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Maldição à flor da pele
Pacientes de hanseníase lutam contra a doença e o preconceito
JULIANA BORGES
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Aos 58 anos de idade, a cearense Raimunda Juca Vieira é uma mulher incansável. Há pelo menos 30 ela luta pelos direitos e pela aceitação social de portadores de uma das doenças mais estigmatizadas da história da humanidade: a hanseníase. Popularmente conhecida como "lepra" (o termo foi abolido dos documentos públicos em 1995, por decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso, devido a sua carga agressiva e preconceituosa), é causada pelo bacilo de Hansen (Mycobacterium leprae) e provoca lesões na pele e nos nervos periféricos.
A força para encampar a difícil batalha, Raimunda busca em todo o sofrimento que esse mal já lhe causou. Quando tinha 25 anos, no auge da juventude, ficou sem o direito mais básico de qualquer ser humano: a liberdade. Até 1969, de acordo com uma lei federal brasileira, todas as pessoas com hanseníase eram compulsoriamente isoladas em hospitais conhecidos como "leprosários". Acreditava-se que o confinamento era a melhor maneira de controlar o avanço da doença. Com o passar dos anos, as autoridades concluíram que essa política, além de ser socialmente condenável, não era eficaz. Entretanto, mesmo depois de extinta no papel, a medida vigorou na prática até os primeiros anos da década de 1980.
Por isso, quando Raimunda descobriu que carregava o mal de Hansen, em 1973, foi enviada ao Sanatório Santo Ângelo (hoje chamado de Doutor Arnaldo), no município de Mogi das Cruzes (SP), um dos cinco hospitais-colônia existentes no estado. "Morava em Brasília e os médicos de lá não sabiam o que eu tinha. Então, vim para São Paulo atrás de tratamento. Cheguei numa quarta-feira, na quinta passei no médico, na segunda-feira seguinte já estava internada", conta. A partir daquele dia, ela foi proibida de sair e de ver a família. "Foram tempos difíceis. Mesmo depois, quando os hospitais abriram as portas, a gente não queria mais ir embora, porque o preconceito fora era muito grande", diz. Assim, a cearense, como a maioria dos outros pacientes, continuou a vida atrás dos muros do Doutor Arnaldo mesmo depois de ter alta.
Estigma cruel
Atualmente, a história de Raimunda não se repete mais no Brasil. Desde o início da década de 1990, quando o tratamento denominado poliquimioterapia foi introduzido no país, a hanseníase tornou-se curável em 100% dos casos, e o tratamento, que dura de seis meses a dois anos, é feito em casa, sem a necessidade de internação. "Além disso, assim que o paciente começa a tomar medicação, a doença deixa de ser contagiosa. E, quando é descoberta precocemente, não há nenhuma seqüela física", esclarece Norma Foss, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia. "Hoje, sabe-se também que 90% das pessoas são naturalmente resistentes ao bacilo e que nem todas as formas são transmissíveis", completa a médica sanitarista Silvia Ferreira, do programa municipal de combate à hanseníase de São Paulo.
Infelizmente, os avanços no campo da medicina não conseguiram mudar a antiga conotação - errada - que as pessoas têm da moléstia. A doença, que durante séculos foi vista com horror, ainda estigmatiza e faz sofrer os doentes. "Hoje, o maior problema não são os sintomas, mas o preconceito que ainda a cerca", afirma Artur Custódio, coordenador nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), organização não-governamental (ONG) criada na década de 1980. "Muita gente ainda não sabe que ela tem cura e não deixa seqüelas se tratada corretamente", confirma o médico sanitarista Wagner Nogueira, vice-presidente da Fundação Paulista contra a Hanseníase.
Em maio do ano passado, a paulista Nelsina Salustiana de Jesus descobriu estar infectada. "Sentia um pouco de dormência no pé esquerdo e resolvi ir ao médico", diz. Quando o diagnóstico foi feito, ficou assustada. "Eu morava no interior de São Paulo, e quando falavam de ‘lepra’, todos morriam de medo. Eu pensava que a doença era contagiosa e matava, mas agora vejo que não é nada disso", conta ela, hoje livre da moléstia e sem nenhum tipo de seqüela.
Endemia oculta
Assim como Nelsina, a cada ano quase 50 mil pessoas descobrem estar infectadas com o bacilo de Hansen. O país é um dos poucos do mundo em que a doença ainda é um problema de saúde pública. Em números absolutos de novos doentes, ficamos atrás apenas da Índia, e no índice de prevalência (1,7 caso para cada 10 mil habitantes), ocupamos o incômodo quinto lugar. "O coeficiente é alto, e a situação real é pior do que os dados oficiais revelam. Há muitos casos ainda não diagnosticados. Existe uma endemia oculta, que não aparece nas estatísticas", afirma Leontina Margarido, médica do Departamento de Dermatologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas (HC). Segundo ela, pesquisas de busca ativa feitas pelo Núcleo Multidisciplinar de Hansenologia do Hospital das Clínicas na periferia da cidade de São Paulo e em municípios do Maranhão e Pernambuco demonstraram que os dados oficiais não condizem com a realidade. "Em alguns lugares, os números são até 300 vezes maiores do que os mapas estatísticos do governo indicam", afirma.
Em 1991, a hanseníase era endêmica (ou seja, com mais de um caso para cada 10 mil pessoas) em 122 países do mundo. Durante a 44ª Assembléia Mundial de Saúde, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), essas nações comprometeram-se a eliminar a doença até o ano 2000. Encerrado o prazo, apenas Angola, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Madagascar, Moçambique, Nepal, Tanzânia, Índia e Brasil não conseguiram cumprir a meta. Foi, então, estabelecida uma prorrogação pela OMS até o final de 2005.
Embora tenha chegado bem próximo, o Brasil, novamente, não cumpriu o compromisso. Até o momento, os números referentes a 2005 ainda não foram divulgados pelo Ministério da Saúde. No entanto, as projeções indicam que houve evolução em relação a 2004. "Estamos trabalhando duro e hoje reconhecemos que precisamos atingir muito mais do que a comunidade internacional exige, pois a distribuição da doença é heterogênea no território nacional. Enquanto o sul do país tem um índice baixo de prevalência, estados como Mato Grosso e Pará estão em situação crítica", informa Rosa Castália, coordenadora do Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase (PNEH), da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. O projeto, criado em 2000, foi elevado à condição de prioridade em 2004 e, desde então, vem recebendo investimentos considerados altos para o setor. Em 2004, foram repassados R$ 7,7 milhões e, no ano passado, mais R$ 13 milhões. Além disso, o ministério destinou, ainda em 2005, outros R$ 2,5 milhões para 206 municípios considerados prioritários no combate à moléstia. "Eles estão nos estados de Pernambuco, Piauí e Bahia - que têm um elevado número absoluto de casos - e concentram 72,4% da carga da doença no país", diz Rosa Castália. Segundo um relatório do PNEH, "nessas cidades, além das altas taxas de prevalência e de detecção de novos casos, os percentuais elevados na faixa etária de menores de 15 anos demonstram a fragilidade do sistema de vigilância epidemiológica da moléstia".
Os últimos dados disponíveis, de dezembro de 2004, mostram que apenas Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo já atingiram uma prevalência menor que a exigida pela OMS. Do outro lado da tabela, em condições mais graves estão Mato Grosso (12,67 casos por 10 mil habitantes), o Tocantins (9,46) e o Pará (9,17). "Assim como outras doenças infecto-contagiosas, a hanseníase está associada à pobreza e à falta de condições sanitárias e de higiene. É por isso que os estados mais pobres têm uma incidência maior. O bacilo é transmitido pelo ar, mas o contágio só acontece quando há contato muito próximo com o doente, em lugares fechados, úmidos e pouco ventilados, ambientes comuns em moradias das camadas menos favorecidas economicamente", explica Norma Foss.
Ainda que o Brasil não consiga cumprir o compromisso estabelecido com a OMS, os avanços no combate à doença são evidentes. Em 1990, a taxa de prevalência era de 18,5 casos para cada 10 mil habitantes, mais de dez vezes maior que a de 2004. "Nos últimos anos, o fortalecimento da área de saúde preventiva, a melhora do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) e as campanhas publicitárias foram importantes para a queda dos índices de prevalência", diz o coordenador do Morhan.
Falta preparo
Na opinião de Rosa Castália, as altas taxas de prevalência no Brasil devem-se, sobretudo, à política de combate à doença adotada no país. Segundo ela, apenas alguns centros específicos, geralmente localizados nas grandes capitais, diagnosticavam e atendiam os pacientes, e isso dificultou enormemente o acesso a tratamento ou mesmo o trabalho de prevenção entre a população. "Foi uma escolha errada. Por isso, hoje nosso desafio é a descentralização, o que implica capacitar todos os médicos de saúde da família a realizar o diagnóstico", completa. Ela cita o exemplo de outras práticas que apresentam bons resultados: em todo posto de saúde, por menor e mais longínquo que seja, sempre há alguém capaz de vacinar uma criança ou medir a pressão arterial, e que poderia aprender a identificar o mal de Hansen. "Basta um bom exame clínico para verificar a ocorrência de marcas esbranquiçadas no corpo, caroços na pele e perda da sensibilidade em nervos periféricos", complementa Wagner Nogueira.
A fragilidade do sistema de vigilância epidemiológica é outro fator agravante da situação. "Quando a moléstia é detectada, todas as pessoas com quem o doente tem contato próximo devem ser examinadas, o que ainda não vem acontecendo. Só assim é possível quebrar a cadeia de transmissão", explica Waldemir Resende, diretor do Instituto Central do HC. Ele acredita que a educação é uma forte arma para o controle da hanseníase. Por isso, no ano passado, esse hospital, em parceria com as secretarias estaduais de Saúde e de Educação de São Paulo, elaborou um projeto de capacitação dos professores da rede pública, com o objetivo de prepará-los para identificar manchas atípicas na pele dos alunos e selecioná-los para uma avaliação médica. O passo seguinte é a visita de um profissional de saúde à escola e, quando se confirmar um caso, a busca por outros membros da família que também possam estar infectados. "A criança é somente a ponta do iceberg", argumenta Resende.
Para Leontina Margarido, a falta de preparo dos médicos de saúde da família, aqueles que têm de fato contato com a população, é outro fator que colabora para as altas taxas de prevalência. "Cerca de 70% dos profissionais nem sabem que existe hanseníase no Brasil. Como eles vão fazer o diagnóstico?" Segundo a hansenologista, um paciente pode passar por até dez profissionais antes de descobrir a doença, o que evidencia o completo desconhecimento. Foi isso o que aconteceu, por exemplo, com José Magalhães Lima, que conviveu quase dez anos com a moléstia sem saber. "Fui a vários hospitais, tomei muitas injeções e remédios. Falavam que eu tinha alergia. Uma médica chegou a dizer até que as manchas em minha pele eram conseqüência de excesso de banho", conta ele. Depois de ser medicado por dois anos, hoje Lima está completamente curado.
Isolamento
Nos idos tempos em que a hanseníase não tinha cura, às pessoas infectadas só restava passar a vida dentro de um hospital-colônia e conviver com a angústia diária de acompanhar a doença atacando os pés, as mãos, os testículos, o nariz, os olhos... Os hospitais-colônia eram como uma cidade: tinham prefeito, cemitério, cinema, lanchonetes, bairros, times de futebol, prisão e até uma moeda própria. Com raras exceções, os que faziam o hospital funcionar eram hansenianos. "Tudo isso para não haver nenhum contato com o mundo exterior", explica Nancy Cardoso, uma das primeiras funcionárias não-hansenianas do Doutor Arnaldo, que hoje trabalha como assistente social.
Retirados à força de sua antiga vida - em São Paulo, o Departamento de Profilaxia da Lepra percorria as ruas da cidade com um camburão à caça de doentes -, a maioria dos pacientes internados perderam seus vínculos familiares e acabaram construindo, atrás dos muros, novos laços afetivos. "Casei duas vezes aqui dentro", conta a viúva Maria Poli, de 77 anos, internada desde os 17 no Doutor Arnaldo.
"A vida era muito agitada. Havia piqueniques, jogos, cassino, cada baile bom... Tinha muita gente bonita, que nem parecia doente", relembra com saudade Laura Aparecida Peretta, de 82 anos, uma colega de Maria Poli que mora no Doutor Arnaldo desde 1938. Dos tempos de juventude, ela guarda uma porção de fotos: do seu casamento, realizado dentro do hospital, do baile de carnaval em que foi eleita a mulher mais elegante, do time de futebol em que seu marido jogava. Lali, como é conhecida, hoje depende da cadeira de rodas, mas ainda assim quase todos os dias visita sua irmã, de 85 anos, que está internada no pavilhão geriátrico. "Ela chegou aqui dez anos antes de mim, junto com minha mãe." Lali, assim como a maioria das outras pacientes, apesar de ter sido casada, nunca teve filho. "Naquela época, assim que nascia, o bebê era tirado da gente e mandado para a creche. Era muito sofrimento", conta. Poucos anos depois da internação compulsória ter sido abolida, Lali ganhou alta, estava livre. Mas ela não quis partir. "Minha vida foi feita aqui dentro. Ia fazer o que lá fora?"
Esse foi o drama que tantos outros pacientes viveram: preferiram ficar nos hospitais a recomeçar uma nova vida fora dali. Hoje, dos 101 estabelecimentos desse tipo que existiam no país, 33 ainda estão em funcionamento, a maioria em péssimas condições, à espera da morte de seus últimos pacientes para fechar as portas. Aqueles que continuam internados não têm mais a hanseníase, mas ficaram com as seqüelas físicas e muitos precisam de cuidados médicos. "O Estado tem uma dívida social com essas pessoas. Elas foram excluídas da sociedade à força, e agora o mínimo que se tem a fazer é garantir-lhes condições dignas de vida", afirma Rosa Castália.
Ao contrário de Laura, Raimunda preferiu ir embora. "Fiquei dez anos fora. Um dia me deu um estalo e voltei para o hospital. Gosto muito disto aqui." Hoje, a cearense mora numa casa dentro do Doutor Arnaldo com uma colega paciente e dois sobrinhos adolescentes, dos quais ela cuida como filhos. É integrante do Morhan, líder comunitária, ajuda os mais necessitados e atua como uma espécie de porta-voz dos pacientes dos hospitais-colônia. "Meu sonho é eliminar essa mancha da sociedade. Mas agora temos de pensar nas próximas gerações. A minha vida e a das pessoas que viveram como eu já passou."
Origem bíblica
Apontada como uma das doenças mais antigas da humanidade, desde os tempos bíblicos a "lepra" aterrorizou reis, mendigos, plebeus, imperadores e populações inteiras nos quatro cantos do mundo. Independentemente da época e da região geográfica, ela foi sempre associada ao pecado, à imundície e ao castigo dos deuses, e os doentes, submetidos às mais cruéis formas de isolamento, execração e até de extermínio. De acordo com a pesquisadora Yara Nogueira Monteiro, autora da tese de doutorado "Da Maldição Divina à Exclusão Social: um Estudo da Hanseníase em São Paulo", defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é difícil traçar com precisão a história da doença, pois "muitas vezes determinados termos que foram traduzidos como ‘lepra’ correspondiam na verdade a outras moléstias, que apresentavam sintomas semelhantes ou mesmo inteiramente diversos da hanseníase, marcados, em geral, pela exclusão social, e seu portador era visto como pecador e/ou ente ameaçador".
Na Idade Média, em vários lugares da Europa, o doente de lepra tinha de usar vestimentas especiais e símbolos visíveis de sua condição de excluído, além de carregar uma matraca, que devia fazer soar sempre que avistasse qualquer pessoa.
Segundo Yara Monteiro, um dos principais responsáveis pela criação do estigma que cerca a hanseníase é a Bíblia. "A postura estabelecida acerca da ‘lepra’ teve tal influência que acabou por extrapolar seu tempo, chegando até a época atual. Essa influência contribuiu para a ocorrência de sérios entraves à educação sanitária, com reflexos diretos na profilaxia da doença."