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por Maria Alice Oieno de Oliveira Nassif
Aparece na telinha o Kiefer Sutherland circulando agradavelmente num carro, mergulhado em conforto, boa música e paz, uma calma impressionante - sobretudo para quem se lembra da imagem, oposta a essa, de seu personagem Jack Bauer, estressadíssimo 24 horas por dia num seriado de TV. De fato, estar dentro de um carro, ainda mais que proporcione tais condições, é hoje um objeto de desejo de qualquer morador da cidade barulhenta, poluída sonora, visual e atmosfericamente, ora poeirenta, ora inundada... Isso sem falar no aspecto do medo, um tanto real e tão largamente veiculado e explorado pela mídia. Insulfilm, blindagem... carro-armadura contra todos os dragões na cruzada diária. O carro já não se restringe mais ao meio de locomoção. Trata-se de um refúgio a que nos recolhemos, às vezes por horas, mesmo que a distância percorrida seja de uns poucos quilômetros. Isso se vende facilmente, delirantemente.
O prolongamento do humano, que consegue fazer este superar as dificuldades que sua condição humana lhe impõe. Não existe mais lugar na cidade para tantos e tantos carros-armaduras-refúgios. E só 30% dos paulistanos circulam de carro próprio. E 40% do solo urbano é ocupado por vias de trânsito de veículos... Ônibus, metrôs e trens, além de insuficientes, muitas vezes não oferecem a mínima dignidade para quem precisa se deslocar por distâncias maiores do que as pernas, o fôlego e o tempo disponível suportam. E mesmo de carro o tempo ficou pouco para ir e vir nesta terra superlotada. Esta cidade vive a angústia cada vez que um de seus filhos vai de um lado para outro. Uma disputa constante para ver quem consegue manter a cabeça acima da superfície afogadora. Disse, numa palestra, o professor pesquisador Paulo Saldiva, que estuda aspectos da poluição na cidade: "Nós nos protegemos das péssimas condições de saúde que nos são oferecidas pelo Estado submetendo-nos a planos de saúde privados, da insegurança construindo condomínios equivalentes às fortalezas medievais, da falta de transporte público decente comprando carros, e assim por diante". Os que podem, contornam os problemas, os que não podem, apenas sofrem.
E não se consegue atacar os problemas de forma a garantir que a cidade cumpra seu destino: a cidade, que nasceu da necessidade humana, essencialmente humana, do encontro, da relação, tornou-se um estranho amontoado de indivíduos desconfiados e irritados uns com os outros e resignados à existência urbana nessas condições. Dá a impressão (impressão?) de que estão disputando e não convivendo num mesmo espaço. Cadê a rua do encontro? A praça, o boteco, a porta da escola, o ponto de ônibus, a rua cheia de lojas onde no balcão se dava bom-dia... Lugares-comuns, da vida em comunidade, do espaço e do interesse compartilhado. O teatro, a biblioteca, o acesso a tudo isso? Templos e mais templos confinam e restringem esse acesso a poucos grupos, sob controle. Muita correria e ao mesmo tempo muita frustração. Raras vezes as agendas são cumpridas totalmente. Falta tempo. Falta encontro de pessoas.
Foi para isso que os humanos inventaram as cidades, não foi? Para aproximar, para facilitar o acesso aos serviços de todos os tipos, para enriquecermo-nos uns aos outros. Há que ser recuperado o sentido disso tudo. Solidariedade não é uma palavra do jargão assistencial apenas, ela deve fazer parte do sentido da convivência, elemento inerente à vida na cidade. São Paulo tem gente do país inteiro, do mundo inteiro, o que lhe confere um potencial de convívio e enriquecimento sem precedentes na história da humanidade. Na história podemos talvez encontrar o fio da meada, o que foi que fez desta Paulicéia o burburinho incessante e hoje quase imobilizante de gente e coisas. Ai, que saudade da minha terra, da gente da minha terra... eu, que nunca saí daqui, já nem sei onde eles estão. •
Maria Alice Oieno de Oliveira Nassif, bióloga e educadora, é gerente adjunta de programas socioeducativos do SESCSP.