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Muito mais dúvidas que certezas

Economia, política e ética no Brasil

GILBERTO DUPAS

O engenheiro Gilberto Dupas esteve presente no dia 15 de setembro de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre a situação econômica e política do país, analisando suas possibilidades de crescimento.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

Falar de economia, política e ética, nessa ordem, parece-me adequado para refletir não só sobre os tempos atuais como sobre velhos e novos conceitos da inter-relação entre comportamento, padrões sociais e econômicos. Karl Marx já dizia do peso da infra-estrutura sobre a superestrutura e, recentemente, ficou famosa nos Estados Unidos a frase: "É a economia, idiota". Em suma, é a economia que tende a mover o restante das coisas.

O sociólogo inglês Timothy Ash escreveu um artigo fazendo referência à degradação dos padrões de comportamento civilizacional nos EUA, após a tragédia do Katrina. E advertiu que à medida que os espaços de exclusão, degradação e anomia do Estado no mundo se acentuam, o que aconteceu depois do Katrina pode ser um novo padrão de referência. Ele falou da fina casca de civilização que recobre nossos impulsos selvagens e deu um exemplo: quem não passou pela situação de um vôo cancelado num fim de feriado? Num primeiro momento, todos sorriem para os companheiros, com um sorriso amigável, ético. Após um tempo, ante o anúncio de que o próximo avião demorará, aparecem sorrisos esmaecidos, algum sinal rancoroso. Finalmente, com o aviso de que há dez vagas no vôo seguinte, o comportamento ético e político desaparece, os mais fortes correm, atropelam as velhinhas, crianças, etc. Garantidos seus lugares, voltam a ter um sorriso benevolente e culpado. Ash utiliza esse exemplo para mostrar que momentos de tensão que ameaçam nossos padrões civilizacionais tornam explícita essa fina casca que representa a civilização. É uma advertência, especialmente para um país como o Brasil. Daí a importância de seguir esta ordem: economia, política e ética.

Começando pela economia, faço um rápido resumo do que foi a década de 1990 no Brasil. O período coincidiu com o discurso de liberação econômica, uma espécie de versículo bíblico que circulou pelo mundo, do tipo "abram, privatizem e estabilizem que tudo o mais lhes será dado por acréscimo". Isso teve alguns resultados positivos, especialmente na chamada modernização, mas deixou cicatrizes para o começo do século 21, apontando problemas sérios.

Fernando Collor de Mello foi quem deu o empurrão final para a grande abertura no processo econômico brasileiro. A substituição de importações havia se esgotado e tínhamos construído uma estrutura industrial ampla, considerada a décima maior do mundo. Hoje, com o "fator China", já não sabemos ao certo se a industrialização é o melhor caminho para o desenvolvimento. A abertura parecia inexorável e significou um forte aumento do coeficiente de penetração das importações sobre o consumo aparente da economia. O conteúdo importado passou de uma média de 6% em 1990 para 22% em 2000. Para alguns setores, como bens de capital, essa média passou de 11% para 66%, e para bens de consumo durável de 9% para 45%.

De fato, a economia brasileira se globalizou, entrou na lógica do fracionamento das cadeias produtivas, o conteúdo importado aumentou bastante, os produtos melhoraram de padrão, permitindo um movimento importante da economia, com conseqüências positivas e negativas. As negativas foram sentidas depois, quando o processo inflacionário e a exclusão social mostraram suas garras; o Plano Real, que marcou o momento de glória do governo Fernando Henrique Cardoso, conseguiu eliminar a inflação crônica e fez - num primeiro momento - explodir o consumo das classes baixas. De 1994 a 1996, com o consumo elevado e esse coeficiente de abertura e de importação, os saldos comerciais brasileiros, que eram mais ou menos equilibrados, mergulharam num negativo de US$ 3 bilhões a US$ 6 bilhões por ano. A remessa de juros e o pagamento de serviços significaram mais uns US$ 15 bilhões negativos, o que foi compensado pelo investimento direto que entrava no país por conta das privatizações. Esse investimento financiou o déficit comercial de US$ 6 bilhões e de serviços de mais de US$ 5 bilhões, com uma entrada gloriosa que chegou a US$ 30 bilhões em 1998.

Brasil e China, dois grandes países da periferia do capitalismo mundial, recebiam as mesmas doses maciças de investimento internacional. Para se ter uma idéia, esse número baixou hoje para US$ 18 bilhões no Brasil, mas na China deve estar em US$ 90 bilhões.

A abertura econômica permitiu trocar investimento direto por déficit - em serviços e em comércio -, mantendo a economia em equilíbrio, com um câmbio confortável e fixo, que acabou sendo causa de distorções profundas durante o governo Fernando Henrique. Mas, antes disso, propiciou o grande momento de seu governo, assim como o de Collor foi a abertura econômica. Com o Plano Real, houve um crescimento pequeno, mas significativo da economia, com câmbio fixo. O equívoco foi a manutenção desse câmbio de uma forma imprudente, o que deu lugar ao choque cambial de janeiro de 1999 para reequilibrar a situação.

A partir de 1996, houve um longo e continuado declínio da renda real, que se manteve até dois anos atrás, aproximadamente, quando começou uma pequena reação. A demanda foi contida por juros altos que controlavam a inflação, de modo que a explosão cambial não trouxe de volta a hiperinflação.

A conjugação de uma dívida alta, juros internos elevados e a revelação de alguns esqueletos foi o grande passivo do governo FHC. O crescimento da dívida líquida total do setor público no Brasil, que era cerca de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) quando Fernando Henrique assumiu, passou para cerca de 60% do PIB quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao governo.

Na década de 1990, o país cresceu pouco e o desemprego subiu constantemente. Nesse período, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego passou de 6% para 12% e, pelos dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), de 9% para 18%. Como o conceito de emprego é muito elástico, o IBGE corrigiu recentemente alguma distorção aceitando parte dos argumentos metodológicos apresentados pelo Seade, e então houve um salto no nível de desemprego. Uma das características do mercado de trabalho em tempos de globalização foi o crescimento da informalidade, que passou a ser predominante. O que se viu nesse período foi a queda do emprego formal e o aumento do informal, incluindo terceirização, etc. Quando o trabalhador escorrega do formal para o informal perde cerca de 30% da renda, além de parte da auto-estima e dos benefícios. Mais: o trabalhador informal vê o Estado como duplamente perseguidor. Primeiro, porque quer pegá-lo com a tributação; segundo, porque nessa condição o trabalhador precisa mais de apoio social e, quando vai cobrar do governo, recebe a desculpa de que "o orçamento é contido e você é informal". Essa relação perversa, que consolida o Estado como figura persecutória, é uma conseqüência importante do crescimento da informalidade naquela década.

De 1996 a 2002, a renda individual média decresceu constantemente. Nesse período, todos os surtos de demanda aconteceram por causa dos ciclos de crédito, e não pela elevação da renda. O ciclo de crédito tem subidas e descidas que terminam na inadimplência, pois o crédito nada mais é do que a antecipação da renda futura, que, se não for alimentada lá na frente, faz com que o ciclo se esgote.

O processo de queda da renda real não é só brasileiro. A classe média norte-americana pujante, vigorosa, da década de 1960 foi formada pelo padrão da indústria automobilística local: Ford e GM. Enquanto isso, o grande paradigma do capitalismo global hoje, a maior empresa do mundo - que fatura US$ 300 bilhões - é a Wall-Mart, que tem 1,5 milhão de empregados no mundo todo, dos quais 70% são norte-americanos que recebem uma média de US$ 18 mil por ano (a linha de pobreza dos EUA é de US$ 17 mil!). Ela é uma referência que causa perplexidade: alta tecnologia e baixos salários. O capitalismo do século 21 apresenta padrões mais assustadores do que o da década de 1960, quando construiu a grande classe média norte-americana e mundial. E o Brasil não é exceção.

O que chama a atenção entre os brasileiros até 2002 é o acúmulo de exclusão e uma queda dos padrões de vida da classe média. Enquanto os impostos subiam e o preço dos serviços públicos se elevava muito mais do que a renda, o disponível para consumo diminuía. Os números que utilizamos, a partir de pesquisa sobre dados da Seade desenvolvida no Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), que dirigimos, revelam coisas curiosas. Vou destacar algumas delas para mostrar por que as regiões metropolitanas brasileiras têm uma situação tão crítica sob o ponto de vista social. No período pós-estabilização do real - de 1996, quando a renda começou a cair, até 2002 - o índice de desocupados na Grande São Paulo cresceu 69%. No interior do estado, 41%. Nas outras regiões metropolitanas, 63%. No restante do país, 51%. Como se vê, há um crescimento intenso da precariedade nas regiões metropolitanas. Na de São Paulo, o número de empregados com carteira assinada aumentou 2%, enquanto a população cresceu 21%.

Nesse mesmo período, nossa pesquisa procurou entender o que estava acontecendo com as famílias da capital paulista. A renda da classe média caía para um patamar de R$ 900. Essa é basicamente a classe média paulistana, que mora nos subúrbios, algumas vezes na favela ou próximo dela. Temos dados de 1990, 1994, 1998 e 2002. As famílias que tinham rendimento exclusivamente formal caíram de 57% para 51%, 45% e 43%, respectivamente. Na outra ponta, as de renda exclusivamente informal evoluíram de 13% para 18%, 21% e 23%. De 2002 para cá, deve ter subido um pouco mais. Notamos assim a degradação do padrão em direção à flexibilidade, que em alguns casos pode significar até um aumento de renda, mas é, basicamente, degradação, pois a renda caiu e o padrão de benefícios também. Mudou o hábito de consumo e a maneira de se assumir um crediário. Para comprar uma geladeira a prazo, por exemplo, reúnem-se o pai aposentado, o filho desempregado e o outro filho com um emprego informal e discutem o fluxo de renda que podem bancar para efetivar a compra. Essa é uma forma original de comportamento; a precariedade acentua a "rede de proteção familiar".

Esse era o quadro, em 2002; de uma economia que, mesmo com o sucesso do Plano Real e o avanço da abertura econômica, cresceu pouco. Aumentaram o desemprego, a informalidade e a concentração da exclusão nas grandes metrópoles. Diante desse cenário construiu-se a grande esperança de mudança no governo Lula, tornando inevitável sua vitória. Evidentemente, havia uma história do Partido dos Trabalhadores (PT) e da própria política brasileira que viabilizou isso. A parte mais conservadora da sociedade andou dizendo que Lula deveria ter sido eleito antes, porque assim ele faria logo suas "bobagens" e não seria preciso enfrentá-lo de novo. Mas não era essa a realidade política, nem foi o que aconteceu após a eleição. Aspirava-se a uma mudança que pudesse reverter o quadro. Essa era a utopia, e o PT a consagrou numa retórica de campanha que evoluiu muito bem. Porém, Lula e sua equipe perceberam que essa retórica poderia até ganhar a eleição, mas também causaria problemas de governabilidade com suas teses sobre reformas radicais na economia. Portanto, foi prudente reverter o discurso econômico para um tom mais equilibrado e que não assustasse tanto as elites. Isso permitiu um pacto de governabilidade, contendo as expectativas dos radicais.

A "Carta ao Povo Brasileiro" consagrou a mudança de orientação econômica do governo Lula, que se entregou a um grande realismo em relação aos pequenos espaços de flexibilidade que a economia global permite a países como o Brasil, mas praticou esse realismo com o exagero dos neófitos. O exemplo típico disso é a taxa de juros. Se José Serra tivesse sido eleito, talvez tivesse podido adotar uma política econômica menos ortodoxa que a atual.

Lula representou algo mágico: além do genuíno respaldo popular - que ainda tem -, encarnou principalmente um produto político que as elites adoram: um líder popular, que diz ser capaz de conciliar ortodoxia econômica e fiscal com o resgate do social. Isso é tudo o que as elites internacionais e locais querem ouvir. De fato, Lula tem uma brilhante retórica e comunicação popular. Nas minhas andanças fora do país vi muitas vezes - na Europa e nos Estados Unidos - o respeito com que as elites olham para esse novo produto político. O próprio Fernando Henrique, um homem que freqüenta esses ambientes esbanjando elegância e erudição, passou temporariamente para segundo plano.

Evidentemente, isso tudo causou um problema sério para o governo. O Fome Zero, uma experiência piloto em municípios pequenos, do dia para a noite teve de se transformar num programa nacional de grande envergadura, para equilibrar politicamente o peso negativo da "Carta ao Povo Brasileiro". Mas nunca decolou plenamente, pois o projeto era inviável. Sobrou apenas um programa abrangente que é o Bolsa Família, para 8 milhões de famílias, que irriga significativamente a renda em certas regiões pobres.

De 1996 a 2002, com o câmbio elevado, a economia cresceu por impulso do agribusiness e das commodities, revertendo o quadro exportador e começando a gerar amplo superávit a partir de 2002. A principal razão para que isso acontecesse foi o "fator China", que entrava no mercado mundial de commodities como um imenso consumidor. O preço internacional desses produtos e a inegável capacidade competitiva brasileira nessa área levaram as exportações nacionais a uma fase de excepcional grandeza. Juntando um pouco de Embraer e de indústria automobilística, ocorreu o enorme sucesso das exportações, as quais passaram de US$ 50 bilhões para US$ 100 bilhões, gerando um superávit folgado no momento em que caía o investimento direto externo (FDI).

A dívida externa brasileira foi se transformando numa coisa mais tranqüila. Hoje ninguém se preocupa com ela, mas com a dívida interna turbinada pela taxa de juros. Na área internacional, Lula misturou um pouco de ideologia com comércio, dois ingredientes que normalmente não se mesclam bem; mas, nesse caso, foi útil porque essa abordagem sul-sul, embora não seja tão relevante, ajudou, por exemplo, na ampliação significativa do mercado com a China.

Nesse curto período (2002-2005), Lula favoreceu mudanças no perfil exportador e na questão da dívida externa, com crescimento econômico razoável, elevação da renda, aumento do emprego e do trabalho formal. Apresentei, recentemente, na Fundação Getúlio Vargas, a conclusão de outra pesquisa que conduzimos no IEEI. Queríamos saber o seguinte: quando o PIB cresceu no começo da década de 1990, por que o desemprego continuou aumentando? E quanto é necessário fazer o PIB crescer para gerar emprego, elevar a renda e baixar a informalidade? A internacionalização estava forte, a competição intensificava-se, com maior automação e terceirização, e o empresário brasileiro reverteu naqueles anos sua maneira de encarar o emprego. Até então ele despedia depois da crise; mas, no período duro de competição internacional pós-abertura, ele passou a antecipar cortes, preparando-se para crises futuras e trabalhando com a terceirização para evitar custos fixos relevantes. Queríamos saber se, com o crescimento econômico de 4,9% em 2004 e algo em torno de 4% em 2005, o emprego formal havia voltado. Houve assim uma ligeira recuperação do emprego e da renda, principalmente nas regiões metropolitanas, por causa da concentração industrial, do comércio, o que mostra que é fundamental crescer em torno de 4,5% ou 5%, para a recuperação da renda e diminuição da exclusão, dentro do atual paradigma de automação, competição, etc.

Como vimos, o Brasil deu um salto de crescimento, beneficiado pelo aumento do preço e da demanda das commodities. Mas o emprego agrícola e o ligado ao agribusiness têm crescido muito menos que o industrial, por várias razões. Trata-se de um setor com razoável automação, que se desenvolveu mais por causa do preço do que do quantum. O volume produzido não aumentou muito, portanto, a mão-de-obra também não. Há um fator adicional: a grande safra de 2004 foi plantada em 2003, por isso a mão-de-obra cresceu pouco em 2004. De qualquer forma, aprendemos que o desafio é manter o crescimento econômico a uma taxa mínima de 4,5% a 5%. Os dados sobre emprego que tabulamos, com base no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do primeiro semestre de 2005, já nos mostram, no entanto, uma queda ligeira do emprego industrial. Um dos fatores inibidores do crescimento é essa absurda taxa de juros que se pratica no país. Falo metaforicamente, mas ou trocamos a meta de inflação pela de crescimento, tentando conciliar as duas coisas, ou voltaremos a patamares sociais inferiores. Há quem diga que a única forma de crescer é manter a inflação muito baixa, mas há maneiras diferentes de pensar essa questão. O problema do governo hoje é a dívida interna alta, que é alimentada pelos juros.

A questão do déficit zero me parece um malabarismo inteligente, uma trava geral para acomodar a sociedade à idéia de que é preciso zerá-lo. Mas pode-se chegar a isso de várias maneiras, cortando despesas públicas e de custeio, diminuindo fortemente o juro, elevando a arrecadação, etc. Falar é fácil, a questão é como chegar lá. A carga tributária está no limite suportável pela sociedade. Portanto, não se pode aumentar a receita via arrecadação. E essa história de cortar o custeio do governo é muito relativa. Várias demandas sociais clamam por mais governo, e não por menos - ainda que se possa eventualmente efetivar uma ação pública mais eficiente com menos gastos. Certamente a redução significativa da taxa de juros é um elemento vital. Sabemos que o câmbio atual é altamente inconveniente a médio prazo para manter aquilo que é mais vigoroso, a exportação. É um jogo complicado, bastam as referências gerais de que a manutenção desse crescimento implica maior investimento público e privado, o que novamente tem a ver com a redução da taxa de juros.

O Brasil reagiu, pois, com o agribusiness - sem falar no caso da Embraer, que é uma coisa excepcional, mas complicada. A equalização das taxas de financiamento internacional leva a empresa a onerar o Tesouro para vender um avião. A questão hoje é saber que padrão de inserção um país pode ter na economia global que lhe permita absorver vantagens da lógica global sem assumir suas desvantagens. O caso referencial é a China, grande plataforma de fabricação industrial do mundo, com salários ridiculamente inferiores aos brasileiros. Há pouco tempo, comprei um conjunto de facas chinesas de cozinha, de boa qualidade, por R$ 36. Que empresa brasileira do setor agüenta um negócio desses? Considerando a China uma imensa reserva de mão-de-obra baratíssima e razoavelmente qualificada, o que sobra para a América Latina de sua opção pela industrialização como caminho para o crescimento?

É preciso olhar o modelo de inserção com muito cuidado. Atualmente a China é o único país que tem pelo menos quatro estratégias simultâneas. Está aberta ao que lhe convém, entendeu a lógica da fragmentação das cadeias produtivas globais e transformou o país num grande chão de fábrica, produzindo 30% da linha branca mundial. Está totalmente aberta nesse setor, absorvendo parte da imensa mão-de-obra que vem do campo, mas mantém-se fechada em tudo o que lhe convém. Em tecnologia de lançamento de satélites, por exemplo, o país lidera nos foguetes, lança-os para empresas norte-americanas e tem tecnologia estatal de ponta fechadíssima, além de ser um grande "pirata" em relação a patentes. Mas entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) com tanto peso que seu diretor-geral afirmou que ou temos a China envolvida ou não temos próxima rodada. Enfim, o país definiu um padrão de inserção que lhe permite ser a China atual. Mas essa história de que ela substituirá os EUA como país hegemônico é boa para vender revista, não é concreta. Se aumentar nos próximos 20 anos a 8% ao ano, o PIB chinês vai passar de US$ 1,3 trilhão para pouco mais de US$ 5 trilhões, o tamanho do PIB do Japão atual. Se os EUA crescerem só 2% ao ano nos próximos 20 anos (são 4% atualmente), chegarão a um PIB de US$ 16 trilhões, portanto, três vezes maior do que o da China. Por isso, estaremos condenados, para o bem ou para o mal, a viver sob a hegemonia norte-americana por muito tempo.

Além disso, a China tem imensos conflitos de natureza política e social. Visitei o país em 1985, num período de pequena abertura em meio a um intenso fechamento. Lá existia uma pobreza imensa, mas não havia miseráveis. Todos tinham seu chinelinho de dedo, a túnica, a tigelinha de arroz, alguma educação e assistência médica. Hoje a China tem uma riqueza expressiva, mas contabiliza um gigantesco estoque de miseráveis. Um exército de 90 milhões de chineses, que saíram de suas regiões em busca de algo melhor, circula pelo país como um enorme lúmpen em busca de emprego. Fora de suas cidades, perdem assistência pública, saúde, educação. São os novos párias da sociedade chinesa.

É claro que o país tem um governo muito eficaz, inteligente e autoritário, próprio para suas circunstâncias atuais. Há curiosidade para entender como é a relação do governo com o novo capitalismo chinês, aquele que veio a partir da diáspora de Taiwan. Os dirigentes do Partido Comunista dizem: "Os capitalistas bons são absorvidos pelo partido; os ruins, rejeitados". É uma visão bastante simplificada e caricata de um fenômeno complexo. Apesar de tudo, o país encontrou seu espaço de inserção e cresce quase 10% ao ano, o que faz uma diferença imensa.

Com menos riscos políticos e sociais, a Índia tem um crescimento anual de cerca de 6% há 20 anos. O caminho desse país é outro, não quer saber de indústria, mas de serviços. Hoje é o grande prestador de serviços mundiais, não só na área de software como também na de call centers. Em relação ao software, dizem que o indiano já nasce matemático. E com 1 bilhão de indianos há uma massa crítica de matemáticos muito expressiva, favorecendo essa especialização. Há outra vantagem fantástica. Na Constituição indiana pode-se ler que a língua oficial ainda é o inglês. Quando comentamos o fato com dois pesquisadores indianos que estiveram no IEEI, eles disseram: "Nós dois somos pesquisadores do mesmo instituto, em Nova Delhi, mas viemos de províncias diferentes; como não nos entendemos nos nossos dialetos, falamos inglês entre nós". Que grande vantagem! A Índia está descobrindo seu caminho de inserção e tem um saldo de mais de US$ 15 bilhões só em serviços. Há outro dado: o país virou potência nuclear e atômica, com todo o pacifismo de Nehru.

Como países como o Brasil poderão buscar seu padrão de inclusão mundial? Essa é a pergunta central. Não será mais na indústria? Talvez num agribusiness turbinado, com mais tecnologia e investimento. A inserção na economia global é inexorável. Mas entrar de peito aberto, imaginando que a mão invisível de Adam Smith vai resolver tudo, não funciona. É preciso ter um projeto realista de país.

De 1990 para cá, temos dados assustadores que são auto-explicativos. O crescimento do PIB anual per capita nesse período: Brasil 0,74%, Espanha 2,46%, Índia 4,16%, Coréia do Sul 5,36%, China 8,83%, Irlanda 6,29%. É verdade que a Irlanda fez um projeto de inserção, que não é necessariamente definido pelo governo, mas também pela sociedade. Certamente passa pela educação, mas não nos iludamos: ela só é condição necessária, está longe de ser suficiente. Aumento de educação num país que não cresce resulta na queda de renda; o sujeito que trabalha com computador e ganha R$ 3 mil pode ser substituído por um dos muitos recém-formados que se dispõem a receber R$ 2 mil. Fazendo uma caricatura, se tivéssemos hoje mais 20 mil advogados, teríamos mais 20 mil motoboys; aliás, os dois únicos mercados de trabalho mundiais que crescem para jovens são os de motoboys e telemarketing. É triste e revelador.

Vamos entrar um pouco no desafio político brasileiro, um quadro complexo. Recentemente, em uma de nossas jornadas temáticas no instituto, discutimos o que estava dando errado no governo Lula. Participaram Clóvis Carvalho, que foi ministro da Casa Civil do governo Fernando Henrique, e Luiz Eduardo Greenhalgh, genuíno integrante dos velhos líderes do PT. Na época, a crise política não havia atingido toda a dimensão de agora, queríamos apenas discutir governabilidade. Luiz Eduardo dizia que o grande objetivo de José Dirceu era atrair o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) para garantir a governabilidade. Como isso não foi possível, vieram outros partidos, com "o que havia de pior neles". É uma tese razoável, mas não explica o que aconteceu no quadro político, que sempre esteve contaminado por financiamentos "exóticos" de campanha. Isso sempre foi um problema, cuja dimensão se agrava quando se vê a enorme confusão entre público e privado nas últimas duas décadas, em que o Estado desaparece na sua condição de gerir o espaço público e é obrigado a passar o pires, no sentido mais negativo do termo, para o setor privado. Não existe um parquezinho sem uma placa do shopping que patrocina aquele pedaço de grama aparada, pois não há dinheiro público para ele. Aconteceu algo parecido no governo Fernando Henrique e também no caso de Lula. Para reformar o Alvorada não há verba da presidência, então alguns empresários fizeram uma "vaquinha" e providenciaram tudo. Ora, se para consertar goteiras da residência oficial do presidente da República é preciso chamar um grupo de empresários, chegamos à falência do Estado. O último conserto do Palácio da Alvorada custou algo como R$ 10 milhões. Que gota no oceano é isso se comparado com uma arrecadação de 38% do PIB? Trata-se, obviamente, de uma grave contaminação do público pelo privado.

Da mesma forma, é uma imensa perda um governo popular como este ser envolvido na "vala comum" da política tradicional e nos seus maus hábitos.

Por outro lado, ou se barateiam as campanhas políticas ou esse entremear de público e privado ficará cada vez mais intenso.

Outra questão contraditória é a bendita fidelidade partidária. Contraditória porque a defendo, e o único partido que a adotava era o PT. A razão disso é muito simples. As reformas, que são tão necessárias, exigem programas e fidelidade partidária para ser votadas. Senão acontece como agora, quando Lula teve de fazer alianças cada vez mais amplas, que lhe custaram muito caro.

O que está fazendo Angela Merkel na Alemanha? Ela elencou as medidas do desmonte de benefícios sociais, o que é muito triste, mas parece necessário. E defendeu-as na campanha eleitoral! Nossos políticos sempre fizeram o contrário, todos eles. Basta lembrar a questão dos "10 milhões de empregos" na última campanha presidencial. Os dois candidatos prometeram! O discurso de campanha é uma coisa, depois é outra; e aí caímos na degradação dos padrões e na decepção. A questão da fidelidade partidária tem a ver com a coragem dos partidos para dizer a que vêm, qual é seu programa real de governo.

Para terminar, um pouco de discussão sobre a complexa questão da ética. Primeiramente, a velha distinção de Max Weber: a ética da responsabilidade e a da convicção. A da convicção é ótima para as oposições, a da responsabilidade é inerente a quem é da situação, a quem governa. Há uma diferença entre as duas, e por isso é fundamental existir um partido de esquerda, até radical, no Brasil, assim como um partido de direita. Acho, porém, que nenhum deles serve para governar, apenas para ser oposição, balizar referências, discutir, etc.; pois a ética da convicção é fundamental; já a da responsabilidade é mais complicada. Nós, intelectuais, podemos nos dar ao luxo de cortar os nós, mas o político tem de desamarrá-los.

Lembro ainda a questão do conceito de verdade, e como se transformou todo o aparato político brasileiro num grande tribunal. Quem mente, quem diz a verdade? Estamos nos resumindo a isso, como numa crônica política rodriguiana. É Nelson Rodrigues em estado puro, é nisso que se transformou a política nacional. E aí se pergunta o que é a verdade. De acordo com os filósofos pragmatistas norte-americanos, a verdade é um termo relativo. Richard Rorty diz o seguinte: quem está mais próximo da verdade é aquele que é capaz de demonstrar para a maioria dos cidadãos em seu entorno que o que ele fala é verdade. Portanto, trata-se de um conceito relativo. Acreditamos nisso, não acreditamos naquilo. Os impeachments nunca foram estritamente legais, sempre foram mais políticos, inclusive o de Collor. Então, impeachment é um ato político que reflete a percepção da sociedade sobre o que é errado ou não. Lembremos que ética é a prática comum aceita por todos como razoável.

Para encerrar esta discussão, é Maquiavel quem diz: a ética do governante é mais ou menos própria, tudo depende dos resultados de suas ações de governo. Se elas forem aplaudidas pela maioria da sociedade, porque beneficiam um amplo espectro dela, haverá tolerância com o governante.

Bem, se eu trouxe a vocês mais dúvidas do que certezas, cumpri minha missão. Também as tenho, dúvidas, mais que certezas.

 

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