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Encontros

por Federico Croci
As figuras encontradas nos livros de história marcaram presença na transformação do mundo por terem realizado feitos notáveis e que as destacaram da multidão. A Roma de César, a Rússia de Lênin, a França de Napoleão... No entanto, vem se descobrindo que a história dos comuns também guarda a passagem do tempo. É o que prova o trabalho do historiador Federico Croci, professor da Universidade de Gênova, na Itália, atualmente lecionando na Universidade de São Paulo (USP).
Ele se dedica a vasculhar o baú dos anônimos, dos não-heróis, dos liderados em vez dos líderes. "Os historiadores estão acostumados a fazer história com as cartas dos reis, dos imperadores, dos prefeitos, com as cartas dos personagens políticos, dos intelectuais, de gente profissional, mas não com o relato de gente que nunca teve voz", afirmou o também diretor do Laboratório de Estudos de Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer), ligado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em conversa com o Conselho Editorial da Revista E. Tendo como principal foco os movimentos migratórios da Itália para a América Latina de 1878 a 1978, Croci encontrou nas correspondências domésticas "um universo comunicativo altíssimo", que traz os fatos descritos nos livros de história relatados por quem os viveu na pele. É um intercâmbio de informações que falam sobre o custo de vida, o mercado de trabalho, "o mercado dos salários, como estava indo a situação comercial do país e assim por diante".
A seguir, trechos.
Imaginava-se que o processo migratório começava em um país e terminava no outro - ou com o indivíduo voltando ao país de origem. Mas não é isso. Muitas vezes o movimento é circular. Por exemplo: no final do século 19, havia uma intensa circularidade em toda a região do Plata, que fica entre Buenos Aires e Montevidéu. Na época, abrangia parte do Brasil - consideravam que a região do Plata chegava até o Porto do Rio de Janeiro. Quando a situação estava melhor no Rio, migrava-se para lá. Quando piorava, as pessoas voltavam para Buenos Aires, ou iam para São Paulo - onde tinha o café etc. Todos os cálculos para entender o número total de imigrantes tiveram origem basicamente no estudo do que estavávamos acostumados a chamar cadeias migratórias, mas já não são mais cadeias. São redes sociais que os migrantes implantaram. Um estudo comparado que a gente fez entre as migrações históricas e as contemporâneas - um dos fenômenos de maior relevância política, econômica e cultural para a Europa agora, não só para ela, mas lá, em países como Itália, esse é um fenômeno relativamente novo - revelou como essas redes sociais têm coisas em comum. Há muita diferença entre os migrantes do século 19 e os do começo do século 21 - os migrantes atuais -, mas há muitas coisas similares.
Alfabetização da Itália
Há relatórios do Congresso italiano, já no começo do século 20, nos quais se diz que uma das coisas que mais contribuíram para o desenvolvimento da alfabetização na Itália - na época, país com um dos índices de alfabetização mais baixos da Europa Ocidental, só a Espanha estava em piores condições - foi exatamente o fenômeno migratório. As famílias camponesas começaram a mandar os filhos para a escola, para que eles aprendessem a ler e a escrever em virtude das cartas que chegavam da América e que eram respondidas depois. Não tinha outro jeito. A primeira vez pedia-se ao padre, depois ao prefeito, ao amigo do prefeito, enfim... Além disso, eram cartas íntimas, tinham de ser lidas pela família.
Por isso, às vezes, era o filho mais novo que lia a carta para a família inteira reunida ouvir as notícias da América. E, do mesmo jeito, as notícias da Itália vinham para a América. Havia um intercâmbio de informações e um universo comunicativo altíssimo, que tratava do custo de vida, do mercado de trabalho, do mercado dos salários, de como estava indo a situação comercial do país e assim por diante. Coisas como: "Agora chegou o momento de vir, a situação está boa". Ou então: "Não, aguarda um pouco, não é o momento". Isso construiu uma rede de informações escrita por camponeses, operários, por gente comum. Foram necessários mais de 20 anos de trabalho para valorizar as fontes orais na historiografia. A chamada história oral, como entrevistas, era considerada uma fonte menor. Hoje se vê que não há somente fontes orais, mas também escritas. A gente pensava que os camponeses ou operários não escreviam. Não só escreviam como escreviam muito mais do que, digamos, se imaginava. É possível verificar isso em épocas como a das guerras, por exemplo. Já na Primeira Guerra Mundial [de 1914 a 1918] há um fluxo intenso de cartas.
Um século de histórias
O fenômeno migratório da Itália durou cerca de um século, mais ou menos de 1878 a 1978. Durante esse período de migração de italianos para o mundo inteiro, dentro da Europa e em outros continentes, aproximadamente 28 milhões de pessoas deixaram o país. Em meio a essa circulação toda, nem se pode contar quantas cartas foram intercambiadas. Por isso, não é possível fazer um trabalho de pesquisa serial sobre as cartas, mas sim um trabalho de pesquisa qualitativa. São verdadeiros testemunhos. Os historiadores estão acostumados a fazer história com as cartas dos reis, dos imperadores, dos prefeitos, com as cartas dos personagens políticos, dos intelectuais, de gente profissional, mas não com o relato de gente que nunca teve voz. No melhor dos casos, consideram esses fragmentos de vida como um testemunho folclórico, ou um aparato decorativo do seu discurso historiográfico. É muito difícil que se considere a carta da bisavó como uma fonte documental de primeira importância. E, na verdade, analisando esses documentos, foram revelados muitos aspectos desconhecidos do fenômeno migratório. Ou, ainda, foi possível confirmar outras teorias, como a dos movimentos circulares dentro das migrações.
Exportação de mão de obra
Foi um verdadeiro mar de palavras que cruzou o oceano, de um lado a outro. Agora há a internet e o telefone, fica tudo mais fácil, mas antes era muito complicado. O mar de palavras é a resposta à necessidade de comunicação, de manter os laços com o próprio mundo, a própria comunidade, a própria identidade. Antigamente, quando os navios estavam por partir, os emigrantes costumavam ter na mão um fio de lã, cuja ponta oposta os seus familiares no cais seguravam até o último momento. O vapor se afastava e os fios de lã se rompiam: tratava-se de um gesto ritual com uma carga simbólica paradigmática. Os migrantes, muitas vezes, passam a vida inteira tentando juntar as pontas daqueles laços que se cortaram na saída dos portos. As cartas testemunham esse esforço, essa tarefa impossível de reconstruir o que as migrações mudaram definitivamente. Esses documentos são muito frágeis.
Porque na oralidade a palavra é viva, já a escrita é praticamente uma sentença de morte para si própria, a palavra morre quando é escrita. Mas aí há a possibilidade de essa palavra ser transmitida no tempo e no espaço, o que é extraordinário. E fazer pesquisa nesse sentido no Brasil é um privilégio incrível porque, do ponto de vista das migrações, é um excelente laboratório: foi construído com base no deslocamento das pessoas, começando na escravidão dos assim chamados negros da terra, os índios, que foram escravizados e levados de um lado a outro do país, eram migrações forçadas; depois o tráfico de escravos africanos, outra migração forçada. Até o que aconteceu com as migrações da Europa e da Ásia, e tudo que foi desenvolvido de política migratória. Depois disso, o Brasil virou um país exportador de mão-de-obra, mas ainda hoje é um destino escolhido pelos imigrantes dos países andinos. •