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Ficção Inédita

por João Anzanello Carrascoza
Eu voltava do trabalho quando dobrei a esquina e a vi, de longe, à porta de casa, as mãos nas cadeiras, à minha espera, como se tivesse nascido ali só para que eu a visse tão logo chegasse à nossa rua. E a sua imagem foi se assentando aos poucos em meus olhos, enquanto eu caminhava em sua direção, os braços junto ao corpo, apontando para a terra, mas, a um sinal seu, prontos para enlaçá-la. Abri o portão, seu sorriso me deu o sinal e, depois de atravessar o canteiro de flores que ela tão bem cuidava, cheguei diante de seu rosto, como se de um altar, e a abracei e, por um instante, senti que aquele gesto, repetido, lembrava-me uma missa, e, se o suspiro que dei era o resumo do meu dia, agora eu teria a minha cota de paraíso. Entramos, em silêncio, era tão bom estarmos juntos de novo, o toque de minha mão em seu ombro dizia, claramente, acima de qualquer gentileza, Esta é minha mulher e estou aqui por ela, e eu sabia que, deixando-me fechar a porta, quando então se sentaria no sofá para conversarmos um instante, ela, seguindo à frente, dizia, Este é o meu homem e ele voltou pra mim.
E a sala, a luz do abajur acesa, as cortinas da porta de vidro recolhidas, e lá fora o céu escurecendo aos poucos, como a vida, a minha e a dela e a de todos, o céu lindo àquela hora, de tantas camadas de azul sobrepostas - essa a plenitude de sua cor! -, e a mesa de jantar posta, e os móveis, em seus devidos lugares, diziam, numa única voz, Tudo está em ordem. E, mesmo sendo uma ordem provisória, era uma bênção que assim o fosse: nada de especial estava em curso, apenas o reencontro de um homem e sua mulher ao fim do dia, e era aí, na simples aventura de voltarem um para o outro, que estava o milagre. Ela acariciou-me os cabelos, como se uma mecha a impedisse de ver se o meu rosto flutuante em sua memória coincidia com esse, atual, diante do seu; e eu, a seu lado, fiquei imóvel, entregue à minha timidez, mas certo de que seu afago buscava me recompor para ela; o mundo, durante o dia, me desfigurava, e, pelas suas mãos, eu me refazia. Mas, para não me acostumar a tanta ternura - que depois eu iria desejar sempre, e sofreria por não tê-la -, afastei-me, com um comentário sobre o trabalho, ao qual ela emendou um fato que lhe ocorrera, também menor como o meu, e, de fatos em fatos, mínimos, ela disse, Vai, toma o seu banho, e eu concordei, Já vou, e tirei o sapato, e me levantei, e a vi, a olho nu, passar à minha frente, como se desprovida de segredos.
Sob o chuveiro, a mente me chamava para mim, a consciência acesa, eu sendo o que era, preso à dor e ao gozo de minha condição, minha estatura, meu rosto no mundo que ela reconhecia como o de seu homem. E enquanto eu era quem era, e me lavava os cabelos, os pés, os braços, ia pensando nela, na cozinha, cuidando da janta, e, quando já me vestia no quarto, senti a sua presença - seus passos eram como silenciadores, abafando o alvoroço do meu coração. Fui à cozinha ao seu encontro e fiquei a vê-la, e, embora de costas para mim, curvada sobre o fogão, ela sabia que eu estava ali, assim como, quando me vestia, eu percebera que ela viera conferir se eu saíra do banho e calcular a minha demora para que, ao sentar à mesa, me deparasse com as terrinas fumegantes. Então andei em sua direção, e ela se virou, como uma árvore cujos galhos se movem antes mesmo de o vento passar - a expectativa que agita os sentidos, preparando-os para o que vem -, e disse o que dizemos quando não é preciso dizer nada, mas que substitui o que de fato queríamos dizer, Pronto?, e eu, sem o que responder senão o óbvio, respondi, Sim.
Saltando com os olhos de uma panela a outra, inspirei forte e senti o cheiro bom de sua comida, um cheiro que rompia a penumbra de meu esquecimento, e me levava, de novo, a sorver com intensidade o momento, que eu sentia passar, como o cheiro, já se habituando às minhas narinas, e por isso o inalava ao máximo, convicto de que aquele era o momento que eu queria viver, e ali, na cozinha, com ela, o lugar do mundo onde eu desejava estar. Jantamos lentamente, habituando-nos de novo um à companhia do outro, comentando as notícias do dia, as gerais e as nossas, os assuntos mais vivos, uns que seriam enterrados por outros mais urgentes, alguns que voltariam a nos afligir, e as palavras vinham e voltavam, ocupando o lugar daquilo que era nós mesmos lá nas profundezas, o silêncio, e, por ser tão imenso, precisávamos nos distrair dele. Como em outras noites, estávamos juntos, nem atentos nem desatentos para o ar que entrava e saía de nossos pulmões, apenas permitindo que entrasse e saísse, devorando a casca do instante e rumando para o seu miolo e, de um a outro, fluía, entre nossa conversa, o que ela sentia, o que eu pensava, E então?, Sim, Não diga!, Você viu?, Ah é?, Não sei, Pode ser, Ótimo, Vamos!, Quer mais?, Não!, Posso recolher?, Pode, Estava bom?, Estava ótimo!, Obrigada. Ajudei-a a retirar a mesa, oferecendo-me para secar a louça, Não, hoje não precisa, eu insisti, querendo poupá-la de mais uma tarefa, e ela, querendo o mesmo, Num instante eu limpo tudo, e como um de nós tinha de ceder, sentei-me com um livro à luz do abajur na sala, e durante algum tempo ainda a ouvi na cozinha, guardando as panelas.
Depois ela passou por mim e foi para o quarto, do quarto ao banheiro, e, em seguida, retornou à sala. Não reparei no que fazia, mas imaginei que checava a casa, pondo ordem aqui e ali, como se tivesse se esquecido de mim; eu, preso às páginas do livro, agia igualmente como se me esquecera dela, e, claro, fingindo que não percebia o que ela fazia, eu a estava recordando, linha por linha, e sabia que ela também, ajeitando as coisas, estava se chegando mais e mais a mim. Então, como se, de repente, eu encontrasse a chave secreta capaz de igualar a minha percepção à voltagem do universo - e, assim, chegar a um ponto muito acima daquele a que normalmente a realidade me permitia -, compreendi, com espanto, o que significavam os passos dela, ali, da cozinha ao quarto, do quarto ao banheiro, o seu vaivém passando tantas vezes pela sala onde eu estava, esse seu percurso, durante dias e anos, comum e esquecível, quase a se perder de vista.
Ela cruzou outra vez a sala à minha frente, mirou-me de relance, o seu olhar, feito um clarão, descobrindo no meu o que a minha compreensão alcançava, como quem flerta com uma fruta antes de colhê-la. E, vendo-a seguir para o quarto, senti o quanto aquele seu ir-e-vir, humilde e silencioso, alheio às nossas mais belas lembranças, me faria falta, e o quanto - tanto, tanto! - me sangraria a memória, quando ela não estivesse mais •
João Anzanello Carrascoza é autor, entro outros livros, de O Volume do Silência (Cosacnaify, 2006)