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Pronta para receber espetáculos de diversos países, a cidade de Santos transforma-se na sede da primeira edição do Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas – o Mirada
Banhada pelas águas do Atlântico, a cidade de Santos, no litoral de São Paulo, está prestes a se tornar um grande palco. Ela vai receber a primeira edição de um dos maiores eventos de teatro já vistos em terras brasileiras: o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos – o Mirada. Em cena, um conjunto de espetáculos representativo da pluralidade de gêneros e das diversas expressões culturais dos países da América Latina e países da Península Ibérica.
Para ter uma ideia da da mostra, o Mirada vai oferecer de 2 a 11 de setembro o panorama da produção teatral atual de 11 países, além do Brasil: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela. Entre os espetáculos, obras clássicas, de vanguarda, performances e pantomimas vão ocupar a unidade do Sesc Santos e diversos pontos da cidade – com o apoio da prefeitura municipal (veja detalhes no boxe Pluralidade em cena). “Proporcionar o encontro e a discussão de realidades raras ao teatro contemporâneo de países tão próximos, e ao mesmo tempo tão distintos, nos parece, neste momento, uma ação da maior importância", pontua Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo. "Diante das sensíveis transformações sociais e políticas no cenário internacional, a riqueza do festival se constroi precisamente de suas múltiplas e particulares formas de questionamento do lugar do homem no mundo", complementa Miranda.
Além das apresentações, estão previstas oficinas e conferências com mestres e artistas internacionais. "O intercâmbio entre as linguagens poéticas e estéticas é sempre bem recebido e enriquecedor para todos”, afirma o diretor Daniel Veronese, um dos representantes do país homenageado no festival: a Argentina (veja boxe Argentina, capital do teatro). “Há mais de 20 anos, tenho viajado para realizar intercâmbios na Europa, que nos oferece mais facilidade para mostrar nosso trabalho. Mas, quando temos a possibilidade de nos apresentar ao povo latino, encaramos como algo muito especial.”
Veronese vai trazer ao Brasil as peças Todos los grandes gobiernos han evitado el teatro íntimo (em português, Todos os Grandes Governos têm Evitado o teatro íntimo), Espía a una Mujer que se Mata (Espia uma Mulher que se Mata), e El Desarollo de la Civilización Venidera (O Desenvolvimento da Civilização Futura), nas quais mostram as relações humanas – além das semelhanças culturais dos países vizinhos. “As coisas que nos preocupam e nos fazem felizes são praticamente as mesmas”, destaca. “O resultado do Mirada será muito bom. Mas vou procurar falar não apenas do intercâmbio estético, mas do ser humano em si, pois acredito que os elementos que nos cercam são muitos e nos aproximam desse tipo de projeto.”
Contrastes e semelhanças
Elementos históricos e culturais, que permeiam os palcos dos países convidados, estarão também em cena e em discussão no Mirada (acompanhe algumas tendências usadas pelos grupos no boxe Por dentro do festival). Isso porque a proposta consiste em estimular a reflexão por meio de atividades formativas compostas de mesas de debates sobre temas relacionados ao teatro e à cultura ibero-americana. “Esse encontro é mais do que providencial, porque deve ser uma sentinela permanente sobre o quadro político, social e cultural ibero-americano”, destaca o diretor do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), do Sesc Consolação, Antunes Filho. “O encontro de diretores, atores e dramaturgos não é só interessante, mas fundamental para que se discuta também o caminho que o teatro pode tomar e o sentido de ele não correr o risco de ficar na forma pela forma, um teatro formalista”, enfatiza o diretor e dramaturgo, também confirmado na programação com o espetáculo Triste Fim de Policarpo Quaresma. “Considero o Mirada da maior importância e anseio em juntar-me a todos os companheiros das demais nacionalidades.”
A integração humana e cultural, ao aproximar as pessoas em torno dos palcos é, portanto, uma das finalidades do encontro. “O festival é importante porque trabalha com a integração do Cone Sul, principalmente, da América do Sul, e historicamente queremos que isso ocorra”, comenta o encenador Celso Nunes, defensor do teatro como um componente de agregação popular. “A natureza do teatro é de aproximar as pessoas e fazer com que elas reflitam juntas, pois a matéria do teatro é o fator humano”. Segundo Nunes, também ator formado pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP), está cada vez mais raro ocorrerem grandes festivais voltados ao teatro. E o Mirada tem o papel importante de quebrar essa ausência. “Transculturar está com tudo hoje em dia, sobretudo, para o Brasil, que tem a existência de um Tratado de Tordesilhas [acordo celebrado em 1494, entre o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para dividir as terras descobertas] cultural ainda não eliminado”, aponta o diretor. “O fato de o Brasil falar português cria esse Tratado de Tordesilhas com relação ao restante da América Latina. A mostra, então, revela diretores e, nesse sentido, a fusão gera interesses recíprocos.”
Linguagem e identidade
Pela primeira vez um festival no país poderá se debruçar com tamanha amplitude sobre conceitos histórico-sociais e elementos contemporâneos, que municiam a produção dos grupos e companhias. Redirecionar as lentes para o que tem sido produzido pelos países empolga os debatedores. “Acho extraordinário voltar a olhar para a América Latina, porque de alguma forma estivemos um pouco alheios na última década”, analisa a ensaísta e professora, formada em direção teatral na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Silvana Garcia. “O Mirada é uma iniciativa mais do que necessária, pois as curadorias têm a intenção de construir uma visão mais vertical e estabelecer contato com outros artistas, situação que ocorre ainda de forma aleatória”, teoriza. Haverá grupos centrados no regionalismo, mas também companhias que exibem uma linguagem mais universal. “Alguns grupos, como os portugueses, espanhóis e mesmo os argentinos, estão mais pautados na realidade europeia porque exploram uma identidade mais miscigenada com elementos universais”, aponta a especialista. “Enquanto o teatro brasileiro, entre outros latinos, procura dialogar com elementos da sua própria cultura.”
De acordo com a ensaísta, existe um “artevismo” [termo usado por Silvana para designar a mescla de arte e ativismo] e uma militância embutidos nos trabalhos das companhias. E essa característica seria mais evidenciada nos países cuja história social foi problemática. “Não temos como passar ao largo das questões sociais, ainda que isso não necessariamente implique a ideia de um teatro político e panfletário”, comenta Silvana. “Às vezes, os temas sociais passam por uma feição mais poética e não por um viés explícito.”
Resistência artesã
Considerado como uma vitrine dos trabalhos e das tendências a serem exibidos, o Mirada propõe o debate da atual situação do teatro, em tempos de assédio das tecnologias, o que poderia levar à perda de público. “O teatro numa sociedade como a nossa não é um produto em extinção, porque muita gente o faz. Mas há uma proliferação de outras mídias e, por isso, existe uma resistência com relação às mídias mais artesanais”, declara o diretor Samir Yazbek, da companhia Teatral Arnesto nos Convidou, curador de uma das mesas de debate. “O teatro precisa ser tratado para não morrer, razão pela qual o Mirada deve oferecer a oportunidade para pensarmos as artes cênicas e o seu público, porque percebemos uma inquietação técnica e estética muito grande que não tem ganhado espaço e relevância dentro da sociedade.”
Lote 77, que tem direção de Marcelo Mininno
Hecho em Perú, do grupo peruano Yuyachkani
“In On It” (Enrique Diaz)
Enrique Diaz é um dos nomes certos a compor a grade de programação do Mirada. O diretor vai apresentar no evento o espetáculo In On It, peça teatral conduzida por dois atores. Em síntese, trata-se de uma narrativa sobre um sujeito que morre, dois amantes cujo amor está terminando e dois homens que relatam o que se desenrola. Com texto de Daniel MacIvor, In On It obteve sucesso de público e crítica.
Alimento da alma
Com certeza a possibilidade do encontro no Mirada – seja para dirigir espetáculos em outros locais ou para participar de debates, palestras ou atividades práticas – é sempre muito interessante. O festival será oportuno no momento, porque eventos de teatro são raros ainda, já que eles dependem da presença física. Ter o contato com pessoas que fazem e discutem o teatro vai nos alimentar muito.
Algo a mais
O Mirada não será apenas uma vitrine, mas uma forma de aproximar as pessoas de novas ideias. Claro, a maioria das pessoas olha para o aspecto da apresentação dos espetáculos. Mas por ter curadores de outros festivais, avaliação crítica, intercâmbio, encontros teóricos e debates, o evento não ficará apenas centrado nas apresentações.
Diversidade
É possível mapear alguns elementos que estarão presentes no palco, mas a diversidade vai ser mais visível. No âmbito dos países ibero-americanos, isso tende a ter mais formatos, conteúdos que incluem milhares de oportunidades de produções. Eu particularmente não tenho interesse direto nesse mapa, mas tenho interesse mais real no que tem sido produzido. Se no Brasil produzimos coisas diferentes, a nível continental teremos mais ainda.
Pluralidade em cena
Espetáculos de mais de dez países promovem intercâmbio cultural nos variados palcos de Santos
O Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos – converge os olhares de 11 países, além do Brasil, ao mesmo foco: o intercâmbio entre culturas. Durante a realização do evento, 18 espetáculos internacionais e outros 12 nacionais serão apresentados ao público em palcos espalhados pela cidade e na unidade do Sesc Santos. O evento aproxima pela primeira vez grupos como o Teatro de los Andes e Grupo Malayerba (Bolívia), Trinidad Gonzáles (Chile), Mapa Teatro (Colômbia), Animalario (Espanha), Teatro de Ciertos Habitantes (México), Grupo Cultural Yuyachkani (Peru), Cia Complot (Uruguai), além de outros de Portugal e Argentina. As apresentações serão em vários locais de Santos, como no Teatro Coliseu, Teatro Guarany, Casa da Frontaria Azulejada, Praça Mauá, Boulevard da Rua XV de Novembro, Praça dos Andradas.
Companhias brasileiras de diversos estados também marcam presença, a exemplo da paulista Mundana de Teatro, da companhia carioca Físico de Teatro, da Teatro Nu Escuro (GO), Oi Nóis aqui Traveiz (RS) e Imbuaça (SE).
A 1ª edição do Mirada pretende flagrar a pluralidade de pesquisas e linguagens da arte cênica ibero-americana atual e mobilizar artistas para um intercâmbio de repertório. Um dos motivos da escolha da cidade para sediar o evento, inclusive, foi o seu contexto histórico: o Porto de Santos também pode ser considerado um símbolo da união com a cultura ibérica.
Fazem parte do conselho diretivo e curatorial do festival: Danilo Santos de Miranda (Diretor Regional Sesc São Paulo), Pepe Bablé (diretor Artístico do Festival Ibero-Americano de Cádiz), Isabel Ortega (do Conselho Diretivo do Instituto Internacional de Teatro do México) e Ramiro Osório (diretor do Teatro Julio Mario Santo Domingo, de Bogotá).
De Monstros Y Prodigios, do grupo mexicano Teatro de Ciertos Habitantes
“O Idiota - Uma Novela Teatral” (Cibele Forjaz)
Inspirada no grande clássico O Idiota, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, a obra homônima da encenadora Cibele Forjaz marcará presença no Mirada, com a companhia Mundana de Teatro. Para a concepção do espetáculo, que ocorre em três noites diferentes, o grupo se debruçou durante dois anos sobre o clássico. “O público volta no dia seguinte sedento pela continuidade da história”, comenta a diretora, que aproximou a obra do russo do universo da telenovela. Forjaz também fala do festival e da experiência de fazer teatro.
Ponte da cultura
É muito importante esse tipo de festival, porque temos pontos históricos e de cultura em comum – tanto entre os países Portugal e Espanha quanto entre os países latino-americanos. Existe uma ponte cultural fortíssima. E, no entanto, temos poucos festivais que fazem essa junção entre espetáculos nacionais e internacionais, com foco na cultura ibero-americana. O festival é muito bom, porque vem ao encontro da reflexão de forma calorosa e da troca de informações artísticas.
História semelhante
O festival permite que uns possam ver os trabalhos dos outros. Mais do que estar na vitrine, há um espaço de troca de influências e de conhecimento sobre teatro. Uma ponte cultural, uma integração que tem tudo a ver com a nossa história e a deles. Apesar da proximidade cultural, entre países como Portugal, Espanha e latinos, não temos um festival assim. Conhecemos muito pouco o teatro latino, embora estejamos próximos.
Olhar o outro
Quando a gente vê o trabalho do outro, é possível perceber o tipo de trabalho ou tipo de pesquisa, criação, formatos e procedimentos que foram usados nos espetáculos. A importância do Mirada é justamente em conhecer e depois discutir as semelhanças e as diferenças. Nós tínhamos esse contato na década de 1960, mas com o tempo ele se diluiu. E será ótimo que possa haver essa retomada cultural.
“Vida” (Marcio Abreu)
O diretor Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, tem presença confirmada nos palcos do festival Mirada. Ele apresenta a montagem Vida, que, apesar de não reproduzir nenhum trecho das obras de Paulo Leminski, conta com texto feito a partir da experiência de leitura e de convivência criativa com composições do autor curitibano. O espetáculo mostra quatro personagens exilados em uma cidade imaginária, ambiente que lhes permite a revelação de comportamentos, relações, conflitos e histórias. Marcia fala da expectativa do evento e da dramaturgia brasileira.
Campo de discussão
Hoje no Brasil, a dramaturgia é potencializa a discussão não só sobre o teatro, mas sobre o homem moderno. A dramaturgia é um campo muito aberto para inovações, em que é possível pensar novas formas de contato da arte com o público. E a discussão ao redor da dramaturgia cria um espaço robusto para reflexão e ação artística.
Sintoma da década
Acho que o Mirada traz um reflexo do movimento e do sintoma que ocorre nos últimos dez anos, em que companhias, grupos e coletivos se fortalecem por meio de ações com intercâmbios. Nossa companhia, por exemplo, tem na sua trajetória diversas ações de trocas de experiências com outros artistas, inclusive artistas de outras áreas. Esse diálogo constante e a possibilidade de interação são fundamentais para desmistificar o tamanho do nosso trabalho, do alcance social e da militância que podemos ter.
Dizer e ser
A dramaturgia é o campo de reflexão do teatro. Mais do que dizer, o teatro investiga a maneira de dizer algo. Essa é a principal questão e acho que essa investigação está presente – sobretudo nos grupos, nas companhias desse evento. O teatro pode ser uma pessoa no palco e outra na plateia. A dimensão humana no teatro é o que há de mais novo e mais de vanguarda.
Urtain, adaptação da vida do boxeador José Manuel Urtain encenada pela espanhola cia. Animalario
Argentina do teatro
Berço de diversos expoentes do teatro latino-americano, o país é homenageado no Mirada, com a presença de cinco representantes, entre eles o premiado Daniel Veronese
Daniel Veronese
Para celebrar a primeira edição do Mirada, a produção teatral argentina foi escolhida a receber homenagens. Com isso, o festival vai contar com grandes realizadores do país, como Claudio Tolcachir, Diego Lerman, Lía Jelin e María Meentre, além de Marcelo Mininno, do espetáculo Lote 77, e o diretor Daniel Veronese – um dos mais respeitados dramaturgos e diretores da atualidade. Os dois últimos comentam a produção cênica em ascensão na Argentina, mesmo diante da crise pela qual passa o país, e falam da expectativa do evento em Santos. A seguir, trechos:
Marcelo Mininno é professor da Escola de Artes Dramáticas da Cidade de Buenos Aires (Escuela Metropolitana de Arte Dramático - Emad) e ganhou o importante prêmio Family Podestá quando se formou como ator em 2001. Participou de vários festivais internacionais e nacionais, nos quais angariou outros prêmios. Com o espetáculo Lote 77 (foto), Marcelo desempenhou o primeiro trabalho como dramaturgo e diretor, sendo premiado na categoria Revelação Florencio Sánchez (2008). Também recebeu o prêmio Nominación Teatro XXI (2008), pela melhor obra dramática e melhor autor argentino atual.
Missão 77
O Lote 77 foi constituído em março de 2007, quando nos reunimos para investigar o teatro sobre dois temas: a construção da masculinidade e uma abordagem para o desenvolvimento rural. Ou seja, pensamos sobre as construções sociais e culturais e procuramos contribuir para a implementação de políticas para a nossa sociedade. A obra estreou em maio de 2008, com o objetivo de levar ao público as questões e fatos históricos mais importantes dos últimos 30 anos na Argentina.
Oferta de espetáculos
Na Argentina, os temas são variados e se concentram em dramas nacionais, como política, história e reconstrução social. Há muitas escolas de teatro, tanto que sou professor de atuação na Emad. Atualmente, as academias refletem sobre as artes cênicas, que formaram um polo de crescimento e uma base a ser explorada. Os estudantes, após se graduarem, formam seus próprios grupos, fazem novos espetáculos e se desenvolvem no cenário. Acredito que dentro da América Latina, sempre tivemos a necessidade de expressar os nossos costumes, nossa história, para mudar os traços negativos e desenvolver uma sociedade mais livre.
Enriquecimento cultural
Estamos lisonjeados com a nossa participação no Mirada. Todos vão enriquecer com esse intercâmbio cultural, não só as instituições envolvidas no evento, mas também as pessoas ligadas à produção cênica e o público em geral. É sempre um prazer trocar ideias, trocar experiências e ver obras teatrais de outros grupos. Acreditamos que é um ponto integrante do crescimento artístico e social. Tivemos a sorte de viajar muito e visitar outras culturas. Os festivais internacionais têm sido produtivos. Temos sido capazes de entregar à sociedade um pouco da nossa arte. E isso nos faz sentir vivos.
Daniel Veronese começou a carreira como ator e mímico. Iniciou um trabalho com teatro de objetos, o que o levou a fundar, em 1989, a companhia El Periféricos de Objetos. É autor de mais de 20 títulos e diretor de mais de uma dezena de espetáculos, por meio dos quais questiona a linguagem e o texto dramatúrgico. Recebeu numerosos prêmios, entre os quais se destacam El Segundo Premio Nacional e o Primer Premio Municipal de Argentina, os dois em dramaturgia.
Polo cênico
Creio que Buenos Aires tenha se transformado em uma cidade na qual se encontra muita variedade de teatro, com um público frequentador expressivo e com obras que se mantêm muito tempo em cartaz. O teatro de Buenos Aires tem uma proposta especial, pois concentra importantes produções, tanto independentes quanto comerciais. No meu caso, procuro trabalhar com esses dois lados que movem a produção. Não saberia, no entanto, precisar onde a história do teatro argentino começa. Mas, comparado com outras culturas, não temos muito tempo de desenvolvimento, embora a dramaturgia esteja crescendo e se consolidando.
Na casa ou no bar
Talvez as peculiaridades mais marcantes do teatro na Argentina façam referência à produção independente, pois o teatro tem lugar em qualquer casa, em bares, teatro pequeno, às vezes sem o conforto de uma sala. Apesar da crise econômica mundial recente, vimos atores colocarem seu próprio dinheiro no trabalho, muitas vezes sem recuperá-lo. Esse espírito que vigora nos períodos de crise impediu a diminuição da produção teatral. Ou seja, o público respondeu à fase à altura. Os bancos ficaram com o nosso dinheiro, e só podíamos obter alguns bilhetes por semana. Mas muitas pessoas, com o pouco valor que tinham em seus bolsos, compravam seu ingresso e não deixavam de comparecer ao teatro.
Festival em Santos
O intercâmbio entre estética e poesia é sempre bem recebido, além de enriquecedor para todos. Nem sempre temos a possibilidade de viajar pela América Latina, e a hospedagem é especial. Infelizmente sei muito pouco do teatro brasileiro. Mas conheço dramaturgos importantes, como Antunes Filho e Nelson Rodrigues. Os espetáculos que ocorrem, porém, em grande escala, são praticamente desconhecidos em nosso país. Acho que o Brasil importa mais do que exporta teatro. A minha pouca experiência de dirigir atores, no Brasil, [como ocorreu no espetáculo Gorda, no qual dirigiu a atriz Fabiana Karla e Michel Bercovitch] foi positiva, porque trabalhei bem à vontade.
Por dentro do festival
Conheça parte do que poderá ser visto em setembro durante o Mirada
O desenvolvimento da civilização FUTURA (Argentina)
O aclamado diretor argentino Daniel Veronese apresenta três peças no festival, entre elas a El Desarollo de la Civilización Venidera (em português, O Desenvolvimento da Civilização Futura), uma adaptação da tragédia Casa de Bonecas do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). A peça, escrita em 1879, deu ao autor fama instantânea, devido à crítica profunda do casamento burguês. Nora, a heroína, deixa o marido e os filhos depois de se tornar consciente do papel humilhante que ocupa em sua própria casa. Desse ato resulta uma série de conflitos dentro da família e algumas questões existenciais de Nora.
Triste fim de Policarpo Quaresma (Brasil)
O espetáculo de três atos, adaptado pelo diretor brasileiro Antunes Filho, reúne de forma emblemática o complexo nativista e ufanista do começo da República no Brasil. O protagonista é o anti-herói Policarpo Quaresma, símbolo da devoção à questão nacional. Adaptação do romance escrito por Lima Barreto em 1911 é encenada pelo Grupo Macunaíma de Teatro.
Lote 77 (Argentina)
Dirigido pelo novo representante da cena teatral argentina, o jovem Marcelo Mininno, faz a reflexão sobre três homens que investigam as tarefas da criação, seleção e classificação de gado para a venda. No processo, eles terão de enfrentar a delicada tarefa do próprio reconhecimento. O espetáculo é o resultado de uma profunda pesquisa desenvolvida entre o elenco e o diretor em dois temas principais: tarefas rurais da agricultura e a construção da masculinidade.
A Odisseia (Bolívia)
A obra clássica do poeta grego Homero, A Odisseia, é transportada para o palco do Mirada pela companhia boliviana Teatro de los Andes. O espetáculo, que tem a direção de Giampaolo Nalli, aborda vários temas expostos por Homero, como guerra, liberdade, paixão, amor, fidelidade, a luta da família, a busca do pai e vingança e guerra.
Os Santos Inocentes (Colômbia)
O espetáculo, do grupo colombiano Mapa Teatro, conta a história dos homens que se chicoteiam todo ano, no dia 28 de dezembro. A data, conhecida como Los Santos Inocentes é celebrada em festa pela população, em sua maioria de ascendência africana. Para quem não conhece, o dia poderia ser entendido como um massacre.
A razão blindada (Equador)
La Razón Blindada, da companhia equatoriana Malayerba, é baseada no personagem Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. A peça, dirigida por Arístides Vargas, apresenta dois presos políticos, sob pressão de circunstâncias emocionais e físicas, que se reúnem todo domingo à noite para contar a história de Dom Quixote e Sancho Pança. O abuso, a tortura, a impotência martelam o corpo e a mente daqueles que estão nas mãos da injustiça.
Urtain (Espanha)
Andrés Lima, diretor da companhia espanhola Animalario, apresenta a peça adaptada da vida do boxeador José Manuel Urtain (1943-1992), que cometeu suicídio após ser acometido por uma intensa depressão quando se aposentou. A metáfora da obra mostra a luta de um jovem pela verdade com o mundo. A cena passa pelo tempo do regime de Franco na Espanha até o marco dos Jogos Olímpicos de Barcelona 92.
De Monstros e Maravilhas (México)
O grupo mexicano Teatro de Ciertos Habitantes apresenta a encenação de teatro de ópera De Monstruos Y Prodígios. O público é levado por três séculos decorridos desde o barroco à tecnologia do século 20, quando a beleza foi aniquilada pela razão. A peça é dirigida por Claudio Valdés Kuri.
Feito no Peru (Peru)
Hecho en El Peru é a montagem do grupo peruano Yuyachkani, com mais de 30 anos de experiência artística. Concebida e dirigida por Miguel Rubio Zapata, a peça leva o público aos delírios, às cores, à história e à identidade peruana, que não deixa de ser, em certa parte, uma síntese do mundo latino-americano.
Minha Boneca (Uruguai)
Mi Muñequita da companhia uruguaia Complot, vai mostrar no palco do Mirada a história de uma menina que age de acordo com um ambiente familiar opressivo. O espetáculo, dirigido pelo também ator Gabriel Calderón, apresenta um grito final, o desespero de uma geração que nasceu num ambiente de falta de liberdade. ::