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Fred 04
O vocalista Fred 04 fala da banda Mundo Livre S/A e de como surgiu em Recife um dos mais criativos movimentos da cena musical brasileira
Fred 04 é o homem de frente da banda Mundo Livre S/A. No comando do vocal, do cavaco e da guitarra, o músico mantém desde a década de 1980 o discurso politizado, repleto de críticas, crônicas e poesias. Nascido em Jaboatão dos Guararapes (PE), em 1965, Fred tem os pés no mínimo em três lugares: no mangue, no punk e no samba.
Conforme disse, em entrevista por telefone para a Revista E, a mescla de elementos culturais no movimento Manguebeat alavancou uma cena em Recife. “Antes disso, o tipo de cultura musical não permitia a menor condição de expressão”, lembra o vocalista. “O espaço para a música pop, urbana e contemporânea era hostil e opressivo.”
Mergulhado na efervescência punk paulistana dos anos de 1980, Fred Rodrigues Nascimento virou “Zero Quatro” – inspirado num disfarce nos últimos dois algarismos de seu documento de identidade. O personagem, então estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), teve duas bandas anteriores, Trapaça e Serviço Sujo. Mas, com a Mundo Livre S/A, Zero conheceu Chico Science, Jorge Du Peixe e outros que integrariam a Nação Zumbi. Estava formado o embrião do movimento Manguebeat, gênero que mistura maracatu, hip hop, samba, rap, regionalismos e outras linguagens. Durante o papo, Fred falou das experiências musicais e do período determinante para a efervescência cultural que ganhou espaço em Recife, na década de 1990.
No berço punk
A Mundo Livre começou em 1984, mas antes tive a banda pós-punk Trapaça. Só depois dela, meu contato aumentou com o movimento punk da periferia de São Paulo. A referência da época eram as bandas Inocentes, Olho Seco, Cólera, que fizeram a coletânea Grito Suburbano [lançada na Alemanha pela Punk Rock Discos, 1982]. A Trapaça estava numa encruzilhada e se dissolveu na efervescência paulistana, dando lugar à Serviço Sujo. Naquele período, não havia internet, mas contávamos com uma rede de informação e militância punk, organizadas via fanzine.
O que mais me atraía no punk, inclusive no movimento de São Paulo, era a questão anarquista, da ação direta. A música nos organizava mais no sentido de grito político. Já em Recife, havia uma opressão exacerbada. Tínhamos como bagagem um tipo de cultura musical de instrumentos que não permitia a menor condição de expressão. O ambiente, mesmo na universidade – eu cursava comunicação na Federal –, era conservador. A cultura estava voltada para a música massificada pela grande indústria, como a lambada.
Por outro lado, existia a música regional, porque Recife sempre foi um polo aglutinador tanto do forró mais tradicional quanto do ritmo harmônico, intelectualizado e erudito. Mas o espaço para a música pop, urbana, contemporânea era hostil e opressivo.
No circuito nacional, eu curtia mais músicas alternativas pouco assimiladas pela grande indústria, a exemplo de Fellini. O rock brasileiro estava massificado nos anos de 1980. Diante desse aspecto, escolhíamos uma ou outra coisa, já que estava tudo pasteurizado. Havia muitas bandas pré-fabricadas estimuladas pela indústria. Os elementos de rebeldia e irreverência estavam industrializados.
Dentro da garagem
A Mundo Livre teve início como banda de garagem. Não tínhamos espaço para consolidar um público e garantir sobrevivência. Até a eclosão do Manguebeat [movimento musical surgido em 1991 no Recife], permanecemos pelo menos 10 anos na garagem. Depois tivemos contato com o Chico Science, então chamado apenas de Chico, com o Jorge [Du Peixe], e as primeiras experiências com o pessoal do Loustal e Lamento Negro, que viria a fazer a música do Mangue.
A partir daí, vislumbramos a possibilidade de uma cena alternativa na cidade, pois nos sentíamos, até então, como estranhos no ninho. Com a criação coletiva das bandas, surgiu o Viagem ao Centro do Mangue [festival de música, em 1991]. O evento, aliás, começou a ganhar visibilidade no circuito underground. Reuniu um pessoal que não tinha experiência e nunca tinha produzido profissionalmente. Não existia um palco para essa música alternativa. A galera precisou se organizar em rede, com apoio, abordagem e produção amadora. Mas o circuito foi cavado aos poucos.
Antenas e sinais
O Viagem começou a ganhar um público. E, antes de se tornar algo profissional, chamou a atenção de veículos de comunicação nacionais: a revista Bizz e a MTV Brasil, que nesse período procurava trazer uma linguagem nacional, ampliar a produção, sair do cenário paulistano e ir ao Norte e Nordeste. Havia figuras como Gastão Moreira e Nando Reis, que viajavam para fazer matérias comportamentais, não apenas musicais.
E quando divulgamos o manifesto do Mangue [intitulado Manifesto dos Caranguejos com Cérebro, de 1992], a emissora estava em Recife. Alguns profissionais, primeiro de São Paulo, e depois do Rio, ficaram interessados no movimento. As matérias começaram a ser veiculadas na imprensa. Não demorou, a Sony Music enviou um olheiro para assistir ao Abril pro Rock. Alguns holofotes e antenas do circuito industrial do Sudeste passaram a transmitir os sinais emitidos pela galera recifense. O primeiro Abril pro Rock potencializou esse momento.
Propostas
Tanto a Mundo Livre quanto a Nação Zumbi foram convidadas a reunir-se com a gravadora Sony Music. A Mundo Livre havia recebido outras propostas, inclusive do selo Banguela Records [da banda Titãs]. Pela Sony, fomos convidados a participar de uma coletânea que envolvia a nova música do Recife. Mas como tínhamos dez anos e material suficiente para gravar um álbum, preferimos fazê-lo com o Banguela.
Quando começamos, apenas eu sabia tocar. Não era virtuoso, mas tocava violão desde os doze anos e tinha noções de piano. Porém, nada sabia de bateria, baixo ou teclado. Formamos a banda com o espírito new wave e underground para aprender a tocar juntos. Como ensaiávamos com instrumentos muito precários, nunca tinha ouvido minha voz direito. Aprendemos a aperfeiçoar os trabalhos a cada disco. O som era amador, mas, mesmo assim, muitas ideias de garagem foram aproveitadas do primeiro ao quarto disco [Samba Esquema Noise, 1992; Guentando a Ôia, 1996; Carnaval na Obra, 1998; Por Pouco, 2000].
Questão de liberdade
A minha referência sempre esteve ligada ao punk e às bandas como The Clash, Inocentes, entre outras, como Gang of Four. Elas tinham uma mensagem politizada, ligadas à questão da cidadania. O próprio nome da banda Mundo Livre S/A se refere ao clima da Guerra Fria, do discurso do mundo livre. O conceito da banda nasceu com o espírito de ser pop e refletir as contradições da sociedade. E, nesse sentido, minha formação acadêmica influencia também na produção das letras. Na faculdade, militei no Diretório Acadêmico, ajudei a liderar movimentos de greves.
Atualmente, permaneço o mesmo, embora haja novas causas para a gente se engajar. Em nosso disco novo, por exemplo, a ser lançado, há reflexões sobre os paradigmas atuais e as contradições políticas. Como diria Tom Zé, essa maneira de pensar é um defeito de fabricação. Está no sangue, na estrutura e não há como se desvincular disso.
“Alguns holofotes e antenas do circuito industrial do Sudeste passaram a transmitir os sinais emitidos pela galera recifense”