Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Evolução, nova era para a biologia

Há 200 anos nascia Charles Darwin, cuja teoria revolucionou o estudo dos seres vivos

EVANILDO DA SILVEIRA


Foto: Reprodução

"Nada em biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução." Essa frase do biólogo e geneticista ucraniano Theodosius Dobzhansky (1900-1975) dá bem a medida da importância da teoria da evolução das espécies. Elaborada pelo naturalista britânico Charles Darwin, ela é tema central de seu livro A Origem das Espécies, cujo lançamento completa 150 anos no dia 24 de novembro – em 2009 também se comemoram os 200 anos de nascimento do cientista. A obra foi devastadora para a crença de que o ser humano teria origem sobrenatural e ocuparia um lugar especial na história da vida sobre a Terra. Ao contrário, o naturalista demonstrou que todos os seres vivos, dos mais simples aos mais complexos, incluindo o homem, descendem de um ancestral comum e, portanto, são parentes entre si.

Foi uma revolução. "O livro abriu uma nova era para a biologia e para a humanidade", explica a professora de biogeografia Claudia Helena Tagliaro, da Universidade Federal do Pará (UFPA). "A partir dali foi possível entender que todos os seres vivos fazem parte de uma mesma grande árvore ramificada." De acordo com o professor de filosofia Gustavo Caponi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), "a obra de Darwin assentou as bases para uma reconstrução científica da história da vida. Com ele, surgiu uma ciência onde antes havia somente espaço para especulação."

As ideias do naturalista contrariavam tudo o que se tinha como certo até então. "A crença dominante na época era a fixidez das espécies, ou seja, elas teriam sido criadas por Deus com certa forma e nunca mudariam", diz Claudia. Talvez por isso, poucas teorias tenham sido tão atacadas. De um lado, religiosos defendiam a origem divina dos seres vivos, especialmente do homem. Segundo eles, Darwin acabava com a distinção entre o homem e os animais. De outro, muitos cientistas achavam que o que ele propunha não explicava a origem das variações entre indivíduos e entre espécies (a genética viria resolver isso mais tarde).

Pode-se dizer que em parte essa reação se deveu ao inconformismo pelo fato de o trabalho do naturalista ter, por assim dizer, rebaixado a posição do homem no universo da vida. "Duzentos anos antes, o heliocentrismo havia destronado a Terra de sua posição central no Universo, mas o homem ainda continuava sendo o rei da criação e de natureza distinta do restante dos animais – até o século 18, os naturalistas não consideravam o homem um animal", lembra o biólogo Giancarlo Conde Xavier Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP).

Perguntas sem respostas

"Todos os seres vivos possuem uma história, e entender por que eles são do jeito que são envolve conhecer os processos que atuaram sobre eles", diz o biólogo Diogo Meyer, da USP. "Sem as ideias de Darwin, não teríamos como explicar por que há uma correlação entre o tamanho de braços e pernas em animais, por que o pavão tem uma cauda longa e chamativa, por que há tantos genes ligados ao olfato em mamíferos, por que há fósseis de dinossauros com penas. Enfim, só poderíamos descrever fenômenos, sem chegar às respostas de como aquele estado de coisas veio a se originar."

Filho de família abastada, Charles Robert Darwin nasceu na Inglaterra em 12 de fevereiro de 1809 e morreu no mesmo país em 19 de abril de 1882. Educado nas melhores instituições de seu tempo, ele chegou a estudar medicina na Universidade de Edimburgo, mas desistiu depois de dois anos. Mais tarde, ingressou na Universidade de Cambridge, na qual cursou, de 1828 a 1831, o bacharelado em artes, primeiro passo para ser clérigo, profissão bem remunerada na época. Seu interesse por história natural começou nessa época.

Como costuma acontecer em ciência, as ideias de Darwin não surgiram do nada. Assim como outras grandes descobertas, a teoria da evolução teve antecedentes, ainda não bem delineados na época, é verdade, mas que entraram, de uma forma ou de outra, em sua composição. Como disse recentemente em um artigo o professor Nélio Bizzo, da Faculdade de Educação da USP, "o século 19 estava prenhe da evolução biológica".

De acordo com ele, "uma teoria da evolução estava brotando na mente de pensadores em várias partes do mundo". Isso, segundo Bizzo, já estava anunciado no livro Princípios da Geologia, de Charles Lyell, que Darwin lera durante a viagem que fez ao redor do mundo como naturalista de bordo do HMS Beagle, um navio da marinha inglesa. "Lyell defendia o completo abandono da antiga ideia de que os fósseis não são marcas de seres vivos que de fato existiram no passado", escreve Bizzo. "Da mesma forma, dizia Lyell, não era razoável invocar os céus ou qualquer divindade para explicar fenômenos naturais à custa de milagres."

O próprio Darwin cita no início de seu livro alguns de seus precursores. "Foram vários, com muitas ideias, mas todas desarticuladas, que ele modificou e explicou em sua obra", diz o biólogo Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com seu colega Oliveira, da USP, "a noção de que uma espécie se transforma em outra, ou a inconstância delas, já existia em diversas formas, algumas mais científicas, outras mais fantasiosas, desde a Antiguidade", explica.

Na trilha do avô

Segundo Oliveira, no século 18, diversos pensadores já haviam formulado hipóteses sobre a possibilidade da mutabilidade das espécies. O próprio avô de Darwin, Erasmus, por exemplo, abordou ideias evolucionistas em seu livro Zoonomia. Até mesmo o mecanismo da evolução, a seleção natural, já tinha sido proposto anteriormente, embora de forma menos explícita, por dois autores, Patrick Matthew (1831) e William Wells (1818), ambos escoceses. Seus conceitos, porém, foram publicados em veículos de pouca penetração no meio científico e, aparentemente, eles não tinham vislumbrado sua importância e alcance para a biologia. "A diferença de todos em relação a Charles Darwin foi a meticulosidade com que ele juntou evidências factuais que apoiassem cada elemento de sua teoria", diz Oliveira.

De qualquer forma, Darwin não chegou a ler esses dois autores antes de escrever A Origem das Espécies. Outro trabalho, no entanto, o Ensaio sobre o Princípio da População, do economista e religioso Thomas Malthus, teve influência direta em seu insight – assim como no de Alfred Russel Wallace (1823-1913), outro proponente da evolução por seleção natural. A obra defendia que a enorme capacidade reprodutiva intrínseca das populações humanas era constantemente controlada pela escassez de alimentos e suas consequências, como a guerra e a doença.

Darwin expandiu essa ideia para animais e plantas e acrescentou que os indivíduos não sobreviviam por acaso, mas tinham características herdáveis que permitiam isso. Era a sobrevivência dos mais aptos, expressão cunhada na verdade pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) e adotada por Darwin. No caso de seu livro, a ideia central é que as espécies evoluem e se transformam em outras, e esse processo é a própria seleção natural. É a descendência com modificações. "Dei o nome de seleção natural ou de persistência do mais capaz à preservação das diferenças e das variações individuais favoráveis e à eliminação das variações nocivas", escreveu ele em seu mais famoso livro.

O francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) foi outro cientista que teve influência marcante sobre Darwin. Em seu livro Philosophie Zoologique, de 1809, ele apresentou uma teoria evolutiva que propunha que os seres vivos não são constantes, mas se modificam ao longo do tempo. "Lamarck tinha a principal ideia ‘científica’ da época sobre a transformação de espécies, explicada pelo mecanismo de herança de caracteres adquiridos e uso e desuso de órgãos", explica Santos, da UFMG. "Segundo ele, os organismos teriam uma ‘força vital’, que fazia com que respondessem à mudança ambiental e se aperfeiçoassem. Também é dele a ideia equivocada de que a evolução ruma a um progresso, o que é totalmente contrário aos princípios darwinistas."

Nem todos acreditam

O fato de Darwin ter tido precursores não diminui a importância de seu trabalho. Sua teoria até hoje não foi refutada cientificamente, embora ainda haja muitas resistências a ela, principalmente de natureza religiosa. "Em ciência, pode-se dizer, não há teorias irrefutáveis, nem argumentos irrebatíveis", diz Caponi, da UFSC. "Apesar disso, até para duvidar precisamos de boas razões, e não é o que ocorre com os que não acreditam na evolução, que não apresentam justificativas científicas, apenas religiosas. Por isso seus argumentos estão fora do domínio do cientificamente discutível."

No caso das ideias de Darwin, não faltam evidências para demonstrar que estão corretas. Elas vêm de áreas como a biogeografia (ciência que estuda a distribuição dos seres vivos pelo espaço físico), a paleontologia, a anatomia, a embriologia e a genética. Entre as mais importantes está a universalidade do DNA, a substância portadora da hereditariedade, presente no núcleo das células. Na verdade, o naturalista sugeriu que todos os seres vivos são descendentes de uma só espécie ancestral, o que implicaria que todas as existentes hoje deveriam compartilhar algumas características. É exatamente o que ocorre com o DNA. Todos os seres vivos – plantas, animais, fungos ou bactérias – transmitem a hereditariedade por meio dessa substância e têm basicamente o mesmo código genético, o que só seria possível devido à ascendência comum.

Algumas evidências colhidas pelo próprio Darwin, durante sua famosa viagem no Beagle, entre 1831 e 1836, foram fundamentais para o desenvolvimento de suas ideias. A jornada durou quatro anos e nove meses, dois terços dos quais passados em terra firme pelo pesquisador, em vários lugares do mundo, colhendo milhares de espécimes de animais e de plantas. Chamou a atenção do cientista principalmente a enorme variação existente entre os seres vivos, o que revelou importantes evidências da evolução. "Como, por exemplo, espécies localizadas em ilhas pareciam modificações recentes (porque as ilhas eram recentes) de similares do continente próximo", explica Oliveira.

Efeito retardado

Nessa viagem, Darwin esteve no Brasil. Embora tenha ficado admirado com a diversidade da fauna e da flora brasileiras – ele colheu centenas de exemplares, principalmente da mata atlântica –, não se pode afirmar que a passagem por aqui tenha tido grande importância na elaboração de sua teoria. Em todos os lugares, inclusive no Brasil, ele percebeu adaptações notáveis ao meio ambiente e outros fenômenos biológicos que seriam mais tarde explicados pela evolução. "Nenhuma dessas observações, em lugar algum do mundo, entretanto, teve o efeito imediato de provocar um ‘estalo’ de seu gênio, como muitos pensam, mas a lembrança delas e a consulta posterior a suas anotações e espécimes coletados é que foram fundamentais, como ele mesmo admite em suas memórias, para fornecer argumentos em favor de suas hipóteses", diz Oliveira.

De qualquer forma, a viagem teve o efeito de mudar a própria maneira de Darwin pensar. Religioso na época, o cientista não descartava a hipótese de as espécies terem sido criadas exatamente como são hoje por um deus todo-poderoso. Mas depois de dar a volta ao mundo, com destaque para sua passagem de cinco semanas, em setembro e outubro de 1835, pelas ilhas Galápagos, a cerca de mil quilômetros da costa do Equador, tudo mudou. Reza a lenda que o naturalista teria tido o tal estalo nessa estada no arquipélago, ao se deparar com diferentes espécies de pássaros, chamados tentilhões.

A história real é um pouco diferente. Na verdade, ele só se deu conta da importância do que viu em Galápagos após seu retorno à Inglaterra. Enquanto esteve no arquipélago, não percebeu a evolução em ação naquelas aves, hoje conhecidas como tentilhões de Darwin. Agora se sabe que vivem naquelas ilhas 14 espécies desses pássaros, todas surgidas nos últimos 2 milhões de anos de um ancestral comum encontrado nas Américas Central e do Sul. Cada uma ocupa uma ilha diferente, ou seja, um nicho ecológico específico.

A princípio, o naturalista não deu muita importância a esse fato e até chegou a pensar que algumas delas nem fossem tentilhões. Por isso, não classificou por ilha os vários espécimes que coletou, um erro que lamentaria mais tarde. No dia 2 de outubro de 1836, o cientista retornou à Inglaterra e, três meses depois, levou suas coleções de aves para seu amigo ornitólogo, John Gould (1804-1881). O especialista percebeu de imediato a natureza extraordinária dos pássaros colhidos em Galápagos. Em março de 1837, Gould informou a Darwin que sua coleção incluía 13 ou possivelmente 14 espécies de tentilhões.

Com essa informação, o naturalista concluiu que a única explicação possível para isso era a evolução gradual, ou seja, a transformação das espécies ao longo do tempo graças ao isolamento geográfico. Foi aí que ele compreendeu a gravidade do descuido de não ter catalogado por ilha a maior parte das aves que trouxera de Galápagos. Para sua sorte, outras pessoas que passaram com ele por lá, inclusive o capitão do Beagle, Robert FitzRoy (1805-1865), também haviam colecionado aves e tomado o cuidado de rotulá-las por ilha.

Autoria dividida

Em 1837, Darwin começa a escrever A Origem das Espécies e a dar forma a sua teoria, que em 1838 fica praticamente pronta. Entretanto, 20 anos se passariam até que resolvesse torná-la pública. Isso ocorreu em 1º de julho de 1858, quando ela foi apresentada na Sociedade Linneana de Londres, juntamente com o trabalho de Wallace, que propunha a mesma coisa. Por isso, embora a fama tenha ficado com Darwin, os dois são considerados coautores da teoria da evolução das espécies por seleção natural.

Tanto a demora em publicar sua teoria como a apresentação naquele dia têm explicação. Quanto à primeira, alguns estudiosos dizem que o naturalista sabia que suas ideias causariam polêmica e temia as críticas, tanto científicas quanto religiosas. Por essa razão, teria passado duas décadas desenvolvendo suas teorias evolutivas quase em segredo, comentando-as apenas com alguns poucos amigos. Na opinião de outros especialistas, ele demorou a divulgar sua descoberta por perfeccionismo. Darwin queria recolher mais dados e argumentos que pudessem corroborar seus pressupostos.

Seja como for, ele se viu obrigado a tornar público em 1858 pelo menos um resumo de sua teoria, sob pena de perder a primazia da descoberta. Em ciência, quem publica primeiro é o dono da ideia. Em junho desse ano, Darwin recebeu uma carta de Wallace, que estava realizando pesquisa de campo na Indonésia, pedindo que avaliasse um pequeno artigo. Levou um choque.

No texto, Wallace elaborava uma teoria praticamente igual à sua. Tanto que Darwin escreveu, numa carta a seu amigo Lyell, citada por Meyer em artigo escrito em conjunto com João Stenghel Morgante, também da USP: "Nunca vi uma coincidência tão impressionante. Se Wallace tivesse lido meu esboço manuscrito de 1842 não faria um resumo melhor. Até as expressões que ele usa são títulos de meus capítulos". No fim, tudo acabou bem. Eles entraram em acordo e resolveram apresentá-la juntos. Na ocasião, nenhum dos dois estava presente. Darwin por luto pela morte de uma filha, e seu parceiro porque continuava na Indonésia.

O artigo passou quase despercebido naquele dia. Na mesma reunião, a pauta da Sociedade Linneana de Londres incluía a leitura de um texto sobre a vegetação de Angola e outra sobre um novo gênero da família das abobrinhas. Apenas no ano seguinte, com o lançamento do livro A Origem das Espécies, a teoria de Darwin e Wallace se tornou popular. Os 1,25 mil exemplares da primeira edição da obra se esgotaram no dia do lançamento. Desde então, as ideias dos dois não têm parado de avançar e se firmar como a explicação mais convincente para a evolução da vida na Terra.

Segundo Oliveira, raras vezes na história uma só teoria conseguiu afetar de forma simultânea tantas áreas da ciência. "Ela teve impacto na ecologia, ao mostrar como as espécies se adaptam aos diferentes ambientes; na história, alterando a escala do tempo de existência do homem na Terra e, de diversas formas, na zoologia, na botânica, na medicina (as bactérias evoluem rápido e se tornam resistentes a antibióticos, por exemplo) e na agricultura (analogamente, as pragas também se tornam resistentes a inseticidas por seleção natural). O mais importante impacto, talvez, tenha sido o fato de ela ter unificado a biologia em todos os seus campos, tornando-os integrados."

Comente

Assine