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Artes Plásticas
Universo Poético
O ensaísta francês Jean Galard analisa Ópera das Pedras, trabalho da artista plástica Denise Milan
O ensaísta francês Jean Galard analisa Ópera das Pedras, trabalho da artista plástica Denise Milan
No final de 2006, a artista plástica Denise Milan e o músico Marco Antônio Guimarães passaram pelo Sesc Pinheiros com um trabalho que aguçou a curiosidade tanto do público quanto da crítica. Inspirado nos mitos de criação da Terra, o espetáculo Ópera das Pedras tinha como proposta contar histórias sobre a origem do planeta e do homem a partir da natureza das pedras. Entre os "curiosos", está o ensaísta Jean Galard, professor de estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), de 1968 a 1971, dirigente de centros culturais franceses nos quatro cantos do mundo - do México ao Marrocos, passando pela Nigéria, Turquia e Holanda - e criador do Serviço Cultural do Museu do Louvre, de 1987 a 2002. "Desde que Denise Milan começou a me falar de seu projeto, eu não podia me desfazer da perplexidade: 'Mas, no final das contas, ela acredita mesmo nisso?'", conta Galard. "Denise me garantia que as pedras lhe falavam. Por meu lado, perguntava-me se ela estava delirando ou se eu é que era prisioneiro de um racionalismo estreito." Interessado em responder a esse questionamento, o ensaísta debruçou-se sobre a "desconcertante integração de referências científicas, dimensões míticas, experiências pessoais, invenção e revelação" que a obra apresenta. Abaixo, excertos dessa análise.

Aqui, a idéia de hipótese predomina. E a idéia de mito (que está longe da pretensão à verdade científica) é bem compatível com o princípio de uma cosmogonia. Por isso, já devemos observar que podem existir diversas cosmogonias, até numa mesma sociedade, enquanto a cosmologia, sendo candidata à verdade, deveria ser única num dado momento.
Refiro-me aos contos indígenas, que merecem o nome de mitos, e que interessaram vivamente muitos leitores franceses quando a coletânea Moqueca de Maridos - Mitos Eróticos, de 1997, organizada por Betty Mindlin, foi traduzida para o francês, em 2005, com o título de Fricassée de Maris. São histórias de enfeitiçamento, aventuras em que seres humanos e coisas trocam de natureza. Por exemplo, uma jarra que começa a sangrar quando a arranham, porque "na realidade" - ou "também" - é uma mulher. Um dos aspectos marcantes desses contos é o fato de eles revelarem a origem de certas coisas atuais. Terminam freqüentemente com as palavras: "É por isso que dizem até hoje que...", ou com: "Desde então os homens são assim...". Trata-se, portanto, de narrativas de origem. Mas não têm a amplitude de um mito que se reporta à formação do mundo inteiro. Outro aspecto notável desses contos é que uma parte de suas peripécias se desenrola sob a superfície aparente da terra. E muitas vezes é no fundo da água que as coisas mais interessantes acontecem. O subsolo é assim rico não apenas de recursos úteis a nossa sobrevivência, mas também de histórias, dramas ou episódios diversos instrutivos para nossa vida, porque são simbólicos dos movimentos que se agitam sob nossa consciência.
História global
Também a Ópera das Pedras se desenrola em grande parte nas profundezas subterrâneas. Mas o tom parece mais grave que o dos contos. Em primeiro lugar porque é a história global de nosso mundo que entra em cena. Um destino cósmico cumpre-se ali. É verdade que nos contos reunidos por Betty Mindlin, por exemplo, temas essenciais e eternos são postos em jogo: a busca do amor, a sedução, o ciúme, os conflitos entre homens e mulheres, mães e filhas etc. Em Ópera das Pedras, os temas parecem mais trágicos, mais dificilmente formuláveis, mais perturbadores.
É especialmente o tema do começo sem começo (o mistério da gênese do mundo, o quebra-cabeça metafísico do começo de tudo), da separação e da ruptura, do ar rarefeito, do peso e do pesadelo, da voz e do silêncio, das trevas e das luminescências, da inércia e do despertar, da morte e do renascimento ou da transfiguração. A diferença com relação aos outros mitos de criação é, em primeiro lugar, um menor apelo à credulidade, como já aparece no início da ópera. As coisas não começam graças a um primeiro gesto ou uma primeira palavra. Não existe começo, o começo não começa - o que é uma afirmação bastante lúcida. Por outro lado, as referências feitas à realidade mineralógica ou cósmica deixam pairar a idéia de que não estamos na pura ficção.
A Ópera das Pedras talvez se inspire em certos elementos de mitos, mas bem vemos que ela mantém, ao mesmo tempo, uma relação atenta com certo saber relativo aos silícios, aos quartzos, à deriva dos continentes etc. Essa obra parece fundada em conhecimentos geológicos. Parece. É sua força ou seu ardil ou seu enigma. Na minha opinião, é puro enigma. Vendo e escutando essa obra - revendo-a e escutando-a novamente -, uma pergunta volta sem cessar e quase se torna obsessão: ela seria o efeito de uma imaginação fecunda ou seria o testemunho de uma crença? Ou, ainda: seria uma fábula inteiramente assumida por seus autores como uma invenção fabulosa ou seria uma espécie de lembrança de uma experiência real, à qual seríamos convidados a aderir ou assistir? Trata-se de um sonho acordado ou de uma convicção? Foram essas as questões que me coloquei desde que Denise Milan começou a me falar de seu projeto. Não podia me desfazer dessa perplexidade: "Mas, no final das contas, ela acredita mesmo nisso?" Denise me garantia que as pedras lhe falavam. Por meu lado, perguntava-me se ela estava delirando ou se eu é que era prisioneiro de um racionalismo estreito. •