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Contra as bruxas, a irreverência do Saci

Cresce no Brasil a resistência do garoto sapeca contra o Halloween

FRANCISCO LUIZ NOEL


Ilustração: CBH

"Raloim? Só se for com carne-seca!" Garfo e faca nas mãos, guardanapo no pescoço e cachimbo na mesa, o Saci-Pererê solta essa irreverência e se prepara para traçar uma abóbora com furos ao feitio de olhos, nariz e boca, figurado numa camiseta da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci). A frase e o desenho, criado pelo cartunista José Luiz Ohi, resumem a contenda que o moleque mais popular do Brasil trava com as bruxas do Halloween, que desembarcaram no país nos anos 1960. Quando chega outubro, adeptos da lenda brasileira disputam o dia 31 com os da festa importada. Para uns, é Dia do Saci; para outros, Dia das Bruxas, como nos Estados Unidos.

Um dos mais vigorosos mitos do Brasil rural, onde surgiu há mais de dois séculos, o Saci vem arrebatando a data cada vez em mais municípios – incluída a capital paulista, desde 2004 – e comemora seu dia estadual em São Paulo pela sexta vez. Os primeiros a festejar a data, em 2003, foram os moradores de São Luiz do Paraitinga, no vale do Paraíba, onde foi criada a Sosaci. Uma das vitórias da associação, em seis anos de divulgação da lenda, é a difusão do dia pelo país. O menino negro de uma perna só tem data municipal em cidades paulistas como São José do Rio Preto e Angatuba. O 31 de outubro também é consagrado a ele em Vitória, Fortaleza e na mineira Uberaba.

De norte a sul, projetos semelhantes pipocam em câmaras de vereadores de várias cidades, como Curitiba, Juiz de Fora (MG) e Sorocaba (SP). "Outra conquista é a crescente e espontânea comemoração do Dia do Saci por grupos de São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Ceará e Minas Gerais, independentes da Sosaci", orgulha-se o tesoureiro e ex-presidente da entidade, Mário Candido da Silva Filho. A associação congrega mais de 900 sócios em São Paulo, demais estados e no exterior. Entre eles, argentinos, peruanos e americanos que empunham a bandeira da cultura popular ante os modismos de importação.

Em outra frente de ação, a Sosaci lançou uma cruzada para fazer do Saci o mascote da Copa do Mundo de 2014, programada para o Brasil. A associação pediu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2006, a elevação da lenda à condição de patrimônio imaterial do Brasil, a exemplo de criações populares como o jongo, o samba-de-roda e o queijo de Minas. O instituto vê dificuldades, porém, para demarcar o mundo do Saci, que divide com outros seres fantásticos o universo de mitos não só da cultura caipira, mas também de tradições de regiões da mata atlântica, do cerrado e da Amazônia. O Iphan e a Sosaci estudam enquadrar o perneta nos guarda-chuvas conceituais de "mitologia tupi" ou "o Saci e seus amigos".

Os partidários do Saci e outros seres da mitologia brasileira rechaçam a pecha de xenófobos, num país em que o sincretismo é a marca de lendas em torno de figuras como o lobisomem, o boitatá, o curupira, a mãe-d’água e a mula-sem-cabeça. "O problema é que uma parcela de nossa sociedade prefere abrir as portas a tudo o que é estrangeiro, principalmente dos Estados Unidos, com a ideia de que o que vem de lá é o melhor do mundo", lamenta Mário Candido. A escritora, pesquisadora e sacióloga Marcia Camargos completa: "O Halloween é cópia do enlatado americano, que nem naquele país sabem direito o que significa". José Luiz Ohi reforça o coro contra as bruxas de fora: "Puro comércio, no mais baixo sentido".

O Halloween nasceu há mais de 2 mil anos, no noroeste europeu. Por acreditar que os espíritos fugiam dos cemitérios no fim do verão para tomar os corpos dos vivos, os celtas espantavam os fujões com coisas horripilantes, como abóboras à imagem de caveiras iluminadas por velas. Na Idade Média, a Igreja condenou o rito pagão, celebrado na véspera do Dia de Todos os Santos, e passou a chamar a festa de Dia das Bruxas, perseguindo e queimando na fogueira os praticantes. Levado para os EUA pelos colonos irlandeses, no século 19, o Halloween chegou ao Brasil na carona do ensino de inglês, no fim da década de 1960, quando os cursos do idioma começaram a ganhar o país.

Anões encasacados

A peleja do Saci em busca de um lugar ao sol no Brasil urbano é, contudo, muito anterior à concorrência do Dia das Bruxas. A luta começou em 1917, insuflada por Monteiro Lobato. Inconformado com as estátuas de anões encasacados e outros entes do imaginário europeu que povoavam jardins de São Paulo e outras cidades, o escritor passou a pregar a troca dos alienígenas por personagens do folclore nacional. Lobato, que escrevia em "O Estado de S. Paulo", não poupava a adesão das elites a valores estrangeiros – francesismos à frente – e defendia que o Liceu de Artes e Ofícios da capital abrisse seus cursos à representação de mitos do mundo rural.

Num artigo intitulado "Mitologia Brasílica", publicado em janeiro daquele ano no "Estadinho", como era chamada a edição vespertina do jornal, o escritor conclamou os leitores a enviar histórias sobre a lenda e as estripulias do Saci, a quem chamava de "insigne perneta". A iniciativa tomou forma de campanha, dando corpo a um método pioneiro nos estudos brasileiros sobre folclore, e desatou uma avalanche de cartas à redação, procedentes de cidades interioranas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Animado pela receptividade ao tema, o diário lançou um concurso para que artistas plásticos criassem obras inspiradas na figura do Saci.

Os frutos da campanha foram reunidos por Lobato em seu primeiro livro, O Sacy-Perêrê – Resultado de um Inquérito, em 1918. Para pagar a impressão, o escritor abriu e fechou a obra com reclames protagonizados pelo personagem, ilustrados pelo caricaturista Lemmo Lemmi, conhecido como Voltolino. Num deles, máquinas de escrever de concorrentes da Remington são destruídas a porretadas pelo Saci, que, avisam os dizeres, "não admite outra máquina". Em outro anúncio, ele é garoto-propaganda de chocolates – "Mulata, minha mulata, / ouve o que diz o Sacy: / chocolate como o Lacta / nunca houve por aqui".

Que o Saci estava longe de ser tão bem-comportado estava patente nos relatos dos leitores. Morador dos redemoinhos, travesso e debochado, o moleque ganhou fama pelas diatribes sempre associadas às adversidades que viram de pernas para o ar o dia a dia da vida rural. Suas aprontações são inumeráveis, reza a lenda. Ele azeda o leite, gora ovos no choco, chupa o sangue e embaraça a crina dos cavalos, botando-os a correr durante a noite, abre as porteiras das fazendas, rouba espigas no milharal, salga em excesso a comida, some com brinquedos e derruba roupas do varal. E, a cada travessura consumada, dá risadas estridentes e diabólicas, sem nunca tirar o cachimbo da boca.

Não é por menos que um desafio na roça era capturar o Saci com peneira, atirada no olho do redemoinho. Mais prático, ensina Monteiro Lobato, é amarrar o atrevido com rezas e um nó bem dado num cabo de buçá (cabresto de cavalo), imobilizando simbolicamente o moleque. Mas depois, com pena, o caipira acaba soltando a presa, pois não vive sem suas brincadeiras. "Altos segredos da psicologia sertaneja", aponta no livro o escritor. "O caboclo começa a sentir falta d’alguma coisa; o mato parece-lhe triste, a noite muito vazia, os animais nostálgicos da correria noturna. E vai, então, e desdá o nó com um ralho amigo: ‘Vá s’imbora, peste’. E o Saci azula, ventando."

Um mito e muitas versões

Das incontáveis descrições do Saci, tornaram-se atributos natos a pele negra, a carapuça vermelha, o pito aceso, a perna única e a barriga saliente. Dependendo do lugar em que vive na imaginação popular, o menino sapeca ganha características sobrenaturais, como orelhas de morcego, uma das mãos furada, três dedos no pé e barbicha, além do hábito de assobiar quando aparece gente, dar sonoras gargalhadas após as diabruras e soltar fumaça pelos olhos. "O Saci se articula com o meio em que habita", assinala Marcia Camargos, que é doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e coautora da biografia de Lobato, Furacão na Botocúndia (Editora Senac, 1997).

O registro mais remoto dessa figura folclórica remonta a mais de 200 anos. Nascido entre os tupis-guaranis na região da fronteira entre Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, o Saci foi criado à imagem e semelhança de um curumim travesso, protetor das matas e dos bichos. "Ele perdeu a perna ao ser apropriado de forma antropofágica pelos negros, o que tem grande simbologia", afirma Marcia. "É o homem mutilado, em escravidão; mas ágil e veloz como os cativos, que jogavam capoeira contra o capitão do mato e fugiam para os quilombos. Em vez de inválido, o Saci é ligado à ventania, ao redemoinho, à velocidade. Representa resistência, rebelião, liberdade."

As explicações para a condição de perneta variam, contribuindo para a configuração de diversas narrativas da lenda. "Uma delas diz que o Saci perdeu a perna num jogo de capoeira", conta Mário Candido, economista aposentado que se tornou um dos mais requisitados saciólogos em atividade. Em outra versão popular, ele acrescenta, "o Saci seria um jovem escravo que, acorrentado aos grilhões, resolveu amputar uma perna, preferindo ser um perneta livre a um escravizado com as duas pernas". Nos dois casos, assinala Mário, é patente a influência da cultura negra no mito.

O nome do moleque vem das palavras çaa cy (olho mau) e perereg (saltitante), ensinava Lobato aos leitores. Acolhido pelos escravos e mesclado a mitos semelhantes originários da África, o Saci teve a cor de índio trocada pela de negro, recebeu feições africanas e passou a fumar pito de preto velho. "É um mito muito representativo do povo brasileiro, pois congrega traços de todos os elementos formadores da população", observa Marcia Camargos. O gorro vermelho, ela explica, foi contribuição da cultura europeia à figurinha folclórica.

A carapuça rubra e cônica guarda associação com um ícone da liberdade na Antiguidade greco-romana. Originária da Frígia, era exibida pelos ex-escravos romanos, em sinal de alforria. Em 1789, na Revolução Francesa, o barrete frígio estava na cabeça de militantes do sul na tomada da Bastilha. Como símbolo da República, foi introduzido na política brasileira pelo Partido Republicano, em São Paulo, e incorporado à bandeira do estado de Santa Catarina, na ponta mais alta de uma estrela. Há quem suspeite, como Mário Candido, que o gorro seja herança dos portugueses da região dos Saloios, que cobriam a cabeça com algo parecido, mas de cor preta.

Estante repleta

Em nome das raízes indígenas do Saci, o escritor Olívio Jekupê, morador de uma aldeia guarani em São Paulo, lançou-se ao resgate do mito no livro O Saci Verdadeiro, publicado pela Editora da Universidade Estadual de Londrina, em 2003. Na narrativa dos índios, o Saci pisa com os dois pés, desconhece gorro e tira seus poderes de um colar denominado baeta. Companheiro na caça de subsistência, responde por pelo menos três nomes – Iaci Pererê, em tupi, Kamba’i, em guarani, e Matintapereira, na Amazônia. O sincretismo surgiu, escreve Olívio, quando escravos associaram o Saci a um ente mítico da África, chamado Ossaim.

O livro é um dos muitos títulos recentes na estante infanto-juvenil do Saci. Na década passada, saíram obras como A Onça e o Saci (Editora Moderna, 1994), de Pedro Bandeira, Saci-Pururuca (Editora Relativa, 1998), de Telma Guimarães Castro Andrade, e Dez Sacizinhos (Editora Paulinas, 1999), de Tatiana Belinky. De 2002 a 2005, O Saci e a Reciclagem do Lixo (Editora Moderna), de Samuel Murgel Branco, O Caso do Saci (Editora Cosac Naify), de Nelson Cruz, Nas Pegadas do Saci (Editora Conex), de Marcia Camargos, e Pererêêê Pororóóó (Editora DLC,), de Lenice Gomes. Em 2006 e 2007, o jornalista Mouzar Benedito e o ilustrador José Luiz Ohi lançaram O Anuário do Saci (Editora Publisher) e Saci, o Guardião da Floresta (Editora Salesiana).

Sinal de que o Saci continua encantando leitores mirins, a enxurrada editorial corre no caminho aberto pelo gibi pioneiro em que o perneta dava nome a uma trupe típica do Brasil rural – "A Turma do Pererê", lançado por Ziraldo na década de 1960. Na primeira revista em quadrinhos de um só autor brasileiro, o Saci estrelava as páginas ao lado dos indiozinhos Tininim e Tuiuiú, da menina negra Boneca de Piche e de animais como a onça Galileu, o macaco Alan, o coelho Geraldino e o jabuti Moacir. O sucesso no papel levou a turma a protagonizar um especial de tevê em 1983, na Rede Globo, e uma série da TV Educativa, filmada em 1998 na cidade mineira de Tiradentes.

O Saci de Ziraldo foi um marco, também, na iconografia desse mito popular, consagrando uma representação pictórica desvinculada de atributos associados ao diabo, como no início do século 20. Atento à evolução dos desenhos do moleque, José Luiz Ohi observa que, no passado, o bico de pena dos artistas tendia a demonizar o Saci, figurado às vezes com chifres, pés caprinos e expressões maldosas. "Isso felizmente passou", diz. "E, se as representações antes eram mais realistas, aos poucos foram se transformando em bonecos, como o Saci de Ziraldo e, muito modestamente, os meus. Se Henfil fosse vivo, o Saci dele teria alguns tracinhos, feito a Graúna, e nada mais."

Do papel às telas

A televisão deu nova visibilidade ao Saci-Pererê aos olhos dos brasileiros de todas as idades. O perneta fez sua estreia na telinha em 1977, no Sítio do Picapau Amarelo, inspirado na obra de Monteiro Lobato. A série era uma parceria da TVE e da Rede Globo, com direção de Geraldo Casé e roteiros de Paulo Roberto Grisolli e Wilson Rocha. Na versão original, filmada num sítio cenográfico em Pedra de Guaratiba, no Rio de Janeiro, o Saci era encarnado pelo ator Romeu Evaristo, que fez da risada um traço marcante do personagem em suas reinações com Pedrinho, Narizinho e a boneca Emília. O programa, repaginado depois pela Globo, foi um dos grandes sucessos da tevê brasileira.

Antes de ganhar a telinha, o moleque já havia feito pelo menos uma aparição em carne e osso no cinema, em Saci, de 1953, clássico em preto e branco do paulista Rodolfo Nanni. O cineasta ambientou o sítio na zona rural do município paulista de Ribeirão Bonito, terra de nascimento do produtor e autor do argumento, Artur Neves, que se inspirou no livro homônimo de Lobato. O longa-metragem foi lançado em grande estilo no Festival Internacional do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, e exibido no mesmo ano no Festival de Cinema de Veneza, na Itália.

A época estava para Saci. Em 1953, quando ver televisão não passava pela cabeça da maioria dos brasileiros, a Rádio Nacional pôs o personagem no ar em Jerônimo, o Herói do Sertão, radionovela de Moysés Weltman. Na voz de Cauê Filho, o Moleque Saci era o fiel escudeiro do mocinho, que ministrava justiça numa zona rural conflagrada por fazendeiros truculentos e bandoleiros. Quando Jerônimo saía em disparada, o perneta esporeava seu cavalo com uma frase que acabaria célebre – "Sebo nas canelas, Goiabada!" O seriado, que ficou no rádio até 1967, foi novela de tevê nos anos 1970, na TV Tupi, e nos 1980, no SBT.

Fora da ficção, o personagem é tema do documentário Somos Todos Sacys, dirigido por Rudá Andrade, com roteiro de Sylvio Rocha, lançado em 2005, numa coprodução da Rede Sesc-Senac de Televisão e da Confraria Produções Artísticas. Por mais de um ano, partindo de São Luiz do Paraitinga, Rudá, Sylvio e a equipe registraram narrativas populares de aparições do Saci em vários municípios do vale do Paraíba e de outras regiões paulistas. O grande achado foi a sacióloga Ruth Guimarães Botelho, moradora de Cachoeira Paulista, condutora do documentário. "Ela é o entroncamento entre o preto velho e o intelectual modernista, grande conhecedora dos mitos, causos e ervas", diz o diretor.

Dona Ruth ensina aos espectadores como nascem os sacis. Chocados nos gomos do taquaruçu, reza a lenda, eles vêm à luz em dias de tempestade, com o gorro e o pito aceso, para viver uma buliçosa infância de 77 anos. O filme, de 55 minutos, tornou-se referência entre os defensores da cultura popular. "O cinema nacional está carente de trabalhar a mitologia brasílica", afirma Rudá. Para devolver o fruto à terra, ele e Sylvio exibiram o documentário em dezenas de cidades paulistas, no projeto Plano de Reflorestamento de Sacis no Imaginário do Povo Brasileiro, apoiado pela Secretaria de Cultura do estado. "O efeito multiplicador bate na hora: muita gente vê o filme e sai sentindo-se saciólogo", orgulha-se o cineasta, estimando que as projeções, seguidas de debates, foram vistas por mais de 40 mil adultos e crianças.

 

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