determinadas práticas do mundo dos negócios, e isso estava nos prejudicando", conta Cecília.

O Projeto Bagagem é um típico exemplo de organização cada vez mais comum no Brasil e no mundo – o negócio social. Trata-se de um empreendimento cuja principal finalidade não é o lucro, mas que tem capacidade de ser financeiramente autossustentável. "Eles foram nascendo a partir da necessidade das organizações sem fins lucrativos de buscar maior autonomia e sustentabilidade financeira em suas ações de promoção social", diz Monica de Roure, diretora da Ashoka Brasil, uma organização não governamental criada na Índia que atua em 60 países e visa promover o empreendedorismo social. "Ao romper com os paradigmas tradicionais da obtenção de recursos, diversas organizações da sociedade civil estão demonstrando que é possível gerar receita e impacto social com coerência e eficácia", completa.

O mais célebre negócio social é o do economista bengalês Muhammad Yunus. Ele se tornou mundialmente famoso em 2006 ao ganhar o prêmio Nobel da Paz por sua atuação na redução da pobreza na Índia por meio do microcrédito. Seu banco, o Grameen Bank, cresceu emprestando dinheiro a pessoas que sempre foram desprezadas pelas instituições tradicionais – a camada de baixíssima renda, sobretudo mulheres do meio rural. Hoje, o Grameen Bank tem 2.185 agências, já liberou o equivalente a quase US$ 6 bilhões em créditos a 6,61 milhões de mutuários e possui um quadro de quase 20 mil funcionários remunerados. Mesmo com características de uma grande empresa, o negócio nunca se desvirtuou de seu objetivo inicial.

Plano estratégico

Quando perceberam que era hora de mudar, Mônica e Cecília ingressaram num treinamento desenvolvido pela Ashoka em parceria com a consultoria McKinsey, cujo objetivo principal era ajudar empreendedores sociais e ambientais a elaborar um planejamento estratégico para suas organizações. "Hoje, sabemos com muita clareza aonde queremos chegar", diz Cecília. "O plano é ter 50 destinos no Brasil em cinco anos e aumentar o faturamento anual, que atualmente é de R$ 100 mil, para R$ 1,2 milhão." Além de estabelecer metas, a dupla decidiu reavaliar as responsabilidades de cada integrante do Projeto Bagagem e rever alguns processos. Elas também estão negociando com agências turísticas a comercialização dos roteiros e estudando formas de se aliar a outras entidades e empresas, como as que organizam viagens para escolas. "É um nicho novo, que nos interessa muito", diz Cecília.

As mudanças em curso devem começar a dar resultados no médio prazo. As primeiras transformações, entretanto, já podem ser sentidas. Em julho, o Projeto Bagagem promoveu três viagens, uma para a Chapada Diamantina, outra para a Amazônia e a terceira para Paraty. Até então, a dupla só tinha capacidade operacional para organizar duas viagens por ano. "Ainda assim, muitas vezes não atingíamos o mínimo de pessoas e precisávamos cancelar na última hora", conta Cecília.

Os desafios que o Projeto Bagagem e outros tantos negócios sociais têm pela frente são muitos. No Brasil, o ambiente para um empreendedor – seja ele social ou não – não é dos mais fáceis. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), metade dos pequenos estabelecimentos abertos no país fecham antes de completar dois anos. "Além das razões macroeconômicas, como falta de acesso a crédito e excesso de tributação, os empreendedores geralmente têm grande dificuldade para pensar em seu negócio de forma estratégica a longo prazo", diz Lucas Melman, gerente do Instituto Empreender Endeavor, organização que tem como missão gerar emprego e renda através do fomento à cultura empreendedora. "Uma organização sem fins lucrativos tem estrutura muito parecida com a de uma pequena ou média empresa, com exceção do fato de o lucro ser reinvestido no próprio negócio. Não há razão para essas entidades não usarem as boas práticas dos negócios tradicionais. Esse preconceito muitas vezes acaba prejudicando o desempenho da organização e, consequentemente, os benefícios que ela pode trazer à sociedade."

Museu da Pessoa

A empreendedora social carioca Karen Worcman percebeu a importância de gerar o próprio caixa de seu empreendimento já no início da década de 1990, quando fundou o Museu da Pessoa, um projeto virtual destinado a registrar, preservar e transformar em informação histórias de vida de toda e qualquer pessoa da sociedade brasileira. Naquela época, o terceiro setor ainda engatinhava no país, e o financiamento para fins sociais ou ambientais era mais restrito. "Além disso, ninguém entendia a ideia do negócio. Quem iria colocar dinheiro num projeto que queria conservar a memória das pessoas? Tudo aquilo soava muito estranho naquele momento", diz Karen. "Então, pensei: em vez de ficar esperando patrocínio, vou procurar formas de conseguir transformar minha ideia num produto vendável e autossustentável. E esse foi o pulo do gato", avalia ela.

Desde o início, o Museu da Pessoa vinha produzindo vídeos e livros para grandes empresas e instituições, como Vale, Petrobras, Bradesco, Banco do Brasil e clubes importantes de futebol. Com o tempo, surgiu um conflito: se, por um lado, a iniciativa conseguia se pagar, por outro, estava se afastando de seu fim. "Chegou uma época em que tínhamos cem colaboradores e faturamento anual de R$ 6 milhões. Aí vi que estávamos diante de duas opções: continuar a crescer, correndo o risco de desvirtuar nosso objetivo inicial, ou voltar a ser um museu", conta Karen.

Em 2001, ela e sua equipe decidiram mudar a razão social do empreendimento para Instituto Museu da Pessoa, abrindo um braço educacional com modelo de financiamento externo. A partir de então, a instituição se tornou mista, vendendo produtos para outras empresas e também captando recursos de incentivo para desenvolver projetos próprios, e Karen passou a se dedicar mais àqueles financiados por terceiros. "Fizemos um caminho um pouco diferente de outros negócios sociais, que geralmente começam com incentivo e depois vão buscar formas de se sustentar financeiramente", afirma ela.

Se o Museu da Pessoa não tivesse buscado a sustentabilidade financeira desde o início, dificilmente teria chegado aonde está. A instituição possui um acervo de 10 mil entrevistas, 72 mil fotos e documentos digitalizados, 31 livros publicados e 42 exposições realizadas.

Vocações diferentes

Nem todos os projetos sociais, porém, têm vocação para se tornar negócios sociais, isto é, financeiramente independentes. De acordo com o livro The Power of Un-reasonable People ("O poder das pessoas que não usam apenas a razão", numa tradução livre para o português), escrito por John Elkington e Pamela Hartigan, dois dos maiores especialistas em desenvolvimento sustentável do mundo, os empreendimentos sociais podem ser divididos em três grandes grupos – os totalmente sem fins lucrativos, que atuam em mercados em que é praticamente impossível tornar-se autossustentável; os negócios híbridos, que contam com doações, mas são capazes de gerar alguma receita e, finalmente, aqueles que colhem resultados financeiros e têm, em muitos aspectos, funcionamento semelhante ao de empresas tradicionais.

Por mais de 20 anos, os dois autores vêm estudando exemplos bem-sucedidos de empreendedores sociais e ambientais ao redor do mundo. Um dos casos que eles descrevem no livro é o do agrônomo gaúcho Fábio Rosa, criador do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas e da Autossustentabilidade, o Ideaas.

Há mais de duas décadas, Rosa dedica-se a levar energia elétrica de baixo custo a comunidades rurais e pessoas pouco favorecidas. Seu trabalho começou em 1983, quando foi convidado a ser secretário de Agricultura do pequeno e recém-criado município de Palmares do Sul (RS). Ele desenvolveu um método de eletrificação de zonas rurais que custava US$ 400 por domicílio, 95% menos do que os US$ 8 mil cobrados pelas grandes distribuidoras que atuam nos estados com monopólio. Andando pela cidade numa ambulância velha com as portas amarradas com uma corda, o agrônomo encontrou novas tecnologias, usou materiais mais baratos que não prejudicavam o desempenho, aumentou a distância entre os postes, envolveu moradores no trabalho em esquema de mutirão, lutou para aprovar as especificações técnicas na Eletrobrás e arrumou financiamento do BNDES. Com o sucesso da empreitada, foi convidado a fazer o mesmo em todo o estado do Rio Grande do Sul. Hoje, o programa do governo federal Luz para Todos utiliza a metodologia que Rosa criou.

Com o tempo, o agrônomo percebeu que mesmo o modelo de baixo custo que ele havia criado não era capaz de atender a todas as pessoas. "Casas muito isoladas ainda tinham um custo de implantação elevado", explica. Por isso, Rosa passou a estudar formas descentralizadas de geração eólica e solar. Foi quando nasceu o Ideaas, em 1997, com o objetivo de levar energia limpa e barata a pessoas de comunidades rurais ou isoladas.

Rosa começou seu negócio social como outras empresas que já atuavam no ramo: vendendo os painéis solares às famílias. Com o tempo, percebeu que precisava buscar outro caminho. Um painel solar custa R$ 1,5 mil, dura em média 25 anos, tem manutenção quase zero e, uma vez instalado, o usuário não precisa pagar mais pela energia. O que impede uma família de baixa renda de ter acesso a essa tecnologia é o preço do equipamento. "Não faz sentido pedir pagamento à vista por um produto que vai levar 25 anos para ser consumido. Percebi que o segredo seria diluir o custo", conta.

O Ideaas, em vez de vender os painéis, passou a alugá-los, com o pagamento de uma mensalidade de cerca de R$ 30, sem nenhum custo inicial. "Esse é um valor que famílias sem acesso a energia elétrica já gastam consumindo óleo diesel, candeeiros ou geradores", explica Rosa. "Então, elas continuam tendo a mesma despesa, só que agora com energia elétrica em casa."

Além disso, com o sistema de aluguel de painéis, Rosa também conseguiu desenvolver um modelo em que um membro da comunidade local é treinado para dar assistência técnica aos novos consumidores de energia. Esse parceiro torna-se um prestador de serviço do Ideaas e gerencia seu novo negócio de forma independente. Nesses 12 anos de atuação, Rosa já fez mais de 3 mil instalações, emprega direta ou indiretamente cerca de cem pessoas e hoje realiza treinamentos sobre energia limpa descentralizada para as grandes distribuidoras do país. Agora, está levando esse modelo de energia solar limpa de baixo custo para o campo de refugiados de Kakuma, no Quênia, em parceria com a empresa portuguesa EDP.

Longo prazo

Os negócios com impacto social exigem investimentos consideráveis de recursos financeiros, humanos e materiais e, geralmente, levam algum tempo para trazer resultados e se tornar autossustentáveis. É o que está acontecendo com a Aliança Empreendedora, entidade curitibana criada em 2005 que promove ações e projetos de fomento, integração e apoio ao empreendedorismo em comunidades de baixa renda.

A Aliança Empreendedora é dividida em três grandes projetos. A Solidarium, dedicada a articular parcerias e acordos comerciais entre grandes redes varejistas e os empreendedores que ela apoia, é o único que já tem autonomia financeira. "O acesso aos canais de comercialização é uma das grandes barreiras para o sucesso de micro e pequenos produtores", diz Rodrigo Brito, fundador da Aliança Empreendedora. Desde 2006, a Solidarium tem uma parceria com o Wal-Mart. Hoje, 58 supermercados da rede possuem uma gôndola com produtos dos empreendedores ligados à entidade. Em agosto, acordo semelhante teve início com 111 unidades das lojas Renner. "A receita arrecadada com as vendas banca todas as despesas da Solidarium, e o que sobra é reinvestido na iniciativa", diz Rodrigo.

O segundo negócio da Aliança Empreendedora, a Impulso, que gerencia um fundo de microcrédito, está prestes a seguir caminho semelhante. A previsão é que ela leve mais dois anos de maturação para alcançar uma escala que lhe possibilite arcar com os próprios custos. Os resultados práticos, entretanto, já são visíveis. O fundo teve início em 2006, com R$ 20 mil. Hoje, dispõe de R$ 100 mil. Com empréstimo médio de R$ 900, registra taxa de inadimplência de 0,7% e de renegociação inferior a 20%. O aumento médio das receitas mensais dos microempreendimentos comunitários apoiados é de 56,7% por ano.

A Saga, o terceiro braço da Aliança Empreendedora, ainda é totalmente dependente de financiamento. Ela se dedica ao treinamento e acompanhamento dos empreendedores. "Muita gente chega até nós sem saber produzir nada", diz Rodrigo. "Por isso, essa é uma etapa fundamental do processo. A ideia é que com o tempo os outros dois projetos consigam também pagar os custos da Saga."

Rede de parceiros

Para fazer um negócio social perdurar, não basta dar-lhe sustentabilidade financeira. "Existe uma série de outras questões envolvidas", diz Carina Pimenta, coordenadora de parcerias estratégicas da consultoria McKinsey. "É preciso desenvolver uma rede de parceiros e fornecedores com valores compatíveis ao do negócio social e também romper com modelos injustos vigentes. Só que isso nem sempre é fácil", completa.

Outro desafio é vencer o preconceito que existe em torno dos negócios sociais. "Muita gente ainda relaciona produtos sociais a caridade", diz Leila Novak, criadora do Instituto Papel Solidário, uma entidade que ajuda jovens empreendedores a abrir um negócio social. Segundo ela, existe um mito de que as entidades sem fins lucrativos roubam os mercados das empresas tradicionais, já que elas não visam lucro e pagam menos impostos do que uma instituição comercial tradicional. "Na verdade, o que ocorre é exatamente o oposto", explica Leila. "Quando o governo criou o Simples Nacional, no final de 2006, as organizações sociais não foram contempladas. Enquanto as pequenas empresas tradicionais tiveram uma redução de imposto, os negócios sociais continuaram pagando a tributação antiga, ficando em desvantagem."

Hoje, ainda não existe uma legislação específica no Brasil para esse segmento. "Orientamos os empreendedores a abrir uma empresa limitada e a incluir cláusulas especiais no contrato social, que garantam maior transparência, a criação de um conselho fiscal e a adoção de uma política de reinvestimento do lucro no próprio negócio", afirma Leila.

 

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