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Em busca da identidade nacional

Dias de perplexidade e estupor

GILBERTO KUJAWSKI

O filósofo Gilberto de Mello Kujawski esteve presente no dia 11 de agosto de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre a questão da identidade nacional.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

Quando se fala em problemas brasileiros, chega-se à conclusão de que o Brasil não tem problemas, ele é o problema. Os países emergentes são o problema. Principalmente no atual momento, seria o caso de indagar se o tema de que vamos tratar aqui - a identidade nacional - não seria acadêmico, isto é, afastado das preocupações e tensões do dia-a-dia. Penso que não, por vários motivos. A crise que o país vive não é só de governo, é também social, econômica e cultural. Atinge toda a nação. Pela desorientação, pela falta de caminhos seguros, pela incerteza que cria sobre nossa identidade, oferece a oportunidade para esta pergunta: Quem somos nós?

Os dias que atravessamos são de perplexidade e estupor. Para tentar entendê-los seria interessante retomar a leitura de O Guia dos Perplexos, livro de Moisés Maimônides, um filósofo judeu do século 12, ou invocar os grandes poetas ocidentais como, por exemplo, Dante Alighieri: "Nel mezzo del camin di nostra vita/ Mi ritrovai per una selva oscura/ Che la diritta via era smarrita". Ou seja, o caminho verdadeiro estava perdido. Também poderemos recorrer a Shakespeare, ao "to be or not to be", de Hamlet. Ou então àquele último ato de Macbeth, em que ele, desesperado, certo da derrota e da morte, visualiza uma prodigiosa imagem sobre a vida humana e diz: "A vida é um conto narrado por um louco, é uma sombra, algo sem sentido, cheio de som e de fúria". Poderíamos pedir ajuda a Goethe em Fausto, perguntando se alguém, no Brasil atual, está vendendo a alma ao diabo em busca de mais poder e dinheiro. Mas fiquemos com um poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, autor de "José", um poema clássico da literatura moderna: "E agora, José?/ A festa acabou,/ A luz apagou,/ O povo sumiu,/ A noite esfriou,/ E agora, José?/ E agora, você?(...)/ O dia não veio,/ O bonde não veio,/ O riso não veio,/ Não veio a utopia (...)/ Sozinho no escuro,/ Qual bicho-do-mato,/ Sem teogonia,/ Sem parede nua/ Para se encostar,/ Sem cavalo preto/ Que fuja a galope,/ Você marcha, José!/ José, para onde?"

O "para onde" é o descaminho, o extravio, o momento em que estamos. A crise de identidade se manifesta por instabilidade social, política e cultural, e desemprego. Já não se distingue, no mundo cultural, o que tem valor do que não tem, quando um Paulo Coelho, por exemplo, vira best-seller. Tudo isso é sinal de insegurança e de perda de identidade.

Será que somos um povo sem caráter, incapaz de organizar minimamente a nação e transformar o país emergente em desenvolvido? Por isso digo que o problema da identidade nacional não é acadêmico. Como diria Miguel de Unamuno, é um "problema agônico", que está agoniando nossa vida, nosso cotidiano, com essa névoa entre o que somos e o futuro.

Houve um caso interessante, citado até por Salomão Schwartzman, em tom de piada, de um meliante preso com cerca de 17 carteiras de identidade falsificadas. Salomão, numa entrevista que fez comigo, me pergunta: "Será que esse cidadão tinha dúvidas sobre sua identidade?" Isso pode ser apreciado por outro ângulo. Vemos, por exemplo, muitos jovens de Minas Gerais, São Paulo, etc., mudando para outros países. Querem trabalhar nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e, no fundo, não querem mais ser brasileiros. Preferem ser norte-americanos, europeus, japoneses.

Tudo isso significa que a identidade nacional está em perigo. Nós nos perdemos, não sabemos quem somos. Em meu livro A Identidade Nacional e Outros Ensaios, procurei um fio condutor para essa questão, que é escorregadia e complicada. Eu o encontrei na história. Para saber quem somos, precisamos saber o que fizemos. Elaborei então uma síntese dos tempos coloniais até hoje. Fui em busca dos momentos privilegiados em que os brasileiros descobriram a consciência nacional. Ou seja, acima das regiões, das classes, das raças, descobre-se a totalidade a que pertencemos, a consciência de que somos uma realidade única. A consciência nacional no Brasil se revela, de maneira muito viva, por ocasião da realização das copas do mundo de futebol. É o momento em que todo brasileiro é patriota, acredita no país, formando aquilo que se chama de "fervor pela pátria de chuteiras". Mas existem outras ocasiões na história em que a consciência nacional se manifesta de forma muito intensa. Relaciono cinco delas.

À diferença de outros povos, é bom observar, a consciência nacional entre nós não é uma coisa contínua, ininterrupta, como se vê, por exemplo, entre os norte-americanos ou ingleses. No Brasil ela é intermitente, se dá por surtos e depois desaparece. E passamos longos períodos sem ela, imersos numa geléia geral.

Um primeiro momento que descobri foi a Inconfidência Mineira. De acordo com Boris Fausto, historiador paulista, foi em torno do sacrifício sangrento de Tiradentes que pela primeira vez os habitantes das demais capitanias, além da de Minas Gerais, perceberam que faziam parte de uma família só, o povo brasileiro.

O segundo momento de consciência nacional intensa e mobilizadora foi a Independência, proclamada por dom Pedro I. Com ela o sonho idealista dos inconfidentes se consolidou politicamente. A partir de então, o Brasil seria livre e soberano para se organizar como nação, sob a tutela da Coroa.

O terceiro foi a proclamação da República. Ela substituiu a mística do Império pela da Ordem e Progresso - um lema positivista no qual se acreditava de pés juntos.

O quarto foi a Revolução de 1930, que criou um projeto modernizador para o Brasil: industrialização, proteção ao trabalhador, enfim, a germinação de um novo país. Apesar dos fracassos e insuficiências, ela trouxe essas sementes.

O quinto período é o de Juscelino Kubitschek (JK). Foi um surto de entusiasmo que permeou todo o Brasil, que fez com que de país chamado de "naturalmente agrícola" desse um salto para uma nação moderna e industrializada, onde havia emprego e fertilidade criadora, inclusive intelectual. Pela primeira vez, segundo Celso Lafer, tivemos efetivamente em prática um planejamento governamental: o Programa de Metas. Conta-se até que JK descobriu uma maneira esperta de fugir aos tentáculos da burocracia, que hoje estão estrangulando o governo. Criou uma burocracia paralela, controlada por ele e por seus ministros, que resolvia as coisas com rapidez e eficiência. Desse modo pôde fazer em cinco anos um governo de 50, como dizia.

Qual é o denominador comum desses cinco momentos de consciência nacional? É que todos eles apontam para o futuro. A consciência nacional tem a ver com o futuro. Não é uma consciência do presente, é do que vamos fazer amanhã, é programática e construtiva. De onde se conclui que a substância do projeto nacional é a idéia de futuro.

Os grandes filósofos do século 20, como Heidegger e Ortega y Gasset, dão para a vida humana e para a história a primazia do futuro. Dizem que a vida é presente, mas o que mais fazemos no presente é pensar no futuro. O futuro tem primazia sobre o presente. É o futuro que decide. E é muito importante que um país tenha essa consciência do futuro para seguir em frente, para não ficar estagnado.

Mas a consciência nacional é também memória. Porque, no momento em que o país se abre para o futuro, ele se vê diante de uma aventura, pois são muitos os caminhos, é grande a incerteza. E o passado é solo firme, em que podemos pisar com firmeza. Então na medida em que a consciência se projeta para o futuro, ela recupera o passado, em um movimento de retroação. Isso se vê, por exemplo, nos Lusíadas, de Camões: Vasco da Gama está avançando para a descoberta de novas terras, mas a certa altura o poeta começa a recordar a história de Portugal, desde os primeiros reis. Ele emenda a busca do futuro com a recuperação do passado, de modo que a história possa ser contínua.

Aqui chegamos a um ponto importante. A identidade nacional é projeto, é memória, mas é também utopia. Não no sentido de algo inatingível, mas inexaurível. Certa vez uma senhora perguntou a Ortega y Gasset: "O senhor é Ortega y Gasset?" Ele respondeu: "Mais ou menos, minha senhora", querendo dizer que nenhuma pessoa é inteiramente ela mesma, que estamos sempre devendo algo a nós mesmos. Sempre queremos chegar a um ponto que morremos sem atingir. Com as nações acontece o mesmo: existe um perfil geral, a nossa identidade, mas ela não se completa, porque recebe elementos de fora e perde elementos próprios. Está em transformação. O chinês de hoje não é o de cem anos atrás, assim como o inglês de hoje também não é o da época vitoriana, e o alemão atual, com seu duro pragmatismo, não é mais aquele povo de poetas e filósofos, como diziam os franceses no século 19. Não obstante, o chinês continua a ser chinês, o inglês a ser inglês e o alemão a ser alemão - só que sujeitos a transformações. Se um povo não admite esse auto-aperfeiçoamento e acredita que chegou à perfeição de sua identidade, então temos uma situação muito perigosa, como aconteceu na Alemanha nazista, com seu ideal de pureza racial e cultural.

A identidade, portanto, tem de ser aberta. No momento em que se fecha é um perigo. Vejam as facções mais fanáticas do islamismo, por exemplo. Elas assumem uma identidade fechada, rejeitam novos valores, contatos com o Ocidente, etc. Estão prontas e acabadas. Chegaram lá. Numa identidade nunca se chega lá, estamos sempre em transformação. A identidade é uma coisa inexaurível, em processo, que não se completa jamais. Porque a medida do humano nunca é exata, é a medida do mais ou menos.

Quanto à identificação do Brasil como o país do futebol e do carnaval, não podemos nos opor a esse esporte e à nossa maior festa popular. São coisas magníficas, geniais, de grande inventividade, que exprimem muito a maneira de ser nacional. Só que, por mais respeitáveis que sejam, o futebol e o carnaval representam apenas uma parte da brasilidade que é a corporalidade. Mas o país é muito mais. Na verdade, são duas formas deficientes de caracterizar a identidade brasileira.

Além do corpo, o Brasil tem alma e espírito (faço uma distinção entre alma e espírito). Aqui um parêntesis para lembrar Octavio Paz. Em O Labirinto da Solidão, ele faz uma leitura nada convencional do México e dos mexicanos, vai da geografia para o mito e do mito para a história. Esquece os dados consabidos, as pretensões científicas, as estatísticas e investe na intuição, na visão simbólica. A geografia pode encerrar, aos olhos de Octavio Paz, o arquétipo da vida histórica e cultural de um povo. Ele diz: "Cada história é uma geografia e cada geografia uma geometria de símbolos. A Índia é um cone invertido, uma árvore cujas raízes penetram no céu; a China é um disco imenso, ventre, umbigo e sexo do Cosmos. O México se ergue entre dois mares como uma enorme pirâmide truncada. A geografia do México tende à forma piramidal, arquétipo arcaico do mundo, metáfora geométrica do Cosmos. A pirâmide mesoamericana culmina no espaço magnético, a plataforma-santuário".

Essa é a visão própria de um poeta, de um descendente dos visionários astecas, do sangue índio de que era portador. Se a Índia é um cone invertido, a China uma esfera, o México uma pirâmide, é o caso de perguntar: e o Brasil, o que é dentro dessa linguagem? O Brasil, dizia e repetia Heitor Villa-Lobos, tem a forma de um coração. Daí pode-se inferir muita coisa. O que é o coração? É a delicadeza, a sentimentalidade do brasileiro. Por sinal, uma pessoa insuspeita que esteve aqui na década de 30, o grande filósofo teuto conde Hermann von Keyserling, era especialista na alma dos povos. Ao ser perguntado sobre o traço distintivo do brasileiro, respondeu: "A delicadeza". Precisamos entender o que é isso. Ela transparece no povo, na fala. Comparada com a portuguesa, que é dura, granítica, angulosa, a brasileira é feminina, quase sem ossos.

O coração exprime também a intimidade, um dado cultural muito precioso. Está na arte e na música popular, como também na erudita. Está na literatura, com Machado de Assis, por exemplo, que é um escritor de intimidades. Basta lembrar o prodigioso conto "A Missa do Galo", uma história de troca de intimidades, silêncio, coisas não explícitas, reticências, entrelinhas.

Mas nosso coração simboliza também outra coisa: o espírito brasileiro. Espírito da potência construtiva do Estado, da moral, do direito. Exprime-se, nesse sentido, por uma constante que se vê na história, que é a procura por um centro. Não um centro ideológico entre direita e esquerda, mas um centro da nação, da sociedade, de nosso próprio ser. Durante a Colônia, esse centro estava fixado na Igreja, que penetrava todos os interstícios da alma brasileira. Estava na ordem pública e privada, ia até a intimidade das pessoas, por meio da confissão, de uma série de preceitos religiosos, e representava o centro de nossa nacionalidade.

Existe um estudo de João Adolfo Hansen, professor da Universidade de São Paulo (USP), segundo o qual, na visão do padre Antônio Vieira, a metrópole portuguesa e suas colônias formavam o corpo místico do império. A sombra da Igreja dominava a vida pública e invadia a vida privada e a consciência íntima dos brasileiros. Não era a sombra do Estado português, mas da Igreja.

Após a independência, a vida passou a girar e a se organizar em torno da Coroa. O Brasil freqüentemente é identificado como uma república de bananas, assemelhado a muitos países da América Latina e Central. Não somos isso. O padre Nicolás Derisi, filósofo argentino, quando esteve no Brasil, conversando sobre a América Latina, disse uma frase importante, que precisa ser bem interpretada: "O Brasil foi um império". O que quer dizer isso, dito por um argentino? Não significa que tenhamos veleidades imperialistas, não é isso. Ele quis marcar um contraste entre o Brasil e os países vizinhos, ou seja, que o Brasil no século 19 já tinha forma e figura de um Estado, enquanto os vizinhos se digladiavam e se fragmentavam nas mãos de caudilhos.

Naquele tempo já tínhamos uma Constituição estável, um Senado vitalício, uma Câmara de Deputados, códigos nacionais como o Criminal e o de Comércio. E havia uma elite dirigente muito bem treinada, principalmente em Coimbra. Já tinha certa estrutura que atribuo à busca do centro de que estou falando, até obsessivamente. Figuras exponenciais como o barão do Rio Branco, entre outros, não seriam produzidas por uma república de bananas, nem Joaquim Nabuco, nem Mauá, nem o duque de Caxias. Eles emanam de uma ordem nacional já em vias de constituição. Impossível, por exemplo, aparecer um barão do Rio Branco na Nicarágua, um duque de Caxias no Paraguai.

CHACEL - Simón Bolívar sempre pediu isso.

KUJAWSKI - Bolívar tinha por modelo Napoleão Bonaparte. Então a idéia do centro, para fixar bem o que quero dizer e não banalizar minha posição, pode ser comparada à figura do mandala, aquele conjunto de círculos concêntricos da cultura indiana que simboliza a integração do universo e do homem. Penso que o Brasil, na desordem que sempre tivemos, agora mais do que nunca, no fundo, busca uma integração, um centro, uma organização. É algo que está no subconsciente e se reflete, por exemplo, nos símbolos nacionais. A bandeira brasileira é composta de um losango amarelo em um campo verde, e no centro uma esfera. Centro, esfera, Brasília. Por que coincidência estranha Brasília foi construída exatamente no meio geográfico do território nacional? Será que não é a procura de uma outra ordem a partir do centro, quando Juscelino construiu Brasília? Não são coisas conscientes, mas que estão no inconsciente do país, das pessoas, que funcionam e que, de alguma maneira, estão nos falando.

É por isso que tenho confiança de que, neste momento difícil que estamos atravessando, vamos encontrar um caminho. A obsessão pelo centro se manifesta, por exemplo, no governo atual pela política macroeconômica herdada da gestão anterior. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva parecia um homem disposto a renovar tudo, virar o país de pernas para o ar, construir uma nova nação, reinventar o Brasil. Mas as circunstâncias o levaram à continuação da política que veio do governo anterior e que, por mais críticas que possa obter, parece ser o ponto forte do governo dele. Aí se manifesta também o que chamei de paixão pelo centro. Tenho esperança de que essa busca reconduza o Brasil a uma estabilidade futura, se não a longo, pelo menos a médio prazo, depois da tempestade.

 

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