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Em Pauta

Qual a importância que o brasileiro dá ao passado? Será procedente aquela máxima de que temos memória curta? Diante da sensação de que vivemos um período no qual as informações são cada vez mais voláteis, o Sesc Vila Mariana realizou, em setembro, o Seminário Internacional Memória e Cultura - Amnésia Social e Espetacularização da Memória. O evento teve o objetivo de discutir questões como as ligadas à preservação do patrimônio artístico-cultural, tanto do ponto de vista material quanto do imaterial. Entre os convidados do projeto, estiveram o professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Paulo Menezes e o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, que refletem sobre o tema nos artigos a seguir.
Memória e cidade
por Jorge Wilheim
por Jorge Wilheim
O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) escreveu: "Para entender a vida é necessário olhar para trás, nossas raízes; mas para viver a vida é preciso olhar para a frente, isto é, para o que não existe".

Usualmente consideramos que a memória é uma atividade mental, gerada no cérebro. Devemos ampliar esse conceito, pois não é apenas ela que registra memória, mesmo se a mente processa o que o resto do corpo nos traz à lembrança. Psicanalistas sugerem a existência de uma memória celular que, antes da formação da mente no embrião, "imprimem" celularmente as sensações traumáticas ocorridas com e entre as duas células que nos formam, o espermatozóide e o óvulo, e que acompanharão o indivíduo em sua vida psíquica.
Por outro lado, além dessas considerações sobre o psiquismo fetal, neurologistas descrevem atualmente o "pensamento" que ocorre nos terminais nervosos, nos neurônios e suas conexões (sinapses). Há quem afirme que, usando a mente auxiliar chamada computador e sua infinita memória, possamos suprir a memória que nos falta ou falha. Contudo, é preciso entender que essa máquina, e nela a memória oferecida pela internet, nos fornece, antes de mais nada, dados. Porém dados ainda não são informação, pois para criá-la é preciso juntar dados criteriosamente. Mas informação ainda não significa conhecimento; para chegar a esse imprescindível patamar, é preciso que nos posicionemos, adotemos critérios, façamos escolhas; o conhecimento não se gera sem a contribuição e participação de quem o busca. Finalmente, é preciso humildemente admitir que conhecimento ainda não é sabedoria... Quanto à imaginação que nos permita olhar para a frente, podemos nos servir de diversos métodos para construir um futuro imaginário que nos sirva para viver. Albert Einstein (1879-1955) dizia que a imaginação é mais importante do que o raciocínio, pois abre horizontes.
Porém, entre passado e futuro, também é preciso ter alguma compreensão sobre o que é a ponte em que vivemos: o presente. Ora, temos hoje em dia uma considerável dificuldade em compreender o que se está passando. O escritor americano Henry Miller (1891-1980) disse que "o caos é palavra que inventamos para uma ordem que não compreendemos". Convém dizer algo sobre este presente que se nos afigura caótico, a fim de tentar entender sua "ordem".
Creio ser fundamental compreender que a humanidade vive há duas décadas um dos seus cíclicos períodos de transição da história. Isso quer dizer que surgiram profundas rupturas e mudanças de paradigmas. Não se produz como anteriormente; a família não constitui a única forma de associação e parceria permanente entre pessoas; os estados e governos nacionais estão sendo desafiados por uma ampliação de poder do mercado; postula-se que o estado deve ser minimizado a fim de que o mercado, desregulado, se amplie (em vez do seu contrário...); o mercado é dominado pelo setor financeiro que acabará corroendo a economia; o capitalismo impôs regras que poderão levá-lo à implosão; a máquina substitui os seres humanos; as tecnologias de ponta (biológicas, informáticas, robóticas e a nanotecnologia) geram a perspectiva de mutações, isto é, mudanças de estado, impondo a politização do tema, em busca de sua ética; o proletariado perdeu poder, o desemprego campeia, e pessoas, coletividades, nações e países são empurrados para o limbo do supérfluo, do desnecessário (para o aumento do consumo e a maximização dos lucros financeiros). O desenvolvimento da tecnologia da informática, após a invenção do computador pessoal, do protocolo da internet e da web (1991) e seus desdobramentos no caminho das sucessivas miniaturizações, resultou, entre outras novidades, num aumento de eficiência das finanças globais.
Assim, a globalização resultante pode ser considerada o novo ambiente em que se desenrolam, queiramos ou não, as atividades humanas. Esse ambiente se tornou propício à constituição do chamado neoliberalismo, um desdobramento do regime capitalista que pouco tem a ver com o liberalismo econômico do século 19 e que tende a fazer crescer o consumo e a produção à custa da diminuição radical da mão-de-obra, propiciados pela globalização da informação e rapidez das decisões. No ambiente da globalização surge um fenômeno que tem relevância para a questão da memória e de sua preservação: a aceleração. Cada vez mais, em um mesmo período de tempo são crescentes as mudanças, as transformações.
Vivendo em uma época em que as transformações são rápidas e incessantes, o passado torna-se irrelevante, o presente banal e o futuro imponderável. Nessa situação de vertiginosa fuga para a frente, de voragem, não é de estranhar termos perdido o rumo, o sentido da vida, isto é, de onde viemos e para onde vamos... Dizia Heráclito (540 a.C.-470 a.C.) que "não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio"; mas as águas correm aceleradamente e a corredeira atual indica termos uma cachoeira à nossa frente... De que forma o lugar em que vivemos, especialmente a cidade, pode ancorar a fluidez das constantes mudanças? A cidade, fenômeno cultural, por excelência o sítio do homem político definido por Aristóteles, permite que cada um escolha os ambientes físicos pelos quais passam os diversos momentos de sua vida cotidiana. Há, por isso, que diferençar espaço de lugar; enquanto o primeiro é um dado objetivo e físico, o segundo é a escolha subjetiva e sensorial daqueles espaços que cada um de nós privilegia para os diversos momentos de sua vida cotidiana: o lugar de encontrar os amigos, os elegidos para namorar, os apropriados para a diversão, para o espetáculo.
É assim que em cada cidade diversos lugares acabam sendo privilegiados por grande número de seus cidadãos, tornando-se lugares de referência a ser preservados. O mesmo ocorre com edificações ou objetos públicos, assim como referências imateriais, todos significativos, seja por guardarem fisicamente a memória de fatos históricos ou religiosos significativos para cada cidadão, seja porque sua forma ou som evoca sentimentos estéticos significativos. É assim que em cada cidade se forma um conjunto de lugares, edificações, objetos e acervos imateriais - chamado patrimônio histórico e cultural.
Convém lembrar que cultura, nesse caso, deve ser considerada do ponto de vista antropológico; isto é, vai além dos limites da seleção erudita para incorporar os hábitos, costumes e escolha popular de aspectos significativos na vida cotidiana. A definição desse conjunto de valores patrimoniais é tão polêmica quanto as formas de sua preservação. Sabe-se, por experiência, que um edifício antigo só pode ser preservado dando-se-lhe um novo uso. Por outro lado, deve-se reconhecer que referências urbanas podem, após um certo período e o passar de gerações, perder seu significado e deixar de ser consideradas um bem patrimonial. Porém, antes da consideração dessas dificuldades técnicas, no fundo superáveis, é preciso reter que, em um período de transição da história em que, sob o efeito da aceleração, o passado se torna irrelevante e o presente banal, aumenta a importância de se fazerem presentes na vida cotidiana os testemunhos culturais de nossas raízes, a fim de contribuírem para dar um sentido à vida e fundamentar um ponto de partida para a imaginação, a criação do projeto e a construção de um futuro.
O crítico cultural, por dever de ofício, precisa falar alguma coisa sobre aquele determinado produto cultural (uma obra de arte pintada a óleo, por exemplo) e quase sempre o faz com um discurso subjetivo. Até porque seu instrumento de trabalho, entre outras coisas, centraliza-se essencialmente, mas não só, na análise estética. Pode-se dizer que ele é o modelo ideal da subjetividade. É sempre muito difícil, e em alguns casos até mesmo impossível, se distinguir com clareza ou de alguma outra forma as categorias estéticas inerentes ao belo e ao feio. Esse fato, porém, não é novo.
Desde os tempos de Benedetto Croce [1866-1952, filósofo idealista italiano], passando por Bäumler [Alfred Bäumler, 1887-1968, filósofo e pedagogo alemão] , até nossa contemporaneidade com Luc Ferry [1951, filósofo francês defensor do humanismo secular, que valoriza o uso da razão crítica em lugar da fé], a história dos conceitos estéticos do gosto permanece ainda em processo de formação, à procura de um estatuto mais objetivo sobre o belo, o feio e o próprio gosto.
Talvez o mais importante apanágio do profissional que trabalha com a crítica cultural seja mesmo o discurso centrado na subjetividade. Não há nada de errado nisso, é claro, mas nós não podemos também concordar com suas análises, a não ser que elas sejam realmente convincentes. Mas nós quem? Apenas uma pequena parcela da população que leu a crítica pode discordar. Uma grande parte aceita o subjetivismo do discurso culto do crítico, que termina sendo um formador de opinião quando escreve ou se pronuncia por meio dos veículos de comunicação de massa. Em nosso país, e acredito que não seja exceção, o crítico cultural de formação mediana, quando não tem o que dizer ao leitor, usa de dois expedientes tão semelhantes quanto inócuos. Em alguns casos, dependendo do leitor, poderia até ter efeitos nocivos. São recursos que não servem para nada. O primeiro é o que os lingüistas chamam de função fática da linguagem, e consiste no seguinte: falar ou escrever repetidas vezes a mesma coisa, mudando apenas o vocabulário. •
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista.

Acervo e memória
por Paulo Menezes
por Paulo Menezes

Datam quase dessa mesma época as viagens dos primeiros etnólogos de campo que passaram a utilizar a máquina de filmar com o intuito de documentar as sociedades que estudavam, dando a elas, além das feições, que já conseguiam com as
Junto com esses pioneiros nascem também os primeiros problemas para os acervos de imagens e para o uso dessas imagens nas ciências humanas. Os cineastas do começo do século 20, na ausência de alguma cena que deveria fazer parte da história sobre a qual eles se debruçavam, não viam problemas em encenar as cenas que faltavam, introduzindo com isso a falsificação no nascimento do cinema documental. Por sua vez, os etnólogos, movidos pela divisão do trabalho entre Durkheim [Émile Durkheim, 1858-1917, pensador francês considerado o fundador da sociologia] e Mauss [Marcel Mauss, 1872-1950, sociólogo, sobrinho de Durkheim, considerado o pai da antropologia francesa], ficando o primeiro com o estudo das sociedades industriais e o segundo com as sociedades primitivas, nos termos da época, levaram para o campo da investigação a harmonia enquanto ponto de partida metodológico, com a qual enxergavam e reconstruíam aquelas comunidades.
Com isso, o método lhes permitia enfatizar algumas coisas e descartar outras. O mesmo princípio foi adotado pelos primeiros cineastas etnógrafos, que filmavam o mundo como se dele brotassem as suas verdades, reduzindo a complexidade dos povos que olhavam à simplicidade que o registro da cultura material propiciava. Os problemas advindos desse ponto de partida é que, ao retratá-las dessa forma, essas sociedades primitivas adquiriram uma simplicidade visual por meio dos filmes que contrasta de maneira acentuada com as suas complexas dimensões simbólicas, que os filmes não conseguiam ou não queriam registrar.
Esvaziadas de sua complexidade, essas sociedades nos parecem sociedades simples, pois assim foram mostradas por esses primeiros filmes. São esses os filmes que constituem os acervos a respeito desses povos, olhados como contraposição da sociedade de referência, branca, européia ou norte-americana, tanto aqui como lá fora - sendo que aqui, na maior parte das vezes, nossa sociedade original, os índios, é o objeto dessas reconstruções, como bem mostram os filmes do major Thomaz Reis, cineasta oficial das viagens do marechal Rondon. Um evento, ocorrido no Bilan du Film Ethnographique [numa tradução livre, Balanço do Filme Etnográfico, mostra anual que ocorre no Museu do Homem, de Paris] de 1999, levanta os problemas advindos desse tipo de perspectiva. Dois de seus filmes chamaram a atenção de todos. O primeiro retratava um ritual de fertilidade realizado 14 anos antes na Papua Nova Guiné, e que era, naquela ocasião, explicado para as câmeras por um antropólogo e pelo então líder da comunidade; os dois ressaltavam o fato de que aquele ritual já não era mais realizado há muito tempo e que, na época das filmagens, a pedido do etnógrafo, havia sido encenado exclusivamente para as câmeras.
O segundo refazia o trajeto de um famoso filme etnográfico da década de 60, realizado pelo sociólogo Edgar Morin na costa da Bretanha, entrevistando algumas pessoas que haviam participado do primeiro filme e que, diante das câmeras do segundo, desmontaram várias das cenas do filme original que eram apresentadas como expressão "fiel" do cotidiano daquela comunidade. Com isso, constituem-se dois grandes problemas para os estudiosos que tomavam como ponto de partida de suas pesquisas as imagens desse acervo, de mais de 200 mil filmes etnográficos e documentais.
O primeiro, relativo à confiabilidade das informações etnográficas e documentais que trazem algumas fitas sobre as quais não existem mais relatos escritos e nas quais não se pode mais distinguir o que foi realizado do que foi encenado, bem como também não se pode mais datar com precisão o tempo cronológico dos acontecimentos ali realizados. O segundo, advindo do primeiro, problematiza o tipo de informação que seria ainda possível retirar desses filmes, colocados em dúvida quando à fidelidade daquilo que nos mostravam e dos povos que, em princípio, retratavam. Colocando-se a questão em outra direção, pergunta-se sobre o tipo de informação que esses filmes poderiam nos proporcionar nos tempos atuais, tendo em vista esse tipo de questionamento quanto à fidelidade das imagens que estampam. Isso levanta inúmeros problemas para o acervo e para a pesquisa, pois na maior parte das vezes as próprias películas não colocam em questão e muito menos tornam explícitas as "interferências" realizadas nos fenômenos filmados, que são vistos pelo público como uma apresentação "fiel" da realidade.
Nessa direção, sem que haja uma advertência explícita sobre tais riscos, o público que tem acesso a esses acervos, seja ele leigo, seja especialista, fica sem informações preciosas que poderiam levá-lo a questionar essas construções em seus fundamentos, o que permitiria uma maior precisão a respeito das informações ali contidas no sentido de se ter muito claro o contexto no qual essas imagens foram realizadas e que, portanto, fundamenta as possíveis interpretações daquilo que vemos, sempre levando em conta que os filmes documentais são vistos pela imensa maioria do público como sendo expressão de verdades sobre o tema nos quais se debruçam. Esse fato nada mais faz do que ressaltar a dificuldade que acervos desse tipo, como os inúmeros que temos no Brasil, trazem em relação às informações guardadas em suas imagens, sejam elas advindas de filmes, sejam de fotografias (é só lembrar dos pseudoflagrantes das fotografias de um German Lorca [fotógrafo paulistano dos anos 40-50], por exemplo), pois na maioria das vezes, dependendo da antiguidade do filme, nada mais nos resta de informação além daquelas imagens que o passado nos legou.
O problema que fica é de como lhes dar sentido, tendo em vista que informações possivelmente preciosas podem ali não estar, ou, mais complicado, podem ali estar disfarçadas em eventos tomados como se fossem de improviso sem o ser. Isso levanta questões cruciais para a utilização e interpretação desses acervos, pois podemos facilmente ser levados a tomar uma coisa pela outra, a assumir como "verdadeiras" determinadas encenações, a tomar como se fossem flagrantes cenas preparadas de antemão, a acreditar na existência, naquele lugar e naquela época, de festas e rituais já há muito inexistentes.
Esses são problemas que acervos visuais levantam e que merecem toda a atenção, não só de seus conservadores mas também daqueles que se utilizam dessas imagens para tentar interpretar o mundo e reconstruir com elas a memória e o passado. Assim, se não mais existe a crença absoluta na fidelidade das imagens que esses acervos mostram, esses filmes e fotografias, olhados por seu caráter construtivo, pelo modo como recortam o mundo, pelo que mostram e pelo que escondem, pela hierarquia visual do que apresentam e pelo "contexto" que exibem como sendo universal, permitem, por uma análise detida e circunstanciada, que se percebam os esquemas conceituais, analíticos e valorativos que presidem os seus recortes e suas construções. Nessa direção, essas imagens, para os olhos de hoje, podem dizer mais sobre os cineastas, antropólogos e fotógrafos que as construíram, sobre as avaliações e percepções de sua época e sobre os conceitos de construção de mundo que utilizavam, do que sobre as sociedades em princípio "retratadas" plácida e "objetivamente" por suas lentes. Nessa acepção, essas imagens passam a dizer mais sobre o olhar que constrói o mundo do que sobre o mundo propriamente dito. •
Paulo Menezes é professor do departamento de Sociologia da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
