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Entrevista

  

O filósofo e crítico literário fala das correntes modernistas, do regionalismo e das obras clássicas brasileiras


Partidário da perspectiva de que a cobertura cultural feita pelos grandes jornais atualmente carece de uma posição de vanguarda, o professor e ensaísta Benedito Nunes faz parte do seleto grupo de intelectuais da contemporaneidade que transita com tranquilidade entre o texto literário e o filosófico.

Professor emérito da Universidade Federal do Pará (UFPA), Nunes foi um dos fundadores da antiga Faculdade de Filosofia daquele estado. Ao longo de sua trajetória, de 80 anos, o filósofo e crítico literário foi um dos personagens que, com maestria, soube percorrer as regiões fronteiriças dos dois campos do conhecimento, sem abandonar o eixo de coesão entre esses universos.

No caminho, Nunes estabeleceu uma relação interdisciplinar, na qual as peculiaridades, inquietações e provocações inerentes tanto à literatura quanto à filosofia foram formando as diferentes linhas de diálogo. Não por acaso, ao anunciar neste ano o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra a Benedito Nunes, a Academia Brasileira de Letras classificou-o como “um estudioso capaz de construir pontes entre a interpretação do texto literário e a sondagem filosófica”.

Com uma extensa produção de ensaios e crítica literária e filosófica, Benedito tem entre suas principais obras O Drama da Linguagem, uma Leitura de Clarice Lispector, considerado um estudo pioneiro sobre a autora, publicado em 1966, e também Passagem para o Poético – Filosofia e Poesia em Heidegger, obra que lhe rendeu o prêmio Jabuti em 1987.

Sempre atribuindo uma sondagem filosófica à leitura do fenômeno literário, Benedito Nunes também se dedicou ao estudo de poetas, como Mário Faustino e Oswald de Andrade. Em entrevista à Revista E, o intelectual que fez dos livros a sua morada falou sobre modernismo brasileiro, literatura regional e a presença do mito em obras como Macunaíma.

Você é conhecido como um dos grandes filósofos e críticos brasileiros. E conseguiu ter esse reconhecimento mesmo morando fora do eixo Rio-São Paulo. Por que essa opção de continuar morando no Norte do Brasil, enquanto outros colegas seus vieram para cá?

Durante esses anos, eu formei uma biblioteca muito grande e, como não posso me mudar daqui – de onde eu estou falando neste momento – com os livros, mudei todos os recursos para poder escrever.

Então, é basicamente uma questão de tranquilidade por causa da sua biblioteca. Não tem a ver com continuar morando em Belém?

Minha casa fica, por acaso, em Belém. Eu me sinto bem na minha biblioteca, na minha casa. Além disso, Belém mudou muito. Atualmente, é uma cidade muito bem administrada. Mas, enfim, a administração é passageira, apesar de eu esperar que isso não mude e que fique cada vez melhor.

Quando se está fora do eixo Rio-São Paulo, as grandes questões culturais se tornam menos contaminadas pelas chamadas “panelinhas”?

Panelinha eu acho que existe em toda parte, só que umas são panelinhas competentes. Depende muito também da condição que você tem.

Grande parte dos escritores e intelectuais atuantes se encontra hoje no Rio ou em São Paulo. Essa distância faz com que você possa fazer um julgamento, uma avaliação um pouco menos “contaminada”? Isso ajuda mesmo ou você acha indiferente?

Eu acho que o fato de morar um pouco longe, no extremo Norte, que é considerado uma lugar longínquo, faz com que eu possa ter um ponto de vista menos confidencial. Talvez isso me dê, também, uma liberdade de julgamento, menos provinciano – porque mesmo vivendo na província, não me considero provinciano.

Qual a sua análise, por exemplo, acerca da cobertura cultural dos grandes jornais dessas capitais?

Eu sou de uma época em que essa cobertura era muito bem-feita, quase semanal. Os grandes suplementos costumavam ser os do Jornal do Brasil ou O Estado de S.Paulo, para os quais eu colaborei muito, de modo que eu sempre estive ligado a esses veículos do Sul do país. Eu tenho impressão de que os suplementos literários não são como eram na minha época.

Quando eu participava, principalmente no Jornal do Brasil, havia uma posição de vanguarda. Depois de um tempo, eu fui convidado pelo Décio de Almeida Prado para participar de O Estado de S.Paulo, onde fiquei por muitos anos. Muitas das minhas publicações têm sido coletâneas desses trabalhos publicados durante muitos anos na imprensa, sobretudo na paulista.

O trabalho de escritores como Márcio Souza, Milton Hatoum e mesmo o Vicente Cecim lhe agrada? Você acredita que eles sejam uma espécie de frutos do Norte brasileiro?

Não. Eu acho que são frutos da cultura brasileira. São pessoas também com muita mobilidade cultural, pessoas muito inteligentes, que têm uma visão muito larga, e não estreita ou bitolada.

Existe algum elemento regional, se é que é possível dizer isso, na literatura do Milton Hatoum?

O mítico de Dois Irmãos [romance de Hatoum, Companhia das Letras, 2000]. Na verdade, há um parentesco da literatura atual sob esse ponto de vista.

Por que acha que esse mítico é tão próximo, tão presente na literatura brasileira?

Essa presença do mítico vem de muito tempo. Basta ver, por exemplo,  Macunaíma, do Mário de Andrade.

Essa questão do mítico na literatura brasileira, na verdade, é muito influenciada pela Amazônia – como no próprio Mário? A Amazônia acabou fornecendo uma mitologia que balizou a literatura brasileira?

É mais ou menos isso. Mas nem toda a literatura. Muitas coisas vêm do Sul, do Sudeste, do Rio de Janeiro... Uma elaboração mítica muito mais extensa. É óbvio que existem focos amazônicos. A famosa viagem do Mário de Andrade para a Amazônia, que é uma coisa muito interessante. Isso teve uma importância muito grande na literatura brasileira.

Num certo momento, pode-se dizer que essa mitologia da Amazônia influenciou tanto a literatura brasileira? Seria porque naquele momento o Brasil estava procurando a feição de sua literatura?

Sim, mas depois essa busca ultrapassou as fronteiras de nacionalismo, aquela busca de modernidade da linguagem, Grande Sertão: Veredas... [refere-se ao clássico de João Guimarães Rosa, de 1956, cuja história se passa no sertão, sobretudo no norte de Minas Gerais].

Esse período de busca do Brasil na literatura brasileira já se encontra superado?

Isso não quer dizer que seja passado também. As realidades nossas do entorno, a região em que se vive, as convergências das fontes... As coisas aqui têm que ser de dentro e de fora.

Há sentido, ainda hoje, em se falar numa espécie de literatura brasileira, quando o mundo está cada vez mais globalizado?

A modernidade foi nossa equalização com as correntes mais promissoras. A qualidade é conquistada a cada momento. Sempre há uma contínua retomada.

Você acredita que hoje as pessoas estejam escrevendo da mesma forma, sem identidade?

Pode haver essa homogeneização, como se fosse uma repetição do novo. Mas mesmo assim, da procura do novo acaba ocorrendo uma repetição. Então, na verdade, todas essas estimativas, a procura do novo, a contemporaneidade, isso é cheio de esconderijos.

Mas, a seu ver, as pessoas estão escrevendo de uma forma igual hoje?

Muita gente escreve, mas nem todos são iguais.

Hoje, no entanto, não se fala mais de uma literatura de caráter regional.

Eu acho que uma literatura regional é importante como contorno vital para o escritor. Isso é uma coisa. Mas o regionalismo hoje não tem como existir. Assim, a literatura brasileira tem que se aguentar de diversas maneiras.

Existe uma literatura de fato brasileira, ou nós temos uma literatura feita apenas por brasileiros?

Eu acho que é melhor dizer que é uma literatura feita por brasileiros depois que a brasilidade já foi definida, já foi sugada nas nossas obras. Então, a literatura brasileira foi formada por brasileiros.

Você costuma se colocar de uma maneira muito radical, em lados opostos, como em relação, por exemplo, às ideias de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade. Considera-os assim tão antagônicos?

Sim, mas todos os povos contrários podem ser complementares. No conjunto, no modernismo há essa complementação. São duas mentalidades muito diferentes, mas que formam uma complementação fecunda.

Qual é a grande obra do modernismo brasileiro?

A grande obra do nosso modernismo é Macunaíma. Faz a grande fusão das lendas e dos mitos percorrendo o país de Norte a Sul. Isso é interessantíssimo. Parece que essa é uma viagem de conhecimento do próprio Brasil.

A proposta de Oswald de Andrade, por uma literatura antropofágica, ainda tem validade?

A antropofagia é um conceito complicado, já na época e justamente por essa discriminação. Estamos agora em uma fase de contemporaneidade. Há obras que sustentam esse vaivém da contemporaneidade, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e seu Memorial de Maria Moura... Acho interessantíssimo.

Como avalia esse período da literatura regionalista brasileira? Rachel, José Lins do Rego. Qual foi a qualidade desse movimento?

Acho que foi um momento que conseguiu encontrar essa raiz da modernidade. É ultrarregionalista. Isso coloca a região em outro plano, isso é que é interessante.

Falando do Graciliano Ramos, qual texto você considera que permaneceu como grande obra?

São duas obras: Angústia e Infância. Essa depuração do estilo é uma característica bem marcante.

O que a representação das mitologias amazônicas feitas na literatura, como em Cobra Norato, de Raul Bopp [poeta modernista e diplomata brasileiro,  1898-1984], dentro de um projeto de literatura antropofágica, diz a você? Como analisa o resultado?

Uma espécie de iniciação dos vários caminhos de modernidade no Brasil. Esse fundo mítico foi muito acentuado dessa transposição da modernidade no Brasil. Por acaso esse fundo mítico é muito amazônico. Acho que Macunaíma é o conhecimento in loco dessa região.

Cobra Norato lhe agrada ou não?

Gosto do poema não como um todo. Não gosto do conjunto.

Houve muita amizade entre você e Mário Faustino [poeta e crítico literário brasileiro, 1930-1962]. Depois de algumas décadas da morte dele, como você avalia sua poesia?

O Mário, nos momentos das vanguardas, sempre esteve muito ligado ao concretismo, mas não fez uma poesia vanguardista no contexto daquela época. Gostava, por exemplo, muito mais da poesia do que da crítica do Mário.

Hoje em dia se fala muito da indústria cultural, da ideia de que os escritores têm de produzir cada vez mais, e mais rapidamente. A cada dois ou três anos o escritor tem que lançar um livro. Considera que esse processo pode prejudicar a qualidade das obras?

Pode. Mas seria preciso mais exemplos, pois o que eu conheço da literatura atual não se enquadra nessa indústria.

Passados tantos anos do concretismo, da poesia concreta, qual foi a contribuição desse movimento para a literatura brasileira, para a poesia de forma geral?

Acho que Haroldo [de Campos, poeta brasileiro, 1929-2003] não ficou preso dentro do movimento que ele criou.

Qual seria a contribuição dos filósofos da sua geração à filosofia brasileira contemporânea?

Essa é a pergunta que mais perturba. Acho que a filosofia prospera quando se encontra com questões humanas. Essa união já é muito fecunda.

A união de filosofia e estética é um traço distintivo da sua geração, é isso?

Eu tenho impressão de que é uma tendência. Não podemos generalizar. Vamos dizer que atualmente há uma tendência não à estética, e sim à poética.

Um filósofo com uma visão cética da humanidade, como Schopenhauer [Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, 1788-1860], deveria ser mais lido hoje em dia?

Ele foi precursor, mas não teve ainda uma tendência sistemática, que foi o que aconteceu com Nietzsche [Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, 1844-1900].

Ainda no campo da polêmica, acredita que a Capitu (personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis) traiu ou não o Bentinho?

Se chegarmos a um acordo, matamos o romance. A traição é inerente ao romance.


“Durante esses anos, eu formei uma biblioteca muito  grande e, como não posso me mudar daqui com os livros, mudei todos os recursos para poder escrever.”


“Eu acho que uma literatura regional é importante como  contorno vital para o escritor. Isso é uma coisa.  Mas o regionalismo hoje não tem como existir.”



“A grande obra do nosso modernismo é Macunaíma. Faz a grande fusão  das lendas e dos mitos percorrendo o país de Norte a Sul. Isso é interessantíssimo. Parece que essa é uma viagem de conhecimento do próprio Brasil.”


“Acho que a filosofia prospera quando se encontra com questões humanas. Essa união já é muito fecunda.”