Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Qual será o futuro de nossas favelas?

País tenta melhorar a vida de seus 7 milhões de favelados

TATIANA UEMURA


Praça instalada em Paraisópolis, em São Paulo
Foto: Divulgação

Quando a família de Fábio Rubson, então com 6 anos, saiu de Brasília, em 1986, com destino a São Paulo e levantou seu barraco de madeira em uma viela de terra na gleba N de Heliópolis, não imaginava quanto aquele lugar iria mudar. Novos vizinhos chegavam, o espaço rareava e, à medida que cresciam, as famílias erguiam lajes. Barracos de madeira viraram casas de vários andares, de alvenaria inacabada, desordenadamente distribuídos. Algumas vielas ganharam asfalto, já outras desapareceram completamente para dar lugar a conjuntos habitacionais construídos pelo poder público. Rapidamente, o que era um punhado de 102 famílias reassentadas no local pelo governo em 1971 virou quase uma cidade, com 14 glebas e 125 mil habitantes distribuídos em quase 1 milhão de metros quadrados, ganhando o título de maior favela da capital paulista.

A própria trajetória de Fábio ilustra os "ãos" – remoção, urbanização, regularização e mobilização popular – que pautaram as políticas públicas para o tema. Ele passou por todas essas etapas e vive hoje em uma unidade habitacional entregue pela prefeitura após remover sua casa para promover a urbanização da área. Desde dezembro de 2007, divide com a mulher e o filho uma moradia de 42 metros quadrados com dois quartos, "mais bem pensada, com mais ventilação e iluminação", a um quilômetro do barraco original. Fábio também se engajou na comunidade como diretor de projetos da União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas).

Heliópolis é um dos casos mais emblemáticos do Brasil, país em que o número de pessoas que vivem em favelas chega a 7 milhões (3,8% da população), segundo dados de 2007 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A maioria (4 milhões) está no sudeste, especialmente nas regiões metropolitanas. Nas grandes cidades, porém, embora ainda apresente curva ascendente, o ritmo de crescimento deu uma trégua, mesmo porque já não há tanto espaço disponível. Um exemplo dessa situação ocorre no Rio de Janeiro: no censo de 1960, o aumento total da população era de 3,3% ao ano, enquanto o da parcela favelada era de 7,09%, índice que caiu em 1991 para 2,65% ao ano. Mesmo assim, esse contingente impressiona: em 2000, mais de 1 milhão de pessoas viviam em favelas no Rio de Janeiro (18% da população do município).

Já faz um século que se discute a favelização. Para entendê-la, porém, é preciso voltar à sua origem, no Rio de Janeiro, onde o processo é mais antigo justamente por se dar paralelamente ao desenvolvimento urbano da então capital do país. Consta que a ocupação dos morros cariocas teve início em 1897 – de maneira consentida. Com a chegada à cidade dos soldados que haviam lutado na Guerra de Canudos, o governo autorizou a construção dos primeiros barracos no Morro da Providência, na região central, para servir-lhes de moradia. É difícil comprovar se essa foi realmente a primeira favela, pois sabe-se que havia ocupações anteriores; fato porém é que o termo se originou de uma planta que ocorre no nordeste e que justamente dava nome a um morro em Canudos onde os soldados haviam acampado. Com o tempo os barracos se multiplicaram e, quando começaram a incomodar, o governo recorreu às remoções com o argumento higienista de evitar a proliferação de doenças.

Na verdade, o termo "favela" só foi citado oficialmente num estudo urbano em 1927, no Plano Agache. Na década de 1940, ainda com as remoções em voga, surgiram os parques proletários de Getúlio Vargas, que nasceram para ser abrigos provisórios, enquanto o governo urbanizava algumas favelas. O tempo passou, e eles ficaram. Foi na ditadura militar que a remoção se revestiu do mal-estar que até hoje desperta quando a palavra é pronunciada em qualquer favela. A enorme comunidade da Catacumba foi uma das que sumiram para dar lugar a um parque natural e a prédios de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas. Só quem não desapareceu foi a sua população: como não existe mágica, os antigos moradores passaram a engrossar subúrbios e outras favelas já existentes.

Muro polêmico

Hoje, falar em remoção é pisar em ovos, mas ela ainda é admitida como solução para áreas de risco e locais que exijam urbanização imediata. Por conta da herança do período militar, não é difícil entender por que o anúncio da construção de 11 quilômetros de muros para conter a expansão de favelas cariocas em áreas de proteção ambiental gerou tanto alarde. Incomodou até do outro lado do Atlântico, a ponto de um Prêmio Nobel de Literatura, o português José Saramago, escrever algumas linhas sobre o tema em seu blog, em março deste ano: "Tivemos o muro de Berlim, temos os muros da Palestina, agora os do Rio". A ideia do governo carioca é investir R$ 40 milhões para murar 11 comunidades da zona sul, a região mais nobre da cidade. A polêmica cresceu quando se constatou que o Morro Dona Marta, primeira favela a ser murada, estava entre as que menos haviam crescido entre 1998 e 2008. O argumento de preservação ambiental balançou com o fato de as áreas ameaçadas também estarem ocupadas por imóveis de classe média e alta.

"No máximo, o muro vai servir de parede para sustentar uma casa do outro lado dele. Ele só torna física a diferença", afirma Maria Laís Pereira da Silva, autora do livro Favelas Cariocas, 1930-1964. Segundo Eduardo Marques, diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), em São Paulo, "o muro no Rio é exemplar quanto ao fato de culpabilizar a favela por grande parte dos problemas da cidade. Essa política é apenas mais um elemento que sugere o toque de ordem e a consideração de que favela é desordem", diz. Para acalmar os ânimos, o governador Sérgio Cabral recebeu lideranças das comunidades para debater a questão. "Somos a favor da contenção, mas o muro é ruim. E se acontece uma calamidade? As pessoas não vão ter por onde sair", opina Rossino de Castro Diniz, presidente da Federação de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj). Segundo ele, após a conversa com o governador, os muros continuam, mas foram, digamos assim, amenizados. No Morro Dona Marta, o governo plantou mudas junto aos muros, e na Rocinha um parque ecológico foi criado à custa da remoção de algumas famílias.

Polêmicas à parte, pelo menos o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, conseguiu certa unanimidade. Gera expectativa nos moradores e entusiasma especialistas no assunto, pois é o maior investimento em escala nacional desde a época do Banco Nacional de Habitação (BNH), extinto em 1986. O PAC prevê a utilização de R$ 13 bilhões do Orçamento Geral da União em urbanização de favelas por quatro anos, além de R$ 4 bilhões financiados por estados, municípios e estatais em mais de 380 projetos selecionados no país. Além disso, os projetos incluem a regularização fundiária e o acompanhamento social das famílias contempladas pelas obras. "A criação do Ministério das Cidades já foi um avanço, mas ter um programa federal, além daqueles municipais, pulverizados, é uma evolução. Os investimentos, se realmente forem feitos, são importantes", afirma Maria Laís.

As melhorias do PAC também têm causado impacto no mercado imobiliário informal das favelas, pelo menos na capital paulista. Em Heliópolis, o aluguel de uma casa de dois quartos, que antes era de R$ 350, passou a R$ 500, segundo Fábio Rubson. Para a venda, um imóvel do mesmo tipo subiu de R$ 15 mil a R$ 20 mil a uma faixa de R$ 20 mil a R$ 35 mil. Ele explica que o aumento se deve ao fato de o governo bancar o aluguel das famílias removidas, enquanto não forem transferidas definitivamente para as unidades habitacionais. Na segunda maior favela paulistana, Paraisópolis, as obras de urbanização, já em estágio mais avançado, também fazem disparar os preços, que tradicionalmente já eram mais altos que em outras comunidades por conta da localização, próxima ao bairro do Morumbi. Uma casa com um dormitório, sala e cozinha sai, em média, por R$ 40 mil para a venda, enquanto o aluguel ficaria em R$ 400, segundo a União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis. Isso independentemente de existir ou não título de propriedade.

Não custa lembrar que esses valores são casos à parte, prova de que frequentemente se comete o erro de generalizar "favela", no singular, quando na verdade existem "favelas", em toda a sua pluralidade. Muito difícil, por exemplo, seria imaginar uma autoridade política prestigiando uma cerimônia numa delas. No caso de Paraisópolis – que cresceu em terreno particular e é um dos casos extremos dessa heterogeneidade –, a posse do atual presidente da União dos Moradores, Gilson Rodrigues, de 24 anos, não só aconteceu em local nobre – o Hospital Israelita Albert Einstein, que patrocina um projeto na região – como também contou com a presença do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Não é à toa que grandes marcas, como Casas Bahia, Bradesco e Caixa Econômica Federal, garantiram lugar ali.

Aliás, não se fala em favela em Paraisópolis. Essa é outra grande diferença. "Estamos passando efetivamente por uma grande transformação, somos um bairro completo. Tem gente até que vive muito bem aqui", atesta Gilson Rodrigues, que veio da Bahia há 19 anos e moldou a fala articulada à base de uma trajetória de militância, iniciada em um grêmio estudantil. Segundo ele, todas as microrregiões de Paraisópolis têm obras de urbanização, e vários moradores já detêm inclusive título de propriedade, ao contrário de Heliópolis, onde as pessoas ocupam terreno público e apenas possuem uma concessão de uso. De acordo com a prefeitura de São Paulo, foram adquiridos 200 lotes dos antigos donos do terreno de Paraisópolis, e a propriedade transferida aos atuais ocupantes. Cerca de 2 mil imóveis foram regularizados, de um total de 21,2 mil. Uma minoria, porém, não teve ou não terá a mesma sorte. Os afetados por obras de urbanização e eliminação de áreas de risco serão transferidos a unidades habitacionais e terão de fazer desembolso por elas.

Como fica a propriedade

A regularização fundiária é um tema espinhoso e recente. Até pouco tempo atrás, falava-se apenas da urbanização, muitas vezes com os aspectos sociais relegados a segundo plano. As autoridades, porém, perceberam que, além de a remoção em massa ser inviável e a favelização, irreversível, a legalização dos moradores também redundaria em recolhimento de tributos e maior controle. No entanto, como atesta Valério da Silva, coordenador do Programa Terra e Habitação, da Fundação Bento Rubião, no Rio de Janeiro, "a Justiça brasileira ainda está muito calcada na defesa da propriedade, apesar dos instrumentos existentes". Ele se refere ao direito constitucional à moradia e ao usucapião previsto na Constituição e reforçado pelo Estatuto das Cidades, de 2001. Os critérios para usucapião são limite de propriedade de 250 metros quadrados para fins de moradia, ocupação por mais de cinco anos e o requerente não possuir outro imóvel. "Não somos contra a propriedade, mas a questão é desigual. Existem pessoas morando há 40 anos numa área que nunca foi objeto de reclamação, há o reconhecimento do direito adquirido, e mesmo assim passamos por uma série de entraves burocráticos que dificultam a regularização."

Nessa questão, o carro-chefe é a Rocinha, no Rio, onde a Fundação Bento Rubião pretende regularizar 8 mil unidades das 30 mil existentes. Parece pouco, mas o problema é que as ações desse tipo, além de caras, levam, em média, 11 anos para ser concluídas. Para se ter uma ideia, o primeiro desfecho de um caso dessa natureza ocorreu há um ano; tratava-se de uma família ameaçada de despejo em 1986. Só os preparativos da ação levam um ano: para começar, é feita a convocação dos moradores, a seguir vem a topografia da área ocupada por eles – que pode custar de R$ 60 mil a R$ 100 mil –, depois são colhidas informações sobre o terreno e as edificações e por fim é feita uma procuração. Já na Justiça, outros entraves burocráticos, como a localização de antigos donos e novos pedidos de documentos, retardam o andamento, além de desmotivar os próprios moradores, que muitas vezes acabam desistindo.

O tema virou política nacional pela primeira vez com a criação, pelo Ministério das Cidades, do Programa Papel Passado, que apoia estados, municípios e associações sem fins lucrativos – como a Bento Rubião – no trabalho de regularização. Segundo Valério, hoje o governo dá um auxílio de R$ 300 a R$ 500 por família para cobrir os custos do trabalho que antecede a ação propriamente dita. Com o título de propriedade, as famílias passam a ter direito a indenização em caso de remoção e maior facilidade para conseguir empréstimos. Entre os moradores, a opinião quanto à regularização varia muito. "No Rio de Janeiro, ainda é a minoria que nos procura, porque é preciso pagar uma taxa de 1% a 2% do valor do imóvel", conta Rossino, presidente da Faferj. Em Paraisópolis, Gilson diz que as pessoas passaram a dar maior importância ao título de propriedade depois de ter água e luz em seu nome e a possibilidade de valorizar o imóvel. Já em Heliópolis, Fábio conta que a população mostra interesse, mas por enquanto ainda tem de se contentar com a concessão de uso e a ocupação de unidades habitacionais sem garantia de que ao final terão a propriedade. "Além disso, a linguagem jurídica dos contratos confunde os menos esclarecidos", complementa.

Com o pacote de urbanização e regularização fundiária, o governo pretende transformar as favelas, pelo menos aquelas consolidadas, em bairros. No Rio de Janeiro, o programa mais midiático foi o Favela-Bairro, em 1994, com a meta de integrar a favela à cidade. Transformar em bairro, como ato administrativo, não é o problema. Complicado é fazer isso de fato. "As melhorias até agora não foram capazes de integrar as favelas às cidades", comenta Maria de Fátima Cabral Marques Gomes, coordenadora-geral do Núcleo de Pesquisa e Extensão Favela e Cidadania. "É legal tornar administrativamente bairro, com quadra, praça, mas de nada adianta se o estigma de violência e espaço sem ordem se mantiver", explica Jorge Barbosa, coordenador-geral do Observatório de Favelas e coautor do livro Favela: Alegria e Dor na Cidade. Como exemplo, ele diz que não adianta apenas construir uma escola dentro da favela e outra no bairro, quando surtiria mais efeito existir uma que pudesse ser frequentada por ambas as populações.

"O que faz muita diferença, na verdade, é o estigma. Os favelados não são vistos como moradores, as pessoas olham a partir da violência, que, embora seja determinante, não pode pautar todas as leituras. A verdadeira integração seria desestigmatizar, mostrar como cultura, que são pessoas que produzem e têm o que dizer. É esse o trabalho que as ONGs tentam fazer e é muito importante", opina Maria Laís. Os moradores também não são tão otimistas. "Ainda que virasse bairro, seria para a mídia – mesmo porque os programas não abrangem toda a população", afirma Rossino, da Faferj. Segundo Fábio, de Heliópolis, "o preconceito sempre vai existir, é difícil mudar um cenário cultural que se formou há 30 anos. Não se trata só de fazer infraestrutura e dar casa; é preciso criar espaços de valorização social". Outro agravante no caso de Heliópolis é que, apesar de ser considerada uma favela consolidada, há vários bolsões de miséria dentro dela, que, nas contas de Fábio, devem representar cerca de 20% da comunidade.

Como se vê, políticas existem em relação às favelas. Por que, então, mesmo assim elas continuam a crescer? Jorge Barbosa, do Observatório de Favelas, explica que o primeiro motivo é que nem o Estado nem o mercado se comprometeram a produzir habitação popular, mesmo com a construção de moradias em pequena escala pelo governo. Outro ponto é que a população carente não tem acesso aos mesmos financiamentos da classe média. "Deixou-se que os mais pobres erguessem suas casas do modo que lhes era possível, com seus próprios recursos, como direito de habitar a cidade. Há construções feitas por duas gerações inteiras, sem conhecimentos ambientais ou de arruamento." A atenção é dada às favelas maiores, com mais visibilidade, enquanto outros focos de ocupação, geralmente na periferia da cidade, são ignorados. "E são justamente as favelas mais novas que se desenvolvem num ritmo vertiginoso."

Nesse contexto, as ONGs, como o próprio Observatório de Favelas, de Jorge Barbosa, têm ganhado importância crescente como forma de desafogar o Estado com políticas complementares, especialmente na área social. "Se existem avanços, o maior é, sem dúvida, a organização política da população, na forma de movimentos sociais, associações de moradores, ONGs e outros canais formais de participação instituídos pela Constituição de 1988, como o Conselho de Políticas Urbanas", opina Maria de Fátima, do Núcleo de Pesquisa e Extensão Favela e Cidadania. Eduardo Marques, do CEM, acrescenta que a urbanização é um processo lento: "Demora mais que uma obra simples porque se trabalha em um local onde há pessoas vivendo. Nada tem resultado imediato, a própria urbanização é quase um artesanato".

Comente

Assine