Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Entrevista

REVISTA E - MARÇO 2008



Sérgio Adorno
O professor e sociólogo analisa a violência no Brasil



Além de coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o sociólogo Sérgio Adorno tem um vasto currículo. Em 1974, formou-se em ciências sociais pela USP, e concluiu o doutorado em sociologia pela mesma universidade, em 1984. O pós-doutorado veio em 1995 - pelo Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales, em Paris, França. Com a defesa da tese A Gestão Urbana do Medo e da Insegurança (Violência, Crime e Justiça Penal na Sociedade Brasileira Contemporânea) obteve o título de livre-docente, em 1996, pela USP. É também coordenador da cátedra Unesco/USP de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância. Durante a conversa com a Revista E, Adorno falou sobre a relação entre pobreza e violência, analisou a questão da descriminalização das drogas e abordou o filme Tropa de Elite, de José Padilha. "Não quero transformar o debate em uma guerra entre bandidos e mocinhos", comentou a respeito da conduta da polícia e dos criminosos mostrada por Padilha nas telas. A seguir, trechos.



A sociedade brasileira é violenta? Estamos enganados com essa história de que o brasileiro é cordial?

O mito da cordialidade já foi contestado há muito tempo. Chego a defender o argumento de que você pode até escrever a história social da sociedade brasileira como a história social e política da violência. A violência sempre foi um recurso utilizado nas relações de dominação e de mando - seja nas fazendas, na vida doméstica, seja no plano da vida política. Veja, por exemplo, que os movimentos de rebelião popular sempre foram muito contidos com o uso de uma violência extrema, não se pouparam vidas.

Durante o século 19, todos os movimentos sociais de raízes populares foram reprimidos com muita violência, como a Sabinada [rebelião autonomista ocorrida na Bahia, de 1837 a 1838, que chegou a proclamar uma república baiana] e a Balaiada [revolta de caráter social ocorrida entre 1838 e 1841, no interior do Maranhão]. Na vida doméstica, o modo como se tratavam os escravos, as crianças, as mulheres e os desafetos sempre foi com o emprego de muita violência. Há uma extrema violência ao lidar com as diferenças, quando você tem de lidar com conflitos, com interesses opostos. Ou seja, a gente pode dizer que há um lastro de violência tanto na cultura quanto na política brasileira.

Mas não acho que seja só isso. É claro que há manifestações de solidariedade. Não gosto de usar o conceito de cultura da violência como se houvesse uma cultura à parte da cultura geral. Sabemos que, cientificamente, isso não ocorre. Existem traços de cultura que, de alguma maneira, estão associados a outros traços de cultura. Uma espécie de sincretismo.


Podemos creditar a violência que permeia a sociedade brasileira à maneira como se deu nossa colonização? Por exemplo, os portugueses escravizaram índios e negros com uma atitude extremamente violenta.

Certamente a escravidão deixou marcas. Por que se lidou com o escravo com muita violência? Porque o escravo era coisa, não era pessoa, era mercadoria. Por isso, a idéia de que você decide o que quer fazer com a mercadoria, se quer dispor dela produtivamente ou improdutivamente. Resgatar a dimensão de humanidade dos escravos é uma tarefa cultural imensa da sociedade. Mas claramente não conseguimos resultados dos mais adequados porque ainda há desigualdade entre brancos e negros.

Não acho que a gente deva descartar as heranças escravistas, mas o argumento da herança colonial também é perigoso. Primeiro, porque, no momento em que se diz que [a violência] tem causa nas nossas heranças, reforça-se o argumento da história como algo congelado no tempo. A história aconteceu lá e continua acontecendo hoje. Por mais que as nossas heranças pesem, elas são atualizadas, são reinterpretadas. Não dá para você achar simplesmente que a herança explica tudo. O problema é que a sociedade brasileira construiu um Estado que, durante muito tempo, foi de proteção das classes proprietárias contra o resto da população. Vivemos em uma sociedade de fundo conservador, uma sociedade com muitas dificuldades de promover rupturas.


Você acha que o brasileiro tem um caráter acomodado? Por exemplo, critica-se que quase não houve reação da população ao golpe ocorrido em 1964, responsável pela instalação da ditadura militar no país.

Como sociólogo, tenho uma enorme dificuldade de falar sobre o caráter nacional brasileiro. Há um clássico estudo do professor Dante Moreira Leite, daqui da USP, que é um livro chamado O Caráter Nacional Brasileiro [a obra ganhou uma edição em 2003 pela Unesp]. Nesse livro, ele questiona essa imagem de que o brasileiro é mais cordato, mais contemporizador - de alguma maneira isso está na literatura, no senso comum, na imprensa. Há brasileiros e brasileiros. Por exemplo, ser brasileiro no Sudeste é muito diferente de ser brasileiro no Nordeste ou no Norte, ou ser brasileiro branco é diferente de ser brasileiro negro.

Então, é difícil dizer o que é o Brasil. Acho que é preciso entender que, provavelmente, o golpe tenha matizes muito diferentes. Tradicionalmente, a sociedade brasileira não é uma sociedade polarizada entre duas grandes tendências, de direita e de esquerda, como aconteceu no Chile ou na Argentina. Você tem matizes na direita, na esquerda e um grande centro. Você pode dizer que, desses matizes, houve uma parte da sociedade brasileira que protestou mesmo. Mas foi cassada, foi expulsa do espaço público, muitos foram perseguidos politicamente e tiveram suas mínimas garantias constitucionais suspensas. E também houve uma parte que, de alguma maneira, ficou em silêncio. Acho que a gente tem de pensar que o cenário não era homogêneo.


Alguns de seus textos chamam a atenção para a seguinte pergunta: há uma dificuldade no Brasil em se cumprir a lei dentro do Estado democrático?

Há uma dificuldade histórica no Brasil em reconhecer a lei como instrumento de bem comum. Acho que houve, historicamente, uma identificação da lei com o domínio de classe, o domínio dos proprietários, dos poderosos. Mas creio que isso está em processo de mudança, embora seja mais visível em algumas áreas e menos em outras. O critério de aplicação das leis e da punição é o seguinte: as leis têm de ser universais. Mas crimes como os do colarinho-branco têm um tratamento diferenciado dos crimes cometidos pelos cidadãos de baixa renda, por exemplo. Quando a lei não é universal, os cidadãos tendem a reconhecer que ela não é igual para todos, então prevalece o poder do mais forte. Se você não se sentar à mesa de negociação através dos seus representantes e disser: "A lei tem de ser igual para todos e todos têm de estar submetidos aos mesmos rigores dela, sejam ricos, pobres, brancos ou negros", é difícil tentar começar uma discussão sobre uma política de segurança e de aplicação das leis justa e reconhecida como legítima. Quando olho algumas outras experiências do mundo ocidental, vejo que houve muitas lutas para o reconhecimento de que a lei era para conter arbitrariedades e abusos - abuso de poder de quem quer que fosse, do Estado ou da sociedade.


Então, a função da lei seria equiparar todos os cidadãos de uma sociedade?

Quando fiz ciências sociais aqui na USP, no início dos anos 70, estudei muito a influência do marxismo na sociologia. Eu me lembro de ter lido uma parte de O Capital [livro do pensador alemão Karl Marx (1818-1883)], e a impressão que tive quando tinha 19 ou 20 anos é de que Marx dizia o seguinte: "A lei é burguesa e é um instrumento de dominação de classe". Então, identificava a estrutura jurídica como instrumento de dominação. Depois de muitos anos, preparando aulas, fui reler esses capítulos e descobri Marx dizendo o seguinte: "Dialeticamente, a luta da classe trabalhadora é constituir um mínimo de legalidade, ainda que no espaço burguês, porque a lei é um instrumento mínimo de reconhecimento da legitimidade da luta. Ainda que dialeticamente, isso vai ser superado". Na minha cabeça, vinha mais ou menos o seguinte: o que é o espaço legal? É um espaço de negociação do bem comum. Não se trata de você negar a diferença de classes, de poder, de etnia, de gênero etc. Mas é preciso que essas diferenças encontrem um lugar no qual você possa traduzi-las em direitos eqüitativos.


Recentemente, vimos uma discussão acalorada sobre o filme Tropa de Elite, de José Padilha. Até mesmo parte da imprensa afirmou que a película legitimava a questão da tortura e do assassinato, o que vai contra o estado de direito. O que você acha disso?

O filme não está falando mentira, não está dizendo: "Olha, é uma enorme ficção". É uma narrativa da sociedade, mas não é a única. Certamente, muitas pessoas viram o filme com a impressão de "é assim mesmo, bandido tem de ser tratado assim" ou "polícia é assim" etc. Mas também tem muita gente que ficou muito horrorizada e disse: "Quero viver em uma sociedade na qual a polícia seja respeitada, mas não por esse tipo de feito, e sim pelo fato de que ela aplica a lei, usa a força dentro das regras da sociedade e promove a segurança do cidadão". Temos de prestar atenção ao fato de que houve um debate. Acho o debate muito importante, é uma maneira de perceber outras narrativas, outros entendimentos. Isso é explicar as diferenças. Há algumas coisas que a sociedade precisa discutir. Por exemplo, fico muito incomodado com o argumento que diz que os bandidos estão muito mais armados do que a polícia.

A pergunta é: como as armas chegam aos bandidos? Chegam pelo supermercado, alguém vai ali e compra, leva na sua bolsinha? Essa questão eu quero saber e a polícia tem de explicar. Pois quem tem de ser responsabilizado por isso são os órgãos de segurança. Não adianta dizer que eles estão mais armados. A culpa é, de fato, da polícia, porque não está exercendo seu papel. Não quero transformar o debate em uma guerra entre bandidos e mocinhos, na qual a polícia é o mocinho e bandido é o bandido.

Ou então fazer do bandido a vítima e da polícia o algoz. Acho que nenhuma dessas posições contribui para o debate. De qualquer maneira, não estou convencido de que a sociedade brasileira é consensual no uso da força indiscriminada para conter a violência.


Você acredita que a pobreza gera violência?

Através de pesquisas muito sérias, que conheço e respeito, os estudos mostram que não há uma relação direta entre pobreza e violência. Eu poderia resumir em dois ou três argumentos. A porcentagem de pessoas pobres que se envolveram com o mundo do crime, nas suas mais diferentes inserções, é muito pequena. Um estudo feito no Rio de Janeiro estima que apenas 1% da população dos bairros populares, das favelas, ligada ao mundo do crime. Não dá para você estabelecer uma relação direta entre pobreza e violência, a evidência empírica mostra: as cidades mais pobres do país não são as mais violentas.

A violência, de fato, é um fenômeno das metrópoles. Claro, você tem hoje cidades médias, com população de 500 mil habitantes e taxas crescentes de violência. Uma das razões é porque a riqueza está se deslocando dos grandes centros para o interior do país. E minha hipótese é que a criminalidade, sobretudo de perfil organizado, segue a rota da riqueza, não a rota da pobreza. Agora, o que nós podemos verificar é que existe uma co-relação estatística entre más condições de infra-estrutura urbana, população pobre e vítimas preferenciais da violência. O que eu prefiro dizer é mais ou menos o seguinte: a pobreza e a desigualdade não explicam o crime, o crime está disseminado por toda a sociedade. Mas elas explicam, provavelmente, a maior incidência da criminalização e da punição sobre os mais pobres.


Em outubro deste ano, o jornal Folha de S.Paulo publicou um artigo do apresentador da TV Globo Luciano Huck, que acabara de ter o relógio roubado. O texto gerou várias reações contrárias, inclusive do escritor Ferréz, que também fez um artigo para o mesmo jornal criticando o apresentador. Como você analisa essa discussão?

Para dizer a verdade, achei os dois artigos ruins. Porque ambos contribuem para estigmatizar e tornar preconceituosos os protagonistas desses acontecimentos. Acho legítimo que ele [Luciano Huck] manifeste a sua indignação. Agora, aquela idéia de dizer: "Eu pago imposto, contribuo para a sociedade, dirijo uma organização social e estou fazendo a minha parte", na verdade, não é suficiente.

Além disso, em um certo sentido ele justificou que a única forma de resolver [a violência] seria com essa polícia violenta e exterminadora. É uma mensagem ambígua. E achei o artigo do Ferréz péssimo pelo seguinte: ele pode ter falado muitas verdades no que escreveu, mas ele estigmatizou. Porque, na verdade, deu a entender que todo jovem morador da periferia é um potencial criminoso. E isso não é verdade, nós sabemos que não é assim. A idéia do Ferréz é que, na realidade, todos os pobres são vítimas e, portanto, cabe à sociedade compreender e entender que isso é assim mesmo. Não acho isso uma boa. Acho que, nos dois artigos, eles não conseguiram chegar a uma solução, apontar caminhos nem saídas. E, quando você polariza essas coisas, a tendência é exacerbar cenários e criar figuras do bem e do mal.


Diante da falência do Estado em combater o tráfico de drogas, e a violência gerada por isso, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, levantou a questão da descriminalização das drogas no Brasil. Como você vê isso?

Acho importante colocar o assunto em debate. Temos de discutir isso sem preconceitos morais. É um pouco como a questão do aborto. Se você continuar discutindo o aborto da perspectiva puramente moral, não vamos andar muito. Temos de ver, sim, aspectos éticos da condução dos atores que vão implementar políticas, mas a gente tem de ter uma discussão menos apaixonada. E se a sociedade estiver convencida disso, como vamos, politicamente, administrar esse processo? Como vamos conversar com os parceiros? Como vamos implementar essas políticas? Não é um processo político simples, é muito complexo. Simplesmente dizer que sou a favor ou contra pode ser uma atitude, pode ser uma postura, mas tem implicações. E essas implicações precisam ser muito bem discutidas, publicamente discutidas.


E quais seriam os prós e os contras da descriminalização?

Acho essa questão da descriminalização bastante complicada. Por um lado, existe um argumento que a gente não pode deixar de lado: o fato de as drogas serem proibidas causa essa enorme disputa, que de alguma maneira também influencia a incapacidade do Estado. Quer dizer, o Estado tem de combater as drogas e também a corrupção de uma parte de seus agentes, muitas vezes envolvidos nos negócios do tráfico, do crime organizado. A proibição, a ilegalidade das drogas tem esse efeito. Muitas pessoas evocam o problema da proibição do álcool nos Estados Unidos, e a quantidade de problemas que causou. Por outro lado, a gente também precisa ter muita clareza em relação ao impacto que a liberação das drogas terá em uma sociedade como a nossa. Pode ser que a gente tenha uma violenta pressão para um consumo abusivo, exagerado das drogas.

A pergunta é: quem serão as vítimas preferenciais disso? Nosso sistema de saúde está preparado para atender essas vítimas? Nós temos de ter muita clareza disso. Um jovem de classe média poderá parar em uma clínica particular, ser tratado, desintoxicado, e sei lá o que vai acontecer depois. Já um jovem da periferia será atendido nos ambulatórios dos serviços públicos de saúde. Segundo ponto, não se pode fazer uma política de descriminalização unilateral. Se o Brasil descriminaliza e os outros países da América Latina não, aqui vira o paraíso.


Em um de seus textos, você se refere à questão do racismo dentro da Justiça. Gostaria que você falasse sobre essa pesquisa.

É uma pesquisa que fiz no início dos anos 90, na qual analisei a distribuição de sentenças judiciais condenatórias para réus brancos e negros que haviam cometido o mesmo crime. O crime, no caso, era roubo qualificado. Verifiquei que, comparando crimes rigorosamente idênticos cometidos por brancos e negros, era maior a porcentagem de réus negros condenados em relação aos réus brancos. Eram 68% de réus negros condenados e 59% de réus brancos. É claro que isso pode representar várias coisas. Pode ser que a Justiça esteja sendo justa com os negros e mais flexível com os brancos. Ou, ao contrário, os brancos podem estar sendo julgados de acordo com as leis, e os negros com maior rigor punitivo. Não dá para responder isso. De qualquer maneira, não posso dizer que é porque o Judiciário seja racista, pois não fiz a pesquisa com os agentes. Tenho os dados do processo, que me permitem comparar uma coisa com outra. Mas ficou claro para mim que, por exemplo, réus brancos e negros não tinham uma situação econômica muito diferente. Os réus brancos eram um pouquinho menos pobres, vamos dizer assim, do que os negros. Mas a diferença era pouco significativa. Não querdizer que os brancos eram ricos e os negros eram pobres. Enfim, percebi que o vínculo dos negros com o mundo das leis e da proteção das leis era mais tênue do que o dos brancos.


Os brancos eram mais esclarecidos?

Os brancos se apoiavam proporcionalmente mais em advogados particulares do que os negros. É claro que você poderia dizer: "É porque o serviço de advogados particulares é melhor". Não necessariamente. Eu não posso fazer um julgamento de valor a respeito da qualidade dos serviços.

Mas, por exemplo, percebi que aparentemente os brancos tinham sempre alguma referência no mundo da legalidade. Ou seja, conheciam um advogado, sabiam quem eram as testemunhas. Eles mobilizavam os recursos legais com maior sucesso do que os negros. Isso me mostrava mais ou menos o seguinte: alguns têm mais acesso ao mundo das leis e da proteção das instituições legais do que outros. Isso me pareceu ser a grande diferença entre os dois. O problema é a falta de acesso aos direitos, às instituições. Brancos e negros têm acesso diferenciado às instituições de proteção legal. É basicamente isso que verifiquei. Conduzi esse estudo com muito cuidado, com muito rigor estatístico e de coleta de dados, mas ainda precisaria fazer muitos estudos para poder confirmar essas hipóteses.