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O homem voa
Há quase cem anos, o 14-Bis de Santos-Dumont decolava em Paris
CECÍLIA PRADA
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Preparando a celebração do centenário do primeiro vôo com um aparelho mais pesado que o ar, realizado por Alberto Santos-Dumont em seu avião 14-Bis, em Paris, a 23 de outubro de 1906, uma grande exposição sobre o inventor brasileiro foi organizada no Museu do Ar e do Espaço de Le Bourget, na capital francesa, de julho a outubro do ano passado, pelo Instituto Cultural Ecoeconômico Espírito Santo. Neste ano essa exposição deverá percorrer o Brasil, com o intuito de resgatar a memória de uma de nossas maiores personalidades - cuja glória infelizmente tem sido obscurecida pela controvérsia que credita aos irmãos Wright, norte-americanos, o pioneirismo do feito, em vôo com seu avião Flyer, em 17 de dezembro de 1903.
Essa complexa questão agitou as primeiras décadas do século 20, e até hoje há quem não se conforme com a primazia atribuída a Orville e Wilbur Wright. Argumentam que seu feito seria discutível, pois além de não ter o caráter público, reconhecido, do vôo de Santos-Dumont - foi realizado em uma praia da Carolina do Norte, Kitty Hawk, com poucos assistentes e nenhuma divulgação -, seu aparelho teria sido alçado com auxílio de uma catapulta. Na contra-argumentação, os partidários dos Wright alegam que o dispositivo usado constaria apenas de trilhos feitos para facilitar o deslize do avião ainda em terra, e não de uma catapulta.
Seja como for, não é possível negar o papel relevante de Santos-Dumont nos primórdios da aviação, pois de 1897 a 1910 ele fez contínuas e abertas experiências de vôo em Paris, com aparelhos de sua própria invenção - primeiro em balões, sucessivamente aperfeiçoados até chegar ao avião, em 1906. Foi inegavelmente o primeiro homem a voar em um balão dirigível, dotado de motor - em 1898 criou o Nº 1, sucessor do Brasil (de hidrogênio), que no entanto acidentou-se antes de voar. No ano seguinte, ele foi aperfeiçoando seu invento, até que em 13 de novembro de 1899 conseguiu, com o Nº 3, voar durante 20 minutos em torno da Torre Eiffel.
Com o Nº 6, ganhou, em 1901, o importantíssimo Prêmio Deutsch, por conseguir realizar em 30 minutos uma viagem de ida e volta à base, no Parque da Aeronáutica, circundando a mesma torre. A estréia do 14-Bis deu-se no dia 13 de setembro de 1906, com um breve vôo de 13 metros, a apenas um metro de altura, terminando com a queda do aparelho. Pelo seu vôo de 60 metros, de 23 de outubro do mesmo ano, Santos-Dumont ganhou o Prêmio Archdeacon e foi reconhecido pelas maiores autoridades aeronáuticas como o primeiro homem a conseguir voar com um aparelho mais pesado que o ar.
Asas da imaginação
Alberto Santos-Dumont nasceu em Cabangu (hoje Santos Dumont), Minas Gerais, em uma fazenda onde seu pai, engenheiro, dirigia a construção de um ramal da ferrovia Dom Pedro II. Era o sexto dos oito filhos do casal, formado por Henrique Dumont, filho de imigrantes franceses, e Francisca de Paula Santos, cuja família, rica, possuía uma lavra de ouro em Mariana (MG). Depois de administrar por um tempo uma fazenda do sogro, Henrique pôde comprar, em 1879, uma grande propriedade rural na região de Ribeirão Preto (SP), que se tornaria em alguns anos a maior produtora de café do país. É compreensível, portanto, como após a morte do pai o jovem Alberto pôde, aos 19 anos de idade, instalar-se em Paris para dedicar-se totalmente a seu projeto existencial, o de dar asas ao homem.
No Brasil, recebera aulas de professores estrangeiros, importados pela família, e tivera uma educação formal em grau secundário, em escolas de Campinas e de São Paulo. Mas desde muito cedo, ainda nas fazendas em que nasceu e se criou, concentrara-se em tecnologia - primeiro familiarizando-se com toda a maquinaria necessária ao beneficiamento do café e tornando-se o "consertador" de tudo o que em ambiente doméstico se quebrava, da máquina de costura da mãe e das bicicletas dos irmãos à aparelhagem da fazenda. Desde os 7 anos dirigia os "locomóveis" - máquinas a vapor, providas de rodas e que serviam para o transporte dos grãos de café. Tão imensa era a fazenda da família que Henrique - chamado de Rei do Café - instalou nela uma linha férrea particular, que se estendia por 96 quilômetros, para facilitar os trabalhos de colheita. Aos 12 anos de idade o franzino mas irrequieto Alberto já tinha autorização para dirigir uma das enormes locomotivas Baldwin, que puxava um vagão carregado.
Como todos os garotos do seu tempo, deliciava-se o futuro aeronauta com as deslumbrantes narrativas de ficção científica do francês Júlio Verne. É curioso constatar que duas décadas mais tarde, em 1904, seria a vez do próprio Júlio Verne manifestar-se sobre as experiências do inventor brasileiro: "Acredito, como Santos-Dumont, que o futuro da aerostação está em inventar um motor de tanta energia e tão leve que, sem necessidade de aumentar a força ascensional do aeróstato, este possa lutar contra o vento".
Em seu livro autobiográfico Dans l’air, publicado em Paris em 1904, Santos-Dumont descreve como desde menino, deitado à sombra da varanda da casa-grande, contemplava o céu brasileiro, "onde basta erguer os olhos para se apaixonar pelo espaço livre", e no qual já projetava suas futuras aeronaves. Na adolescência começou a adquirir conhecimentos mais aprofundados sobre a aerostação, fascinado por experiências como a dos irmãos Montgolfier (os primeiros a subir em balões de ar quente, em 1783) e de todos os que, durante o século 19, se dedicaram a esse esporte arriscado. Aos 15 anos presenciou um espetáculo do gênero, em uma feira de São Paulo, e ficou muito impressionado. Diz, porém, que a maior parte do tempo procurava esconder essa sua paixão: "Esses devaneios eu os guardava para mim. Nessa época, no Brasil, falar em inventar uma máquina voadora, um balão dirigível, teria sido revelar-se um desequilibrado, um visionário. Aeronautas que subiam em balões esféricos eram considerados hábeis profissionais, não muito diferentes de acrobatas, e que o filho de um fazendeiro de café sonhasse em se tornar um êmulo deles teria sido quase um pecado social".
Não era muito bem aceito pelo pai o temperamento introvertido, tímido, do pequeno sonhador, que revelava preferências bem diferentes das brincadeiras mais rudes e do gosto pela caça manifestado por seus irmãos. Essa extraordinária timidez foi uma constante na vida do inventor, mesmo quando estava no auge da fama e cultivava uma animada vida social. Nunca demonstrou interesse por mulheres, e ao que tudo indica teria sido homossexual - de uma maneira absolutamente discreta, como convinha à época em que vivia. No entanto, Henrique Dumont apoiou-o sempre no que se referia a seus estudos e quando, já muito doente, repartiu a fortuna pelos filhos, em fevereiro de 1892, emancipou Alberto, para que pudesse prosseguir sua carreira na França.
Em seus escritos autobiográficos diz Santos-Dumont que foi sempre convicção sua, profunda, uma verdadeira obsessão, a de que o homem poderia voar. E recorda uma brincadeira, a de "passarinho voa?", que as crianças Dumont costumavam fazer, com seus amiguinhos, em torno da mesa de jantar da fazenda. O líder perguntava: "Pombo voa?", "Galinha voa?", "Abelha voa?", e os demais tinham de levantar o dedo, indicando que sim. Mas ia também intercalando perguntas insidiosas, rapidamente, do tipo "Cachorro voa?", "Raposa voa?", para ver se algum desprevenido errava, caso em que receberia uma punição ("pagar uma prenda", se dizia). Quando alguém perguntava: "Homem voa?", todos trocavam olhares zombeteiros - "Pois aí", diz o inventor, "eu sempre levantava o dedo bem alto, em sinal de absoluta convicção, e me recusava energicamente a cumprir o castigo. Quanto mais riam de mim mais contente eu ficava, esperando que algum dia fosse eu a rir por último".
Esse dia, como sabemos, realmente chegou. E foi comemorado pelo amigo Pedro Guimarães, em carta que lhe mandou quando le petit Santos (como o inventor era chamado, por ter apenas 1,60 metro) conseguiu, em 19 de outubro de 1901, ganhar o Prêmio Deutsch com seu balão dirigível Nº 6: "Você se lembra, meu caro Alberto, do tempo em que brincávamos juntos de ‘passarinho voa?’ (...) O homem voa, meu caro! Você tinha razão em levantar o dedo, pois acaba de demonstrá-lo voando por cima da Torre Eiffel. E tinha razão em não querer pagar a prenda. O senhor Deutsch paga-a por você. Bravo! Você bem merece este prêmio de 100 mil francos".
Essa vultosa quantia, aliás, seria integralmente distribuída pelo inventor, metade entre sua equipe técnica e a outra entre operários pobres de Paris. O desprendimento em relação ao dinheiro e a generosidade de Santos-Dumont foram sempre notórios. Não se interessava em tirar proveito de suas invenções e justamente por isso pôde ser desbancado pelos irmãos Wright, que estiveram desde o início envolvidos com a venda de aeronaves aos governos, prevendo inclusive seu uso militar.
Um dândi
De 1892 a 1910, o Petit Santos encantou Paris. Tornou-se uma figura popular e extremamente querida da população, que se habituou às suas proezas aéreas quase cotidianas, aplaudia-o a cada conquista, inquietava-se com seus acidentes - mais pitorescos do que graves. Com seu balão Nº 9, em forma de charuto, que denominou La Baladeuse ("A Passeadora"), ele realmente passeava por toda a cidade e pelos arredores, como se estivesse em um automóvel. Gostava de surpreender os parisienses nas suas atividades mais rotineiras - descendo com seu balão, por exemplo, no terraço de um café, para tomar alguma coisa e depois partir novamente. Ou participando, das alturas, de uma parada militar que celebrava o 14 de Julho, quando causou frisson nas autoridades ao disparar 21 tiros de revólver como saudação àquele que considerava seu segundo país. Tão integrado sentia-se na terra de seus avós que passou a assinar seus dois sobrenomes unindo-os com um sinal de igualdade, em vez de um hífen.
Gostava também de circular na alta sociedade, à qual pertencia por fortuna e educação, e teve oportunidade de privar da intimidade de reis e membros da nobreza, de milionários, intelectuais e artistas renomados. Costumava receber para jantares ou reuniões em sua elegantíssima casa de esquina, no número 5 da Rue Washington. Só que tinha prazer em surpreender os visitantes com alguns "aperfeiçoamentos" do mobiliário - chegou a fazer suspender toda a mobília da sala de jantar do teto, por meio de cordames, para se acostumar à sensação de comer num aeróstato. Mas, quando inevitavelmente o teto cedeu e veio abaixo, contentou-se em obrigar seus convivas a jantarem empoleirados em cadeiras de 2 metros de altura, em mesas de altura correspondente, com acesso facilitado por meio de escadas portáteis.
Vestia-se impecavelmente sempre, não só no rigor da moda mas com originalidade digna de um inventor - criou sapatos com saltos disfarçados, que lhe aumentavam a estatura, colarinhos muito altos e empertigados que levaram o seu nome, uma capa de ir à ópera forrada de seda e que virou coqueluche no tout Paris. E fez do chapéu amassado, de abas abaixadas, uma grife pessoal. Mas poucos tinham conhecimento de como chegara à "invenção" desse objeto: em um dos passeios habituais na sua Baladeuse, o carburador do motor começou a se incendiar. Santos-Dumont tirou seu impecável chapéu e conseguiu abafar a chama com ele. Quando voltou ao aeródromo, foi fotografado com o chapéu deformado, com abas abaixadas, que a partir desse dia se tornou uma espécie de amuleto pessoal, marcando sua imagem.
Insatisfeito por não poder controlar seu tempo de vôo usando o clássico relógio masculino de bolso, do tipo cebolão, já que mantinha as duas mãos no leme de suas aeronaves, o inventor instou com seu grande amigo, o joalheiro Louis Cartier, para que criasse um modelo masculino de relógio de pulso - um objeto que desde o tempo da rainha Elizabeth I fora usado pelas mulheres. O modelo Santos difundiu-se logo e é fabricado até hoje pela Maison Cartier. A popularidade de Santos-Dumont foi tanta que sua efígie - ou a de seu balão em forma de charuto - foi reproduzida de todas as maneiras, em doces, brinquedos, objetos domésticos, e até nos véus dos chapéus femininos.
Por ocasião de sua viagem triunfal aos Estados Unidos em 1902 - quando foi recebido pelo presidente Theodor Roosevelt -, os jornais norte-americanos o consagraram, enquanto os chargistas aproveitavam ao máximo o tema de um provável congestionamento de tráfego aéreo, no futuro. Competindo com outros periódicos em busca de novidades, o "New-York Mail and Express" enviou um repórter ao apartamento do inventor em Paris, para que pudesse descrever bem sua personalidade. Citado pelo escritor norte-americano Paul Hoffman, um dos melhores biógrafos de Santos-Dumont (Asas da Loucura), esse artigo, cujo autor não é identificado, dá a mais detalhada descrição da "dupla personalidade" do inventor brasileiro: "(...) o ‘Bandeirante dos Ares’, o homem criativo, o intrépido navegador aéreo e o senhor Santos-Dumont em casa são indivíduos bem distintos. Um é cheio de entusiasmo, brilho, ousadia; o outro é indiferente, quase apático, com uma timidez quase feminina sem o charme feminino". Descreve minuciosamente a decoração, feita em uma profusão de tons pastel, azul e branco, rosa, dourados, com paredes forradas de seda e filó, grandes laçarotes, concluindo que ela "sugere a presença de uma jovem elegante, mas é a expressão do gosto de um dos grandes inventores da época, que revela sua dupla personalidade". O mais surpreendente, um "segredo muito intrigante", diz, é a maneira como Santos-Dumont passa seus momentos de lazer: "Dedica seu tempo a bordar, a tricotar e até mesmo à arte mais difícil da tapeçaria".
Sobre sua mesa de trabalho, porém, permanecia a fotografia emoldurada de uma bela jovem de 19 anos da alta sociedade, a cubana Aida de Acosta - nenhuma namorada, ou membro da família, mas sim uma pessoa a quem muito admirava, definindo-a como la première aéro-chauffeuse du monde ("a primeira mulher aeromotorista do mundo"). A jovem o procurara em 1903, pedindo emprestado seu dirigível Nº 9, para também poder voar. A princípio ele se negou, supondo que queria acompanhá-lo como passageira em algum vôo. Ela insistia, queria aprender a pilotar o aeróstato e a voar sozinha. Depois de lhe dar três aulas em terra e uma em um "jantar aéreo", Santos-Dumont autorizou-a a voar solo, no seu aparelho. O que aconteceu no dia 27 de junho, quando ela realizou uma viagem de ida e volta de Neuilly ao campo de Bagatelle, enquanto seu instrutor se contentava em segui-la de bicicleta, por terra. Quando a moça, triunfante, desceu do balão, foi ovacionada por uma pequena multidão, fascinada com aquele espetáculo inusitado - uma mulher piloto! Mas seus pais não acharam a mínima graça. Envergonhados com sua ousadia, ameaçaram deserdá-la se tentasse repetir a proeza, e suplicaram ao inventor brasileiro que mantivesse o nome dela fora dos jornais. E assim a primeira mulher aeronauta do mundo foi penalizada por sua coragem e espírito de aventura. Contrita e conformada com os preconceitos da época, Aida teve uma vida bem convencional de mulher de sociedade, e nunca mais contou a ninguém, nem ao marido, o que considerava uma simples "travessura de colegial". Segundo Paul Hoffman, só rompeu seu silêncio no início dos anos 1930 - em um jantar, seu marido, coronel altamente posicionado do exército norte-americano, discutia com um jovem oficial da marinha a utilização dos dirigíveis para fins navais. Para não ser indelicado com a anfitriã, este começou a explicar-lhe os rudimentos técnicos dos equipamentos mais leves do que o ar. Pode-se imaginar o espanto de todos quando Aida decidiu pôr um fim na ingênua explicação do jovem, revelando: "Eu voei sozinha em um dirigível. Eles são muito divertidos".
O amargo fim
Durou pouco a euforia de Santos-Dumont após a consagração mundial recebida pelo vôo do 14-Bis. No final de 1907, seus grandes rivais, os irmãos Wright, já haviam convencido seus compatriotas de que seu vôo de 1903 em Kitty Hawk tinha realmente a primazia, na qualidade de mais pesado que o ar. Restava convencer os europeus. Em maio de 1908, os Wright chegaram a Paris para fazer experiências com seu aparelho Flyer no próprio local onde Santos-Dumont se exibia. Tiveram de vencer muita resistência, mas já no final daquele ano Wilbur se impunha, batendo um recorde de vôo, em 2 horas e 18 minutos. Aos poucos Santos-Dumont ia sendo desbancado e foi caindo em depressão. Escreveu mais tarde: "Foi uma experiência penosa para mim ver - depois de todo meu trabalho com dirigíveis e máquinas mais pesadas do que o ar - a ingratidão daqueles que há pouco tempo me cobriam de glória".
Após o triunfo do 14-Bis fracassaram completamente as experiências de Santos-Dumont com as aeronaves seguintes, do número 15 ao 19. Em novembro de 1907, pôde exibir, enfim, outro modelo bem-sucedido, o Demoiselle, leve e gracioso, que foi o primeiro avião esportivo do mundo. Nos dois anos seguintes voou constantemente, visitando amigos que moravam no campo, e em setembro de 1909 atingiu um duplo recorde, o de velocidade, com 90 quilômetros por hora, e o de altura, voando a 196 metros do solo.
Como o estado depressivo do inventor piorava, acrescido até por dificuldades financeiras, os amigos o aconselharam a patentear o invento do Demoiselle - ele se recusou a fazê-lo, declarando que aquele era um presente seu para a humanidade e que preferia ter de terminar seus dias em um asilo a cobrar dos outros o privilégio de voar que tivera.
Em 4 de janeiro de 1910, Santos-Dumont sofreu um acidente sério com o Demoiselle, despencando de uma altura de 33 metros. Foi seu último vôo. Na primavera daquele ano ficou gravemente doente, apresentando sintomas de visão dupla e vertigem que os médicos diagnosticaram como esclerose múltipla - o inventor tinha então 36 anos. Em 1911 mudou-se definitivamente de Paris para uma pequena casa na praia de Bénerville, perto de Deauville - que teve de deixar em 1914, erroneamente denunciado pelos vizinhos à polícia como espião alemão, por manter uma vigilância sobre o mar, com seu telescópio, em busca de submarinos inimigos. Humilhado por sua casa ter sido revistada, resolveu partir, não sem antes queimar todos os seus documentos referentes à aeronáutica.
Dali por diante o estado mental de Santos-Dumont se degradaria gradativamente, e o diagnóstico inicial de esclerose múltipla começou a ser contestado, sendo os seus sintomas associados a problemas psíquicos - talvez genéticos, pois sabe-se que sua mãe, Francisca, se suicidara em 1902, tomada de grande depressão, fato escondido pela família, na época.
Nas duas décadas seguintes, Santos-Dumont teve de alternar temporadas em residências próprias no Brasil com longas estadas em clínicas de repouso, na Suíça e na França, mantendo-se o mais afastado possível das notícias sobre o que considerava o perturbador progresso da aviação. A partir da 1ª Guerra Mundial, ao verificar como seu invento se tornara uma máquina mortal, insistiu inutilmente com os vários países para a desmilitarização das máquinas voadoras. Apelou inclusive à Liga das Nações, dizendo: "Aqueles que, como eu, são os humildes pioneiros da conquista do ar, tinham em mente a criação de um novo meio de evolução das pessoas na terra, em vez do fornecimento de novos métodos de destruição".
Dois episódios apressaram seu fim. Ao voltar ao Brasil em 3 de dezembro de 1928, após mais uma longa temporada em uma clínica suíça, enquanto o navio em que vinha entrava na baía da Guanabara, 12 renomados cientistas e intelectuais embarcaram em um hidroavião batizado com o nome de Santos-Dumont, em um vôo de saudação a ele. Mas enquanto o inventor os observava do convés, sorrindo e feliz, em uma manobra desastrada o hidroavião explodiu, matando todos os seus ocupantes. Cada vez mais obcecado pela morte, e com o que julgava sua culpa por ter inventado um engenho mortífero, Santos-Dumont teve de ser internado novamente.
Em 1931 seu sobrinho Jorge Dumont Villares, que lhe foi sempre muito dedicado, retirou-o de uma clínica em Biarritz, no sul da França, trazendo-o de volta ao Brasil. Mas, quando irrompeu a Revolução Constitucionalista de 1932, seu estado agravou-se, ao ver a luta fratricida. Tio e sobrinho procuraram refúgio, seguindo ordens médicas, em um hotel do Guarujá - onde tinham inclusive de fazer as refeições no quarto, pois Santos-Dumont, outrora tão elegante, descuidava-se completamente de sua aparência, não querendo nem mais usar um terno ou barbear-se.
Em 23 de julho de 1932, quando estava no saguão do hotel, ouviu um avião bombardear um alvo próximo. Dando um pretexto qualquer ao sobrinho, retornou à sua suíte. Vestiu pela primeira vez em meses um terno. Pegou duas de suas elegantes gravatas vermelhas, de outrora - e com elas se enforcou, no banheiro. O ascensorista do hotel relataria suas últimas palavras, ao subir de volta: "Eu nunca pensei que minha invenção fosse causar derramamento de sangue entre irmãos. O que eu fiz?"
Outras proezas
Na história aeronáutica brasileira, pioneiros existem de sobra
O Brasil tem, evidentemente, vocação aeronáutica. pois Santos-Dumont não foi o único dos seus pioneiros, nesse campo. Um deles é o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nascido em Santos (SP) em 1685, e morto em 1724 em Toledo, Espanha. Em 1709 ele conseguiu elevar-se, em várias experiências perante a corte de Lisboa, em um balão de ar quente de sua invenção, precedendo assim de 74 anos os inventores oficiais do engenho, os irmãos Montgolfier, franceses, que também voaram dessa forma, em 1783.
A partir de 1874 um inventor paraense, Julio Cezar Ribeiro de Souza (1843-1887), fez aprofundados estudos sobre a dirigibilidade dos balões, legando à posteridade uma base teórica sólida que teria servido para as experiências de balonistas seus contemporâneos. Como os militares franceses Charles Renard e Arthur C. Krebs, que em 1884 foram os primeiros a realizar uma viagem em circuito fechado, percorrendo 7,6 mil metros em 23 minutos - em um aeróstato de estrutura fusiforme dissimétrica que fora criada e preconizada por Julio Cezar, e sem que fizessem a menor referência à patenteação do invento pelo brasileiro, justamente na França, três anos antes. A mesma estrutura elíptica, fusiforme, seria também usada, a partir do balão Nº 4, de 1900, por Santos-Dumont, evoluindo até a forma de "charuto", consagrada no vôo de 1901 que lhe valeu o Prêmio Deutsch. A oficina que fabricava os aeróstatos de Santos-Dumont era a mesma Maison Lachambre que 20 anos antes construíra um balão com esse formato para o inventor paraense, seguindo seus desenhos.
Formado pela Escola Militar do Rio de Janeiro, Julio Cezar serviu na Guerra do Paraguai - quando se fez pela primeira vez uso de balões militares de observação na América do Sul. Foi jornalista e poeta, professor, funcionário público, mas a partir de 1874 dedicou-se a estudar o vôo dos pássaros, buscando uma teoria que viabilizasse a navegação aérea. O que conseguiu em 1880, quando declarou ter descoberto o ponto de apoio dos corpos mais leves do que o ar e solicitou verbas oficiais para mandar construir na Europa seu modelo de balão. Ainda em Belém, realizou experiências com balões pequenos. Em seguida construiu um modelo maior, que deveria ser preenchido com hidrogênio - uma experiência não completada pela impossibilidade de obter o gás naquela cidade. No Rio de Janeiro, em sessão pública realizada no Instituto Politécnico Brasileiro, em 15 de março de 1881, leu seu trabalho Memória sobre a Navegação Aérea, documento conservado até hoje no Arquivo Nacional. Viajando para a França com apoio do governo brasileiro, nos dias 8 e 12 de novembro do mesmo ano realizou em Paris experiências vitoriosas com seu balão Victoria (não pilotado), sendo recebido como membro associado na Sociedade Francesa de Navegação Aérea. De volta ao Brasil, repete essas experiências, em Belém, na manhã de Natal de 1881 e na Escola Militar do Rio de Janeiro, no dia 29 de março de 1882, na presença do imperador dom Pedro II.
O restante da curta vida de Julio Cezar foi de constantes lutas para fazer valer suas patentes e obter mais verbas, principalmente do governo do Pará. Em maio de 1886 conseguiu voltar a Paris, para debater publicamente com os capitães Renard e Krebs sobre a prioridade de seu invento, mas só obteve desdém daqueles que classificava de "plagiários ridículos". Após realizar mais experiências diante da representação brasileira em Paris, volta a Belém, onde se dedica a escritos teóricos. Poucos meses antes de morrer - de beribéri, aos 44 anos - escrevia, amargurado: "O mundo inteiro está completamente mistificado pelos felizes plagiários do meu invento, para quem, num país de economias, chovem os milhões para balões colossais do meu sistema, quando eu só tive migalhas no país dos grandes esbanjamentos, onde a ciência está completamente mistificada".
No seu estado natal o inventor goza de prestígio, pois há em Belém uma avenida e um aeroporto internacional com seu nome. Nos últimos anos processa-se um movimento nacional de redescoberta desse notável pioneiro, apoiado em publicações importantes, como a de um artigo da edição brasileira da revista "Scientific American" (nº 19, de dezembro de 2003) e a do livro Memórias sobre a Navegação Aérea, organizado por uma equipe de cientistas e publicado pela Editora da Universidade Federal do Pará, também em 2003. Sua vida foi contada em uma peça de teatro, Julio Irá Voar (2004), de Carlos Correia Santos. Com patrocínio da TV Cultura do Pará, o cineasta Horácio Higuchi está produzindo um documentário, O Homem do Balão Extravagante, ou As Tribulações de um Paraense que quase Voou.
Bateu asas e voou
O que foi feito do Museu da Aeronáutica de São Paulo? Durante mais de 40 anos ele foi um dos marcos do Parque Ibirapuera, abrigando no Pavilhão Professor Lucas Nogueira Garcez (hoje Oca) peças preciosas que contavam a história da aviação, réplicas de aviões famosos dos pioneiros, documentos pessoais de Santos-Dumont, jóias, condecorações e o avião Jahú, no qual João de Barros e Newton Braga realizaram, em 1927, a primeira travessia do Atlântico por uma tripulação brasileira - este, pelo menos, está hoje restaurado e preservado no Museu Aeroespacial do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. Mas os outros modelos estão praticamente perdidos, apodrecendo, dilapidados, em um terreno em Cotia (SP), sem mesmo uma guarda adequada.
É o que nos diz o jornalista aposentado Paulo Santos Mattos, que dedicou toda a sua vida à paixão pela aviação e foi um dos últimos presidentes da Fundação Santos Dumont, responsável pelo museu - empossado em 2000, licenciou-se uns dois anos mais tarde, passando o cargo ao vice-presidente, major-brigadeiro José Vicente Checchia. Ambos pertencem a um grupo de veteranos que até hoje se reúne com freqüência para debater a possibilidade de recuperar o museu. Diz Mattos: "De 1959 a 2000, o museu funcionou com atividades regulares de cursos, além das exposições e da preservação de importantes relíquias do passado. Mas, como o pavilhão estava em muito mau estado, o museu foi desmontado, e a prefeitura, na gestão de Celso Pitta, cedeu-o por dois anos ao empresário Edemar Cid Ferreira, que se comprometia a restaurá-lo".
Só que, terminada a restauração, o empresário não se preocupou muito em devolvê-lo logo. E quando o fez, forçado inclusive pelas sabidas circunstâncias de falência de suas empresas, ninguém pensou em restituí-lo à fundação. Anteriormente, após a morte, em 1986, da aviadora Ada Rogato, que fora presidente da Fundação Santos Dumont, o museu havia permanecido fechado durante dez anos, possibilitando toda espécie de roubos do precioso material histórico ali depositado. Uma situação que nunca mais pôde ser sanada. Atualmente, o presidente da fundação, major-brigadeiro Checchia, tenta fazer o possível para defender com dignidade a memória da aeronáutica - para esse fim estabeleceu em 2002 um acordo com a prefeitura de Guarulhos, com o repasse de uma pequena quantia mensal, destinada à recuperação das peças que ainda estão no terreno de Cotia e à manutenção de um museu, anexo à Base Aérea de Cumbica. O que é, porém, muito pouco para as necessidades reais de um projeto mais abrangente.
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