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A volta das estatais
Após ciclo de privatizações, surgem novas empresas públicas
OSWALDO RIBAS
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O Brasil vem reduzindo a interferência do Estado na economia, privilegiando a participação da iniciativa privada e contendo a expansão do setor público, certo? Errado. Desde 2003, o que se observa é o crescimento do número de estatais no país. Segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, nos últimos três anos foram criadas cerca de 40 novas empresas públicas, enquanto, no mesmo período, apenas cinco delas foram transferidas para o setor privado.
Esse aumento de 27% no número de estatais, que saltou de 108, em dezembro de 2002, para 137, em fins de 2005, levou vários analistas a suspeitar que a economia brasileira poderia estar retomando o caminho do Estado-empresário, vigente durante todo o ciclo do regime militar. Nesse modelo, basicamente, é o governo que assume as rédeas do desenvolvimento e relega às chamadas forças do mercado, os empreendedores privados, um papel secundário. Assim, o que parecia impensável após a profunda reforma econômica desencadeada entre 1987 e 2002 pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), que reduziu o tamanho do Estado brasileiro, colocando os agentes econômicos ao sabor do mercado e liquidando aproximadamente 200 empresas e órgãos públicos, aparentemente volta a ocorrer, recolocando o governo à frente dos negócios.
Quando, por exemplo, se observa a Petrobras, a maior empresa do país, cujo projeto de privatização não chegou a se completar, ficando restrito à venda das ações que excediam o controle acionário detido pela União, percebe-se com maior clareza o avanço do Estado brasileiro sobre a economia. Desde o ano 2000, quando ocorreu a operação de venda de ações da estatal, a companhia vem expandindo seus negócios por meio de 31 novas subsidiárias públicas, nas áreas de petroquímica, gás e exploração de petróleo. Os ativos da Petrobras, que em 1997 ascendiam a R$ 36 bilhões, somam hoje mais de R$ 150 bilhões, e o grupo, reunindo ainda a BR Distribuidora e a Transpetro, congrega agora um total nada desprezível de 48 estatais.
Ainda na área energética, desta vez no setor elétrico, segmento até hoje envolto no conturbado processo da venda das estatais, o governo federal decidiu reabrir o programa de estatização criando a Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia, numa época em que a chefia era da agora ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Uma das maiores influências no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ministra fez questão de nunca esconder da opinião pública sua inclinação pelo Estado forte. A nova empresa pública chega, agora, com funções poderosas: realizar o completo levantamento estratégico do setor energético e coordenar os leilões de compra e venda de energia no mercado.
No segmento financeiro, a mão visível do governo também voltou a atuar, ampliando o sistema Banco do Brasil, com a criação da BB Administradora de Consórcios e da BB Securities, ao mesmo tempo que, numa iniciativa veiculada na mídia com ares de "revolução no varejo bancário", instituía o Banco Popular do Brasil. Principal canal de popularização da política do microcrédito, o novo banco estatal, diga-se de passagem, vem apresentando balanços bastante negativos no primeiro ano de funcionamento. Mais graves ainda são as versões segundo as quais a instituição gastou mais verbas com publicidade do que com linhas de crédito à população. De toda forma, o Banco Popular passou a ser um instrumento de política pública, cuja finalidade é incluir milhões de brasileiros até então ignorados pelas instituições privadas.
Em outra experiência, agora destinada a dar ao país um salto de qualidade no setor de biotecnologia, foi criada oficialmente em novembro de 2004 a Hemobrás, que deverá ter o monopólio do setor e obter a auto-suficiência nacional na produção de hemoderivados. João Paulo Baccara, primeiro presidente da Hemobrás, vê, no entanto, com naturalidade o fato de a empresa ser uma estatal. "Trata-se de setor estratégico, considerado em todo o mundo uma responsabilidade do Estado. E essa decisão do governo levará o país a economizar milhões de dólares anuais." Ele lembra que, em outras nações de capitalismo avançado, a produção de hemoderivados também é atribuição do Estado. A queixa do mercado consumidor, contudo, deve-se a aspectos políticos que envolvem a instalação da fábrica em Pernambuco, muito distante dos grandes centros consumidores do país (ver Problemas Brasileiros nº 370).
Convidado a explicar o que está, de fato, acontecendo, o ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, Paulo Bernardo, procura contextualizar a emergência de tantas empresas públicas. Segundo ele, o aumento do número de estatais não significa, hoje, uma expansão dos tentáculos do setor público sobre a economia brasileira. "O tempo do Estado provedor de tudo já passou", diz ele, acrescentando que, no caso da Petrobras, onde se dá o maior número de novos empreendimentos do Estado, trata-se apenas do reflexo do crescimento da própria companhia, que está conseguindo oferecer, em meio à forte crise energética global, a auto-suficiência na produção petrolífera e mantendo projetos de altíssimo custo, como o da refinaria (também a ser instalada em Pernambuco), para cumprir a meta de evitar escassez de abastecimento interno de derivados, como gasolina e diesel.
Para o eletricitário e atual secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, um dos trabalhadores atingidos pelos programas de reestruturação das empresas públicas privatizadas, que cortaram milhares de funcionários na época, um freio no poder de decisão do setor privado é muito bem-vindo. Ele não sabe dizer se está ou não em marcha um retorno da política estatizante, mas garante que é uma questão de bom senso fortalecer o Estado brasileiro: "A privatização foi um desastre, em especial no setor elétrico. Passado o período de sedimentação, é nítida a percepção de que não se pode deixar exclusivamente para o mercado o poder de decidir quando e em que áreas devem ser realizados investimentos. É óbvio que existem aquelas que são estratégicas e devem permanecer nas mãos do Estado, que, para isso, precisa fortalecer-se e tornar-se mais eficiente".
Quanto à idéia de que o PND, o programa de desestatização, veio para tirar do Estado a obrigação de realizar pesados investimentos em infra-estrutura, num momento em que o governo dava claros sinais de esgotamento financeiro, Santos acha que não passa de retórica dos neoliberais, que pensam apenas no retorno do capital. "Não nos arrependemos das manifestações de protesto realizadas nas bolsas de valores do Rio de Janeiro e de São Paulo, já que nossas previsões se confirmaram: a chegada do capital privado não ampliou o alcance dos serviços. Pelo contrário, o Estado ainda tem de repassar recursos para as empresas privadas não quebrarem e, o que é pior, o setor elétrico, que empregava 200 mil trabalhadores em 1995, hoje conta com um contingente de 98 mil. Esses números falam por si", afirma.
Patrimônio virou pó
Do lado da academia, o economista Fábio Giambiagi, em recente trabalho sobre o tema, levanta ainda mais questões polêmicas para a reflexão de todos os que defendem o processo de privatização no Brasil. Lembrando, em primeiro lugar, que ele ocorreu porque o Estado estava sem recursos para enfrentar as novas demandas sociais, o professor enfatiza que, depois de 1998, os gastos públicos federais não retrocederam, mesmo com a significativa redução do aparelho de Estado e com as demissões em massa de funcionários públicos. "O ajuste das contas públicas vem ocorrendo, desde então, com base em aumento de receitas; ou seja, o cidadão está pagando muito mais impostos e recebendo cada vez menos serviços públicos."
Os defensores da privatização argumentam, por outro lado, que os recursos obtidos com a desestatização contribuíram para evitar um crescimento ainda maior da dívida pública e do peso dos juros sobre ela. Já os críticos ponderam que a política de juros altos e outros equívocos na condução econômica, nos últimos dez anos, fizeram o patrimônio público virar pó, sem que a população pudesse usufruir um Estado mais enxuto e voltado para a prestação de serviços.
Entre 1994 e 2002, nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), gestor do PND, o governo arrecadou R$ 73,1 bilhões com a privatização. Quase a totalidade dos recursos, cerca de 96%, foi usada para amortizar a dívida pública. Mas as crises econômicas e os efeitos das políticas monetária e cambial acabaram comprometendo esse esforço. Resultado mais concreto disso é o fato de a dívida líquida do setor público, que equivalia a 30,5% do PIB em dezembro de 1995, ter saltado atualmente para 51,3% - passou de R$ 208,4 bilhões para R$ 971,7 bilhões em dez anos. Quer dizer, então, que de nada adiantou o país ter se desfeito de seu patrimônio?
Para o professor da Fundação Getúlio Vargas Istvan Kasznar, a equação se resume em saber se, afinal, o Estado pós-privatização tem ou não capacidade de atender as demandas do cidadão consumidor. Para ele, o Estado é considerado grande principalmente quando, mesmo com pesada carga fiscal imposta a empresas e cidadãos, não consegue retribuir à comunidade de forma adequada com serviços essenciais, como educação, saúde, habitação, transporte público, segurança e saneamento básico. "A hipertrofia é decorrente de processo de crescimento equivocado, moldado por interesses de grupos políticos e tecnocráticos", diz ele.
Menos crítico, o especialista em finanças públicas Renato Villela, diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acha que a tendência de fortalecimento do Estado é um falso problema. "As privatizações deram essa pausa porque, de fato, tudo o que interessava à iniciativa privada já foi vendido, como o parque siderúrgico, as empresas de telecomunicação, os bancos estaduais. A não ser o setor petrolífero e de gás, em que o Estado mantém atividade monopolista apesar da abertura do mercado, acho que não há mais nada tão atraente para o capital privado", afirma. "Creio, de fato, que o governo deveria se concentrar em dar mais garantias, com a definição de marcos regulatórios, para incentivar o ingresso de capital privado em setores de infra-estrutura, como o saneamento básico, ponto nevrálgico na avaliação das condições de vida e saúde da população brasileira, ainda relegado ao esquecimento."
Engrossando o coro dos que elogiam a privatização, Villela lembra, segundo ele sem nenhuma saudade, o tempo em que o controle do Estado era tanto que havia até a fixação de preços ao consumidor, quase sempre, aliás, descolada da realidade. Quanto às críticas de que empresa estatal é sinônimo de ineficiência e cabide de empregos, o especialista esclarece que as companhias públicas, hoje, são lucrativas em sua esmagadora maioria e contribuem para o superávit primário, componente essencial da atual política econômica.
Villela ressalta os oito grandes grupos de estatais que, por sua exuberância, escaparam praticamente ilesos de todo o processo de privatização: além da Petrobras e do Banco do Brasil, o clube privilegiado inclui a Eletrobrás, os Correios, o BNDES, a Caixa Econômica Federal (CEF), o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (Basa). O lucro somado desses grupos de empresas e bancos públicos contribuiu com mais de R$ 4 bilhões aos cofres do governo nos últimos meses, numa demonstração de competência, principalmente porque vários deles também enfrentam concorrentes do setor privado. Outro ponto favorável para esse conjunto de estatais reside no fato de, lucrativo, ele ganhar cada vez mais autonomia em relação ao sócio controlador, a União, no desenvolvimento de seus negócios, realizando uma gestão mais afinada com o próprio mercado.
As PPPs
Para mostrar que a atual investida do Estado na economia é nova e não tem paralelo na história econômica brasileira, Villela cita ainda o programa das parcerias público-privadas, as PPPs, que, numa ótica mais ampla, pode ser visto como uma evolução do antigo PND. Ou seja, antes, o governo buscava sanear empresas deficitárias para torná-las atraentes aos investidores; agora atua em parceria direta com o capital privado, possibilitando, via Banco do Brasil, uma garantia real ao investimento em setores-chave de infra-estrutura.
Com esse mecanismo de divisão de responsabilidades, os primeiros projetos a sair do papel se destinam à construção da Ferrovia Norte-Sul e a obras de um trecho de 600 quilômetros na BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA). Há também forte expectativa em relação à Ferrovia Transnordestina, que atravessará seis estados da região: Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Alagoas (Bahia e Rio Grande do Norte estão excluídos, e Sergipe deverá ter uma conexão rodoviária).
Numa demonstração de agilidade e criatividade, entra ainda em campo outra forma de desestatização: a concessão à iniciativa privada de serviços e obras em áreas tradicionalmente públicas. No setor elétrico, por exemplo, está prevista a licitação para construção de 3.068 quilômetros de sete linhas de transmissão de energia, investimento de R$ 3 bilhões, e de 17 novas hidrelétricas. Na área de transportes, oito rodovias estão engatilhadas e poderão engordar o caixa das grandes empresas construtoras nacionais. Para analistas, porém, o mecanismo das concessões abre espaço para uma nova forma de reestatização, especialmente no setor de energia. Por exemplo, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ao divulgar lista de empresas pré-qualificadas para o terceiro e o quarto leilões de energia, cita Furnas, Chesf e Eletronorte, todas ainda estatais ou com forte participação acionária do BNDES, que é um braço de política econômica do governo.
Pendências
O fato é que, decorridos 18 anos desde as primeiras privatizações, o PND, cujo auge ocorreu nos anos 90, está ainda longe de terminar, talvez menos por proatividade do governo e mais pelos imbróglios jurídicos que a venda de muitas empresas continua gerando. A Telebrás é um exemplo: remanescente da privatização do setor de telecomunicações, citado como o mais bem-sucedido dos que passaram por esse processo, ocorrido em 1998, ela sobrevive até hoje. A sua liquidação deveria ter acontecido dois anos depois, mas ela ainda está presente, com mais de 2 milhões de acionistas e papéis negociados na Bolsa de Valores de São Paulo.
A Rede Ferroviária Federal (RFFSA) é outra grande pendência. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, a dívida da empresa é de R$ 13,6 bilhões, e seus prejuízos acumulados chegam a R$ 16,7 bilhões. A operação da RFFSA foi transferida para a iniciativa privada em 1996, e a liquidação da empresa remanescente, decretada em 1999. Mas o processo voltou à estaca zero em 2005: o Ministério dos Transportes enviou, em abril, a medida provisória 246 ao Congresso, propondo o encerramento, mas a iniciativa não foi aprovada pelo Legislativo.
Essa é a mais complicada entre as 66 liquidações e extinções iniciadas a partir de 1985. Outros casos resistem no tempo: estão inacabadas a liquidação das Centrais de Abastecimento da Amazônia e a extinção do Instituto Nacional do Desenvolvimento do Desporto, da Fundação Centro Tecnológico para Informática, da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Antes de tudo, esses processos ainda ativos de liquidação de empresas estatais e de extinção de órgãos e entidades públicos, alguns caminhando para duas décadas de tramitação, apenas confirmam as dificuldades de reformar a estrutura do Estado brasileiro, o grande responsável, em última instância, pela inserção do Brasil entre as nações mais modernas do mundo, quando a referência é tecnologia da informação, mas entre as mais pobres, quando se trata de medir saúde e educação.