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Shakespeare Atemporal
Ilustrações: Marcos Garuti
Shakespeare atemporal
William Shakespeare (1564-1616) é aclamado como o maior dramaturgo da língua inglesa e um dos mais influentes poetas do mundo ocidental. Suas obras, frequentemente revisitadas, têm servido como componente inspirador para muitos escritores.
Temas como o amor, o ódio, a traição, o poder, o bem e o mal passaram com genialidade pela pena do autor, que imortalizou frases e pensamentos como: “Ser ou não ser, eis a questão” (Hamlet). A seguir, o psicanalista e escritor Sérgio Telles e o professor de literatura e língua inglesas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Lawrence Flores Pereira analisam por que as ideias de Shakespeare continuam em voga e suas peças, tão encenadas mundo afora.
Shakespeare na atualidade
por Sérgio Telles
“Parece-me que, se viesse a conhecer Shakespeare, eu explodiria de medo”, escreveu Gustave Flaubert numa carta para sua amada Louise Colet. A confissão de Flaubert, feita quase 250 anos após a morte do Cisne de Avon, dá uma boa imagem da vitalidade e força intimidadora de Shakespeare mesmo entre seus pares mais poderosos, como é o caso do autor de Madame Bovary. É provável que a maioria dos grandes escritores de qualquer época não hesitasse em subscrever tal afirmação.
Isso dá mostra da posição excepcional de Shakespeare na cultura. Suas peças continuam sendo executadas no mundo inteiro em grande escala. Isso significa que seus personagens e as situações por eles vividas continuam emocionando espectadores e leitores de épocas bem diversas e latitudes muito variadas, fazendo-os se identificarem com eles, reconhecendo neles suas emoções mais fundas e secretas.
A explicação disso nos deu Freud, ao mostrar que os grandes artistas entendem com acuidade a realidade psíquica. Por esse motivo, transcendem as circunstâncias temporais e espaciais, pois remetem aos eternos conflitos de amor e ódio que regem as relações humanas, presentes desde os primeiros momentos vitais no seio da família, quando se organizam no contato com os pais e irmãos, estabelecendo modelos que marcarão os vínculos sociais a serem mantidos no futuro.
Segundo Freud, os artistas têm uma facilidade especial para entrar em contato com seu próprio psiquismo inconsciente, o que não ocorre com a maioria das pessoas, que veem essa possibilidade vedada pela repressão. Desse contato com o inconsciente, os criadores retornam com uma obra que expressa verdades internas logo reconhecidas por todos que dela se aproximam.
Se esse é um dom comum a todos os artistas, não se pode negar que entre eles Shakespeare ocupa um lugar único. Em Shakespeare se conjuga a perfeita compreensão dos desvãos mais escuros da mente humana com uma extraordinária linguagem poética, cuja beleza e magnificência arrebatam o leitor ou espectador. É por isso mesmo que – ao contrário do que ocorre com a obra de muitos dramaturgos – o prazer obtido com a leitura das tragédias de Shakespeare é semelhante àquele proporcionado ao assistir a sua encenação.
A linguagem esplendorosa de Shakespeare devolve ao drama humano sua real dimensão, retirando-o da banalização com a qual defensivamente envolvemos nossa existência, na vã tentativa de manter ao largo a percepção de nossa desconcertante irracionalidade, da gravidade de nossos embates com os semelhantes, da rápida consumação do tempo que nos aponta a finitude.
A compreensão da alma humana por parte de Shakespeare se evidencia de modo exemplar quando mostra seus personagens em ruminações consigo mesmos, ocasião em que fica exposta a trama de seus pensamentos e sentimentos, que transpõem as barreiras da moralidade e da habitual repressão da consciência, alcançando a mais recôndita dimensão inconsciente. Falstaff, Hamlet e Edmundo, em seus solilóquios, mostram possuir um admirável entendimento de suas próprias emoções, comparável apenas àquele obtido após anos de uma psicanálise bem-sucedida.
Os personagens de Shakespeare vivem no topo da pirâmide, eles fazem parte da nobreza, são reis e rainhas, são os poderosos do mundo. Tolstoi, um dos poucos grandes da literatura a censurar Shakespeare, viu essa escolha como uma falha, como um desprezo ao homem comum, à multidão e à classe operária. Entretanto, isso que poderia ser entendido como uma limitação decorrente das contingências históricas que cercavam o autor, nas mãos de Shakespeare se transforma num precioso instrumento de análise dos impasses próprios da condição humana.
Ao centrar a urdidura das grandes tragédias numa classe social na qual os problemas da sobrevivência imediata são inexistentes, Shakespeare parece dizer que os conflitos específicos do ser humano – focados na busca da felicidade e do amor, no manejo do ódio e no enfrentamento com a morte – podem ali ser vistos em sua forma mais depurada.
Quer isso dizer que somente os ricos e poderosos vivem efetivamente tais conflitos? Claro que não. Eles são inerentes à condição humana, afligindo a todos – pobres e ricos, senhores e escravos. Mas esses conflitos podem ficar encobertos e mascarados por várias circunstâncias.
Tomemos um cidadão comum, preso a limitações econômico-financeiras concretas relacionadas com casa, comida, saúde, filhos, inseguranças quanto ao futuro etc. Esse cidadão facilmente atribuirá sua infelicidade, sua insatisfação e sua sensação de incompletude às carências reais que o perturbam.
Mas ao atribuir sua infelicidade a tais necessidades, ele se equivoca, pois acredita que bastaria ter aqueles bens materiais que lhe faltam para ter garantida a felicidade, como se os ricos fossem felizes por terem acesso a tudo que o dinheiro pode comprar.
“Em Shakespeare se conjuga a perfeita compreensão dos desvãos mais escuros da mente humana com uma extraordinária linguagem poética, cuja beleza e magnificência arrebatam o leitor ou espectador”
É nesse sentido que a luta pela sobrevivência encobre os problemas mais específicos do ser humano. Eles ficam mais visíveis quando as necessidades básicas estão satisfeitas e garantidas. Somente então aparece claramente aquilo que é a marca da natureza humana – a impossibilidade de satisfazer o desejo, a percepção de uma incompletude estrutural, de um vazio que em vão procuramos preencher durante a vida.
É isso o que Shakespeare mostra com seus reis e rainhas, com seus donos do mundo. Apesar de tudo terem, continuam mergulhados em angústias e culpas, prisioneiros de compulsões, movidos por loucas ambições, arquitetos ensandecidos de seus próprios infortúnios. É nessa paisagem sombria que vamos encontrar os ciúmes assassinos de Othelo, a perfídia de Iago, a insaciável vontade de poder de Lady Macbeth, as dúvidas paralisantes de Hamlet, o desespero de Lear frente à velhice e à morte.
Por essa via também fica clara a discriminação entre as necessidades conscientes – reais, concretas e objetivas – e os desejos inconscientes – irrealísticos, fantasiosos, anacrônicos em sua tentativa de refazer a onipotência narcísica infantil.
A genialidade de Shakespeare é tão impactante que custa a crer que o filho de um modesto luveiro, sem educação formal bem definida, possa ser o autor de peças tão brilhantes, nas quais desfilam personagens da mais elevada estirpe, possuidores de alta cultura e discorrendo com desembaraço sobre temas sutis e complexos. Por esse motivo, levantou-se a hipótese de que algum nobre da corte elisabetana seria o verdadeiro autor das peças e, para proteger sua identidade contra o estigma social que então cercava o teatro, teria usado o nome de Shakespeare, o humilde ator e diretor da companhia teatral.
Entre os supostos autores escondidos sob o nome de Shakespeare, os mais importantes são Francis Bacon e Edward de Vere, conde de Oxford. Este último teve um grande número de defensores, ditos “oxfordianos”, entre eles o próprio Freud.
Hoje em dia tais suspeitas são desconsideradas. De qualquer forma, homem humilde ou nobre cortesão, o autor das obras excelsas que têm deslumbrado incontáveis gerações continua nos assombrando como a maior e mais genuína manifestação de genialidade literária.
Por tudo isso, Shakespeare é considerado pelo crítico literário norte-americano Harold Bloom como o ápice do cânone ocidental, ou seja, do conjunto dos grandes escritores da civilização judaico-cristã. Para Bloom, Shakespeare estabelece o padrão e os limites da literatura.
Shakespeare: o mundo misturado
por Lawrence Flores Pereira
A questão sempre retorna de modo rotineiro. O grande bardo, o gênio, o inventor do humano: são vários os epítetos que o filho de um luveiro, nascido no vilarejo de Stratford-upon-Avon, amealhou ao longo dos séculos. Shakespeare jamais saiu da berlinda, talvez pela força inercial do seu nome e pelas alucinações privadas e coletivas que se aderiram à sua fama. Mudam as escolas, encontra-se um novo filão em Shakespeare.
Hoje é a violência desmedida, no início do século o que atraía era seu primitivismo; no século XIX, as paixões, os “caracteres”; no romantismo, seu realismo que contrastava tanto com o modelo classicista. Shakespeare é uma espécie de breviário de onde a modernidade, conscientemente ou não, colhe suas várias fases refletidas.
Talvez seja assim porque ele é um mago entertainer que dá ao público atual e anterior o sangue, a catarse vingativa e ao intelectual suas ideias fixas, e, de quebra, produz uma dialética lúdica dos dois domínios.
Ele próprio tinha de conciliar os “groundlings” (o público humilde que no Globe ficava em pé) e o pessoal mais afeito ao “caviar” intelectual, aos lances de retórica, às reflexões abissais cheias de patos. E Shakespeare era, em sua atenção, certeiro e errático, ao contrário de um Marlowe (errático apenas na vida). Conseguia acessar, como a modernidade aprendeu a fazer, todos os semitons que levam da idealização à decepção, todas as experiências, sentimentos, intuições, pensamentos, agudezas, mal-entendidos, envolvidos no processo sutil dos conflitos, e sua mimesis era capaz de produzir a devida ilusão de tais coisas.
Um personagem em Shakespeare pode ganhar certa autonomia, o que era raríssimo nas peças mais mecânicas do período. Essa penetração o fez expressar dimensões humanas que continuam a nos interessar. Isso lhe permitiu também apresentar a interioridade humana como raramente se tinha feito até então. O fato é que, se Shakespeare reflete o seu tempo, no espelho que ele poliu já irradiavam alguns feixes do futuro!
A psicanálise teve com Shakespeare um encontro nada fortuito.
Freud nunca deixa de citar suas peças, seus seguidores, até Lacan. Ambos analisam-no em detalhe, revelam a sintaxe secreta que subjaz às ações de seus personagens. Hoje ainda as potencialidades dramáticas, críticas e contestatórias de Shakespeare impressionam: o silêncio de Ofélia, a invisibilidade de Cordélia, que, paradoxalmente, a torna mais visível que o próprio Rei Lear, são fenômenos que se originam numa técnica dramática de sugestão, além de ser o reflexo da idealização ou do ofuscamento do feminino em sua obra.
Há algum tempo, Greenblatt [Stephen Greenblatt, crítico norte-americano] inverteu as relações entre Shakespeare e a psicanálise. Para ele, seria engodo pensar que a psicanálise descobriu os segredos de Shakespeare. Ao contrário, a obra de Shakespeare antecipa as verdades psicanalíticas, e somos o decalque da cristalização do prestígio de Shakespeare. O Édipo e a “história familiar” de Freud seriam uma história tirada das peças de Shakespeare, que intuiu conceitos que seriam elucidados apenas depois T. S. Eliot escreveu que Hamlet, a peça, era um fracasso, pois não lograra produzir um correlato objetivo para a paixão do herói principal.
“Shakespeare era, em sua atenção, certeiro e errático, ao contrário de um Marlowe (errático apenas na vida). Conseguia acessar, como a modernidade aprendeu a fazer, todos os semitons que levam da idealização à decepção...”
Um modelo de vingança, com sentimentos baixos para um público ávido de vendetas reais e imaginárias, ganha na peça um contorno errático. Shakespeare inventa a indecisão, mina a ação da peça, cria um personagem cheio de dúvidas... nada menos trágico para os padrões aristotélicos. Em compensação, Shakespeare vai interligando a dúvida de Hamlet com o seu “histórico” familiar, com o fato de a mãe ter se jogado tão rápido (e com prazer) nos “lençóis incestuosos”. A peça de vingança fica irreconhecível... a tragédia familiar brilha com reflexos interessantes, o contorno protofreudiano se insinua.
O pensamento nômade de Shakespeare é o que mais nos atrai em sua obra. Teatro talvez da “crueldade”, do “Néant”... teatro sobre o teatro... mas também delicadeza, fineza. Seria falso, contudo, dizer que são nossas “leituras” que tornam Shakespeare atual. Se fosse verdade, nossas leituras poderiam ser mais generosas com Racine, com tantos outros. Mas há uma consistência passional, estilística, algo violentamente insistente em Shakespeare que se impõe pela força da fusão, pela mistura complicada, indomável de seu teatro.
A atualidade possui um traço fundamental em comum com Shakespeare: o interesse artístico pelo primitivo, elementar, o fascínio não pela miudeza realista, mas pela exploração de situações extremas: catástrofes, noticiosos policiais, temas criminosos, os delineamentos obscuros das pulsões humanas. Shakespeare explora a violência extrema em peças como Titus Andronicus, Rei Lear e tantas outras, a inveja nas formas mais elaboradas, o mecanismo de controle dentro de uma corte (a suspensão da verdade em Hamlet, por exemplo).
São temas que interessaram intelectuais modernos como Freud, René Girard ou Foucault.
Os conflitos em suas peças dependem menos do golpe frontal, de oposições fechadas, mas de inúmeras mediações da própria consciência dos personagens: todo mundo observa, está de olho no que o outro está a pensar.
Disso depende a sorte num mundo volúvel, onde importa dominar as intenções alheias. As cortes do período inauguraram essa forma de conduta que impregnou o próprio pensamento da época. A Utopia de Thomas Morus preocupa-se com a inessencialidade das relações. Nesse cosmo tudo flutua, é uma situação não muito longe da do hiper-real baudrillardiano, com as devidas correções.
O que se perde em suas peças – e de modo sistemático – é a realidade. Ela se desfaz num jogo complexo de vontades, subjetividades, acasos bem agenciados, e, mesmo que o “bem” pareça surgir ao final, a devastação deixada não permite pensar em redenção. Na própria comédia, Shakespeare não se preocupa apenas com o riso, mas é um pensador do cômico. Vasculha os interstícios entre riso e ressentimento, riso e medo da morte. A ousadia de operar entre a realidade e o absurdo é também um artifício sutil de Shakespeare.
Beckett é comovente em Endgame nas tiradas sobre o nada, mas essa sintaxe límpida do cômico com o grotesco, sua lógica, ele aprendeu com Shakespeare, e com a “folatrie” do Renascimento. O tragicômico para ele não é apenas um nome, é modo de revelar, por exemplo, como o homem mais poderoso do reino, um Ricardo II, pode ser também o mais frágil dos seres: um rei caído, uma figura paterna que pede pateticamente socorro antes de ser absorvido em seu espetáculo barroco.
Ricardo II é uma figura muito próxima do cômico, e não faz muito tempo que o ator Mark Rylance conseguiu magicamente resgatar o solene orgulho tolo do reizinho mimado que teria preferido para sua vida uma atividade menos complicada. E a cena anticlimática, a dança macabra da cena dos coveiros em Hamlet?
O tragicômico de Shakespeare é orgânico, e não um leve repouso para as emoções lancinantes da tragédia. Nos interlúdios elisabetanos dos anos oitenta, havia a alegoria, mas tudo muito decente, intelectualizado. Shakespeare alquimiza o que era mecânico, faz tudo se comunicar, agita a matéria informe da tragédia e da comédia e traz de roldão o mundo misturado, o nosso mundo, a nossa modernidade.