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Brilho boêmio de um cronista mundano

O estilo peculiar de Xico Sá, escritor e jornalista multimídia

CARLOS JULIANO BARROS


Xico Sá: operário da literatura
Foto: Carlos Juliano Barros

Xico Sá é decididamente um sujeito multimídia. Para os amantes do futebol, suas crônicas, publicadas às sextas-feiras na "Folha de S. Paulo", são simplesmente imperdíveis. Mas, caso a leitura venha a falhar, ele também pode ser visto na TV Cultura como comentarista do tradicional programa esportivo "Cartão Verde". Os cinéfilos de plantão, por sua vez, já perderam a conta das "pontinhas" que Xico fez em filmes da recente safra do cinema nacional, como se percebe em O Cheiro do Ralo. Até um videoclipe do popular cantor Sidney Magal contou com o ar de sua graça. Ele ainda responde pela composição de canções emblemáticas daquele que é, sem dúvida, o último fenômeno de vanguarda da música brasileira: o Mangue Beat – mistura de ritmos genuinamente brasileiros, como o maracatu, com a batida globalizada do rock’n’roll, que conquistou corações e mentes na década de 1990. Parcerias com o amigo dos tempos de faculdade Fred Zero Quatro, um dos idealizadores do movimento e vocalista da banda Mundo Livre S/A, viraram verdadeiros hinos dessa cena cultural nascida no Recife e imortalizada por outros nomes de peso como Otto, Chico Science e Nação Zumbi. Finalmente, a vocação notívaga, a predileção por ambientes underground e a sensibilidade nata para conquistar o coração das mulheres, apesar das feições "mal diagramadas", como ele próprio costuma brincar, servem de matéria-prima para seus livros e singularizam o irresistível boêmio que habita o corpo de Xico Sá.

À primeira vista, ele poderia ser considerado apenas mais um personagem cativante que transita com desenvoltura por diversos campos artísticos – o que não constituiria demérito algum, diga-se de passagem. Mas essa imagem não contempla a real dimensão de seu talento como escritor. "Atualmente, Xico é de longe o maior cronista do Brasil", sentencia o amigo, poeta e designer Joca Reiners Terron. Tanto é que conseguiu superar a mesmice e os clichês típicos do jornalismo sobre futebol para fazer alta literatura. Torcedor do Sport Club do Recife e santista por devoção aos saudosos tempos de Pelé, ele até admite um certo flerte com o Corinthians. Mas só porque, como confessa em uma de suas inúmeras teorias de mesa de bar que renderam uma boa crônica, a capital paulista onde mora há décadas funciona melhor quando o time mais popular da cidade vence. Aí, então, "por trás dos balcões, tudo vira reclame de Kolynos, o cafezinho chega quente, o cobrador assobia Vanzolini, a feira vai ao delírio, baciadas da mais besta felicidade, a Bolsa fecha em alta, a moça nos perdoa pelo conjunto da obra, o canalha respira álibis, ninguém pisa na bola, e haja paz na terra aos homens de boa vontade".

Mas se enganam redondamente os que imaginam a produção de Xico Sá restrita ao universo do futebol. "Ele é autêntico. Gosta de falar dos amigos, de mulher, de pornografia. Isso se reflete na sua literatura. Não tem como evitar", analisa o também amigo e dramaturgo Mário Bortolotto. Por essa razão, para começo de conversa é preciso fazer um alerta aos moralistas e conservadores: definitivamente, sua obra não respeita os chamados "bons costumes". Aliás, essa marca pode ser diagnosticada pela recorrente alusão em seus textos a livros, filmes e artistas que lhe serviram de influência. Nesse sentido, o amor para Xico Sá guarda estreita afinidade com o erotismo sem limites de O Último Tango em Paris, obra-prima do cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Tem mais a ver com o questionamento de valores convencionais proposto pelo diretor francês François Truffaut em Jules et Jim, um dos mais célebres triângulos amorosos da história do cinema mundial. Ou se confunde com as canções de Serge Gainsbourg, cantor e compositor parisiense que escandalizou os anos 1960 com a libertinagem de suas músicas e de sua vida pessoal. Assim, não há nada mais distante da concepção de mundo de Xico Sá do que o lirismo romantizado e bem comportado de outro grande cronista brasileiro, talvez o maior de todos, Rubem Braga. "Ele é o pai da crônica lírica do Brasil. Mas é muito sublime para o meu gosto. Eu sou mais mundano mesmo", define-se.

O estilo impregnado de libido pode ser conferido principalmente em Catecismo de Devoções, Intimidades e Pornografias, o primeiro lançamento da Editora do Bispo – uma sociedade surgida há quatro anos e tocada pelo próprio Xico Sá, em parceria com a designer Pinky Wainer e seu marido, Zuca. Trata-se de uma coletânea de crônicas e ensinamentos recheados de humor, por assim dizer, aos que desejam se iniciar, ou se aprofundar, na temática a que se refere o título da obra. "Foi o maior erro da editora, mas foi um erro que deu certo", brinca Pinky. Apesar das dimensões bastante reduzidas que se adaptam ao bolso de qualquer tamanho de calça, o livro tem um custo de impressão muito alto justamente por conta de seu formato diferenciado e do material utilizado para sua produção. Ou seja, nada recomendável para a estreia de uma empresa novata que buscava espaço no mercado editorial. Mesmo assim, até agora já foram vendidos pelo menos 6 mil exemplares – um verdadeiro best-seller para os padrões brasileiros. O ideário da sociedade gerida pelos três amigos é bem resumido na apresentação do site, em que se percebe nitidamente o dedo de Xico. "Na contramão da caretice e do conservadorismo do mundo editorial, os livros do bispo têm a beleza do pecado e da desobediência. Enquanto o mercado condena os livros à chatice e à feiura, o bispo os redime em nome de uma nova experiência de formatos". Para Pinky, que conheceu Xico quando ele era seu genro, no começo desta década, "a gente fez os livros que gostaria de ler e que não encontra na livraria", arremata.

Do sertão à metrópole

"Noite alta, rodoviária do semiárido, minha mãe: 'Vai, meu filho, ganhar a vida!' No dia em que fui embora, rapaz em flor, eu não queria ganhar a vida. O primeiro abandono debaixo de tempestade de razão pura, sertanejos corações sem água. Naquele momento eu só queria a fraqueza do colo e o amor só de mãe, como no aforismo de para-choque". Os fatos reais narrados nas páginas de Se um Cão Vadio aos Pés de uma Mulher-Abismo, espécie de idílio escrito para superar o mal digerido término de uma intensa relação amorosa, constituem um expediente para lá de comum na literatura de Xico Sá. Quem se dedica à leitura de sua obra acaba se familiarizando por tabela com sua trajetória de vida. Francisco Reginaldo de Sá Menezes nasceu no Crato, terra natal do Padre Cícero, sertão do Cariri do sul do Ceará, em outubro de 1962. O dia exato é uma incógnita até mesmo para ele: o pai, roceiro que até hoje mora por aquelas bandas, só registrou o filho seis anos mais tarde, época de se iniciarem os estudos – um costume da região. Há quem diga que ele nasceu no dia 3, mas para todos os efeitos o aniversário é comemorado oficialmente no dia 6.

Foi em Juazeiro do Norte, uma quase capital do sul do Ceará para onde ele e os cinco irmãos haviam se mudado a fim de frequentar a escola, que sua carreira de escritor começou a decolar. Um apresentador da rádio local, vizinho da família, ouvira falar dos poemas que o então adolescente Xico rabiscava. "Ele me chamou para ajudá-lo num programa chamado ‘Temas de Amor’, meio que um consultório sentimental. As mulheres mandavam cartas sobre maridos que iam para São Paulo e abandonavam a família ou sobre homens que prometiam casamento e desapareciam – aquele machismo horrível. O apresentador lia a carta e eu escrevia um conforto", relembra. "Eu não tinha a menor ideia do que fosse uma mulher. Mas pegava poemas de Fernando Pessoa e misturava com coisas que eu escrevia. Aí colocava uma música de fundo bem triste e piorava a situação de vez", recorda-se entre gargalhadas.

Durante esse período, quando a febre dos Beatles, o timbre de Roberto Carlos e a sanfona de Luiz Gonzaga compunham a trilha sonora do sertão do Cariri, Xico topou com Graciliano Ramos. O autor de Vidas Secas contaminou o jovem com o desejo de virar escritor. Daí cresceu o interesse por outros mestres da literatura mundial, os russos todos – Dostoievski, Tchekhov e companhia. Então, a migração inevitável anunciada desde pequeno, sina que apenas o pai teimara em não aceitar, também arrebatou Xico: ele tomou o ônibus até o Recife, para trabalhar, estudar e – se tudo desse certo – tentar a carreira pela qual tinha tomado gosto. Na nova cidade, a destreza na máquina de escrever lhe garantiu um emprego numa loja de departamentos para preencher fichas de crediários.

Então, a aprovação no vestibular para o curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) proporcionou uma guinada e tanto em sua vida. "Xico ganhava um troco extra para tomar uma cerveja fazendo trabalho para as amigas. Era uma pessoa muito sacrificada, morava na Casa do Estudante, tinha uma bolsa para ajudar nos custos, vendia poesia", relembra Fred Zero Quatro, o vocalista do Mundo Livre S/A . No começo da década de 1980, as primeiras apresentações da banda que entraria para a história da música brasileira com a explosão do Mangue Beat, no campus da universidade mesmo, eram abertas por performances de Xico, que recitava haicais – poemas de três versos típicos do Japão – de sua autoria. "Fui diretor do Diretório Acadêmico de comunicação e havia um jornalzinho laboratório. Xico era a estrela, tinha a coluna mais lida. Era um cronista social, mas sempre com um toque bem sarcástico. Uma marca que ele carrega até hoje: um lado ácido com muito estilo", acrescenta Zero Quatro.

Obviamente, os tempos de faculdade se converteram em farto estoque de inspiração para crônicas hilárias – como o caso de um amigo, chamado pela singela letra J, que também residia no alojamento universitário. O texto completo, batizado de "Um Sertanejo, Dois Sabonetes", faz parte do livro Modos de Macho e Modinhas de Fêmea – A Educação Sentimental do Homem, trocadilho bem-humorado com o título de Modos de Homem e Modas de Mulher, do sociólogo Gilberto Freyre. A coletânea publicada pela editora Record deve ganhar uma continuação até o final deste ano. "Só sei que o medo da dúvida, das ambiguidades, do comum de dois e de quaisquer outras presepadas desse mundo era grande. J chegou a um ponto – ou talvez tivesse sido assim por toda a vida pregressa – que só frequentava o banheiro com duas saboneteiras." Ao ser inquirido sobre o curioso hábito, o colega assim respondeu: "Rapaz, do jeito que as coisas tão, resolvi usar um pra parte da frente e outro pro fogareiro (as ditas retaguardas)".

O jornalismo é outro capítulo importante da instigante história de vida de Xico. Ainda no Recife, trabalhou como repórter de futebol em importantes periódicos da cidade, cobrindo as notícias do seu Sport e até mesmo do arquirrival Náutico. Mas, assim como seus conhecidos e familiares do sul do Ceará que encararam a capital paulista para batalhar melhores oportunidades de trabalho, Xico não escapou do horizonte que lhe parecia reservado desde a infância. Na redação de um dos mais prestigiados jornais do país, a "Folha de S. Paulo", ganhou reconhecimento, notoriedade e também um Prêmio Esso – o mais aclamado do meio – pela denúncia de um esquema ilegal de "sorteio" de obras públicas realizadas por empreiteiras que atuavam no estado mais rico da federação. Também foi o primeiro repórter a descobrir o paradeiro de Paulo César Farias, o famigerado tesoureiro da campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello, após o agravamento das denúncias de corrupção que o levariam a fugir do país. Depois de passar um tempo na Inglaterra, PC acabou detido na Tailândia, em função de uma denúncia anônima, onde Xico encontrou-o na prisão. Curiosamente, essas não são as matérias de que mais se orgulha, apesar da repercussão e do sucesso que lhe proporcionaram. Prefere, por exemplo, uma reportagem sobre um projeto de lei para elevar a idade mínima de aposentadoria que nenhum benefício traria aos cortadores de cana-de-açúcar da Zona da Mata nordestina, onde os trabalhadores defendem em vão suas vidas da "velhice que chega antes de inteirar trinta" – como nos versos de João Cabral de Melo Neto. "Esse tipo de matéria é muito mais importante. A do PC é episódica. Ele era o bandido da época, mas depois haveria outros", justifica.

Profissional das letras

"É incrível poder viver de crônica. Não era nem um sonho porque nunca achei que isso fosse possível. Gosto de ser repórter, mas enchi o saco. Hoje, acho ótimo que eu tenha só de ir até a esquina, tomar uma cerveja e arrancar um tema", confessa. Xico é de fato escritor em tempo integral, verdadeiro profissional das letras que divide as horas do dia entre os textos que nascem do prazer de brincar com as palavras, como os publicados em seu popular blog "O Carapuceiro", por exemplo, e as encomendas que o dia a dia traz a esse versátil literato. "Ele faz na hora, qualquer coisa, em qualquer linguagem, imitando o estilo de qualquer um", conta Pinky Wainer. Certa vez, no escritório da Editora do Bispo, a designer falava ao telefone sobre o texto da contracapa de um livro diagramado por ela em que todas as frases começavam com a letra "C". Aparentemente alheio à conversa da sócia, Xico trabalhava quieto em seu computador na apresentação de uma obra que seria lançada pela editora. Descarregou de uma só tacada cinco laudas de períodos iniciados com a letra "P" – por pura provocação.

"Ele tem um dos melhores textos da imprensa brasileira e escreve sobre qualquer coisa. Poderia fazer a seção de horóscopo do jornal que seria brilhante", define o ator e apresentador Paulo César Pereio, companheiro de tragos e controvertidas disputas de sinuca, em que Xico sempre trapaceia. Também é figura recorrente nas crônicas do amigo, que costuma chamá-lo de "El Viejo" – alusão não propriamente à idade, mas a um dos sobrenomes do artista. Gaúcho, nascido nas proximidades da fronteira com a Argentina, Pereio cresceu ouvindo e falando um idioma híbrido, mistura de português e espanhol. E, por essas coincidências inexplicáveis do destino, depois de muito tempo veio a servir de inspiração para um personagem – o tal "El Viejo" – de um livro escrito por Xico Sá no chamado "portunhol selvagem". O divertido Caballeros Solitários Rumo ao Sol Poente narra o périplo de boêmios, a exemplo do autor, pela noite paulistana e pode ser baixado gratuitamente no site da Editora do Bispo, assim como todas as obras por ela lançadas. Na verdade, o "portunhol selvagem" parece mais uma brincadeira de bar que ganhou status literário. Hoje, virou uma espécie de movimento de experimentação linguística, trabalhada por escritores contemporâneos do Brasil e de outros países da América do Sul. Não existem regras, apesar de já ter sido cogitada a criação de uma gramática do "portunhol selvagem". Trocando em miúdos, cada um escreve do jeito que achar melhor. "É uma diversão impregnante. A gente raramente escreve um e-mail que não tenha portunhol, virou uma forma de conversar. Tem a ver com essa liberdade de escrever todo dia", define Joca Terron, adepto confesso.

Xico Sá se aproxima da casa dos 50 anos. "É tão velho que se dá ao luxo de ser de esquerda", brinca Pinky, que compartilha dos mesmos ideais do amigo. Xico permanece autêntico. Defende com unhas e dentes, por exemplo, a universidade pública. Sabe que, se não fosse por ela, dificilmente conquistaria o espaço que tem hoje. Depois de uns goles a mais de vinho, então, é capaz de subir na cadeira de um restaurante de luxo e proferir um feroz libelo contra a burguesia. Operário da literatura que é, sua diariamente na frente do computador para pagar o aluguel da casa simples onde mora, no bairro da Pompeia. Mas a consciência social à flor da pele não faz dele um polemista panfletário ou inconveniente. Muito pelo contrário. Carismático no último grau, Xico é daquelas pessoas que todos gostam de ter por perto. Para prestar atenção a qualquer um de seus envolventes discursos. Ou para acompanhar sua impagável mania de nadar sobre o chão de um boteco até encontrar os pés de uma bela mulher e presenteá-los com beijos. Mas isso é coisa do passado. Hoje ele está praticamente casado com a namorada Maria. Por gozação, os amigos reclamam que Xico anda meio sumido da noite. Sabem que ele tem pressa de viver. "Sempre digo: vou ficar muito bravo se morrer com saúde. E a correção leva a isso, a economizar não se sabe para quê", adverte. Agora, anda às voltas com o término de um romance em que remexe recordações sertanejas da infância e da adolescência, durante a Copa do Mundo de 1974. Sem pressa nem grandes ambições, vai cimentando seu nome no restrito clube dos principais escritores brasileiros da atualidade.

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