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Palavra de mestre
Revelações de Aziz Ab’Sáber, o maior geógrafo brasileiro
CECÍLIA PRADA
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O professor doutor Aziz Nacib Ab’Sáber - um dos mais conceituados geógrafos e ambientalistas do país, reconhecido no Brasil e no exterior - acaba de juntar mais um troféu ao rol das suas muitas premiações: seu livro São Paulo - Ensaios Entreveros recebeu, em setembro de 2005, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Ciências Humanas. Este é o seu segundo Jabuti, pois já fora agraciado em 1997, pelo livro Amazônia: do Discurso à Práxis. Com mais de 300 trabalhos, teses e projetos publicados, que lhe proporcionaram inclusive condecorações da presidência da República e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Ab’Sáber tem-se destacado pelos seus estudos aprofundados sobre várias regiões do país, como a Amazônia, o nordeste, o Brasil central, o sul e o sudeste. E também pela sua original Teoria dos Redutos, que tem servido de base para numerosos desenvolvimentos em outros campos das ciências.
Nascido em 24 de outubro de 1924 em São Luís do Paraitinga (SP), aos 17 anos ingressou no curso de história e geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde fez toda a sua formação acadêmica, até o doutorado, dedicando-se desde então principalmente ao ensino. Como intelectual, Ab’Sáber esteve sempre envolvido, ao longo de sua carreira de mais de meio século, nos debates mais importantes da ciência brasileira. Foi diretor do Instituto de Geografia de 1969 a 1982 e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, de 1993 a 1995. Aos 81 anos continua em plena atividade, na qualidade de professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP, pesquisando e escrevendo.
Problemas Brasileiros - Como era a cidade de São Paulo quando o senhor chegou aqui?
Ab’Sáber - Cheguei à capital, que se tornaria minha cidade de vivência permanente, em dezembro de 1939. Eu tinha 15 anos e vinha para me preparar para o vestibular da USP. Minhas viagens haviam se limitado, até então, ao conhecimento de algumas localidades do vale do Paraíba. São Paulo ainda não era uma metrópole, mas já tinha o poder de reduzir o recém-chegado às proporções de um joão-ninguém. Estava em plena expansão industrial e era pontilhada por subúrbios bucólicos, com alguns tentáculos em preparação para serem urbanizados. E hoje é uma metrópole com mais de 17 milhões de habitantes, já em processo de marcante desindustrialização, e simultaneamente dotada de um excepcional desenvolvimento de mercado... Os estudantes que vinham do interior passavam todas as tardes dos fins de semana e os feriados envolvidos na grande aventura de conhecer a metrópole - de bonde. Andava-se muito a pé, também. Quantas vezes Florestan Fernandes e eu fizemos passeios pelo centro, para depois pegarmos o bonde que nos levava para a zona leste, ele para uma pensão no Belém, eu para uma modesta casinha onde morava minha família, no Tatuapé... No centro havia um emaranhado de ruas, praças e pracinhas, becos e pátios coloniais e uma multidão em trânsito permanente, uma gentarada que eu achava parecida com a que acompanhava procissões, na minha terra.
PB - Como se deu sua inserção no meio intelectual paulistano?
Ab’Sáber - No começo, é claro, foi tudo muito difícil. Eu já tinha uma enorme curiosidade de conhecer a fundo a história social e urbana da cidade, porém era insignificante e jovem demais para tentar me aproximar das personalidades que admirava. Mas era comum a gente cruzar, no centro, com vultos como Oswald de Andrade, muito sisudo naquele tempo e arredio a qualquer tipo de aproximação cultural com jovens. Depois que entrei na faculdade, tornei-me um tipo de boêmio tímido e solitário - levei anos para arranjar até mesmo uma namorada. De dia estudava história e geografia. E aproveitava a noite para pesquisar a geografia humana da vida diária, ao meu redor. Uma noite, esperando um bonde, passou por mim, vestida com um longo capotão escuro, uma figura que costumava flanar no Viaduto do Chá e na região da Sé - o grande poeta Mário de Andrade. Aos poucos fui me entrosando com pessoas que encontrava nas ruas, nas bibliotecas, nos auditórios e na faculdade. A Biblioteca Municipal foi um importante ponto de encontro de intelectuais e estudantes, nos anos 40 e 50. Tornei-me um "rato" de biblioteca, porque não tinha dinheiro para comprar os livros necessários.
PB - Como se processou a sua formação profissional?
Ab’Sáber - Além dos cursos da USP, minhas viagens pelo Brasil na década de 50 me fizeram ter contato com personalidades que enriqueceram minha formação cultural. E suplementaram as inúmeras leituras que fiz, de maneira sistemática. Nunca pude fazer um estágio de doutorado ou pós-doutorado em importantes centros da Europa ou em outros lugares. Mas mesmo sem sair do país tive a oportunidade de conhecer os principais geógrafos europeus da época, vindos para cursos e congressos. Mais do que a qualquer outro, porém, devo o que sou ao meu mestre Pierre Monbeig, admirado e venerado pela grande maioria dos seus alunos, que permaneceu no Brasil durante 11 anos, de 1935 a 1946. Nós, os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, éramos naquele tempo predominantemente oriundos da classe média baixa, sofrida e pobre. Ter contato com os grandes professores estrangeiros representava uma abertura para o mundo, para o saber. Tínhamos orgulho e satisfação em alterar o nosso cotidiano miserável com a alegria de assistir às suas aulas. E nos esforçávamos para superar a dificuldade inicial de ter de assisti-las em francês. Esse era apenas um desafio a mais, uma oportunidade de treinamento direto em uma segunda língua. Monbeig foi um professor diferenciado, que marcou o destino cultural de toda uma geração. O mesmo vigor que exibia nas aulas e debates com os alunos fazia-se patente também nos trabalhos de campo, quando se mostrava incansável em subir e descer morros para obter um ponto de observação adequado, ou quando entrevistava algum homem do lugar, para entender a vida agrária regional. Era ao mesmo tempo atento e cáustico, exigente com os alunos. Ficava indignado quando percebia que alguns não liam os jornais. Desprezava a cultura exclusivamente livresca e levava em consideração, na nota final, o fato de os universitários estarem ou não em dia com os acontecimentos políticos, sociais e econômicos do país. Monbeig introduziu no Brasil os conceitos de sítio urbano, posição geográfica e estrutura espacial das funções urbanas. E tentou com extraordinária clarividência acrescentar à metodologia sociológica e urbanística o ponto de vista geográfico.
PB - Quais os colegas e amigos de sua geração que mais o influenciaram?
Ab’Sáber - Meus primeiros companheiros de interdisciplinaridade foram Paulo Emílio Vanzolini e William Saad Hosne. Mantive com eles, vida afora, além de uma amizade duradoura, um diálogo científico permanente e altamente produtivo. Vanzolini desenvolveu, em relação à fauna, a sua Teoria dos Refúgios, estendendo assim o meu principal trabalho, a Teoria dos Redutos, que dizia respeito às florestas. Alguns conferencistas causaram impacto sobre mim - Roberto Simonsen, Roger Bastide, Fernand Braudel. Uma palestra que marcou minha formação cultural foi a que Antonio Candido proferiu na Universidade Federal de São Carlos. Foram essenciais para mim os contatos que mantive também com Plinio Ayrosa, Eurípides Simões de Paula, Odilon Nogueira de Matos, Eduardo de Oliveira França, Emilio Willems e, sobretudo, Florestan Fernandes. Acho que Florestan foi o mais rebelde, esclarecido e coerente cientista e intelectual paulista de sua geração. Éramos companheiros de bancos escolares e de sintonia cultural, eu como aluno de história e geografia, ele de ciências sociais. Mas Florestan, então com 22 anos, estava a léguas de distância intelectual em relação a nós todos. Coisa mais que extraordinária para um jovem que somente aos 17 anos, ainda trabalhando como garçom em um bar da Líbero Badaró, foi estimulado por alguns fregueses habituais, do meio intelectual, a fazer um curso de madureza - o que seria o supletivo de hoje. Porque nunca, antes, pudera ter estudos regulares.
PB - Há mais de 50 anos o senhor vem se dedicando ao estudo da geomorfologia paulistana e analisando o desenvolvimento da "civilização paulista". Qual foi o propósito que o norteou, ao organizar o livro "São Paulo - Ensaios Entreveros"?
Ab’Sáber - Esse livro é uma espécie de homenagem que presto ao estado em que nasci e à cidade que se tornou a minha. Reuni os artigos que publiquei sobre esse assunto, desde 1956 até hoje, e ilustrei-os com uma seleção de fotos feitas por mim, de um total de 980, produzidas nos anos de 2002 e 2003. Estou também preparando a reedição de minha tese Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo. É um tema muito interessante, porque o sítio urbano de São Paulo constitui uma magnífica exceção no conjunto dos minguados espaços das regiões serranas do sudeste do Brasil capazes de asilar verdadeiros organismos metropolitanos. Temos aqui uma bacia sedimentar de compartimento de planalto, com um sistema de colinas que é dotado de detalhes topográficos importantes - uma expressiva vocação para a urbanização, poderíamos dizer. Um outro fator significativo é o fato de a região ser um dos mais importantes entroncamentos de rotas terrestres do Brasil oriental. Ela tem-se comportado como uma espécie de patamar-entroncamento entre o litoral e os planaltos interiores do Brasil centro-ocidental. No estado de São Paulo inverte-se o panorama habitual da vida econômica tradicional das zonas litorâneas e sublitorâneas do país. Aqui, à medida que se entra nos chapadões ocidentais do território multiplicam-se as regiões agrícolas, crescendo em muito a densidade das populações rurais e mesmo dos sítios urbanos. Só que temos de nos lembrar de uma coisa - a notável civilização agrária desenvolvida na hinterlândia paulista foi assentada sobre regiões de predomínio franco de solos florestais. O grande dilema foi sempre o de conquistar espaços às florestas e cerradões, para encontrar campos de cultivo e áreas de pastagens. Tivemos fatores importantes para o desenvolvimento da civilização paulista: os solos naturalmente férteis nos planaltos interiores, um grande potencial energético, gradualmente aproveitado no incremento da industrialização, e a contribuição da abundante mão-de-obra rural, urbana e industrial, enriquecida pelas várias correntes migratórias. Mas, nos últimos 30 anos, São Paulo teve de enfrentar vários paradoxos - saturou-se o mercado de trabalho, quebrou-se a sintonia entre crescimento econômico e capacidade de pleno emprego, com um subseqüente aumento dos bolsões de pobreza. No plano físico, sofremos várias "revanches" da natureza - problemas ambientais criados pela já mencionada supressão florestal, poluição hídrica e do ar, esta agravada pelo desmesurado gigantismo da frota de veículos automotores e pelos baixos níveis de áreas verdes. Donde as catástrofes ecológicas, a acentuação da mortalidade infantil, a forte deterioração da qualidade de vida das populações carentes. O bom seria que pudéssemos recomeçar tudo de novo, em novas bases.
PB - Como vê a cultura canavieira de hoje?
Ab’Sáber - Para substituir os antigos espaços da cafeicultura por canaviais, em enormes áreas dos planaltos interiores, foi feita uma ocupação sem os devidos critérios. Eliminaram-se matas de fazendas, removeu-se a vegetação da beira dos córregos, atingindo inclusive cabeceiras e canais de escoamento dos ramos menores da drenagem. Enormes áreas de solos arenosos foram incorporadas aos espaços do Proálcool, à custa de agrotóxicos. E estes ainda continuam a ser aplicados, acima do nível das necessidades reais, mesmo depois da eliminação de 98% das coberturas primárias de vegetação. A antiga estrutura de trabalho e moradia dos trabalhadores rurais foi desintegrada. Instaurou-se o regime dos bóias-frias, complicando o panorama social, nos últimos 30 anos. Com uma administração pública completamente centrada no mercado e no neoliberalismo, as aspirações dos ambientalistas entram em conflito aberto com as expectativas de lucratividade plena dos especuladores. Já houve queima demasiada dos recursos naturais básicos para que se possa permitir a continuação de processos que inviabilizam a vida na superfície do planeta Terra.
PB - Como vê os problemas ecológicos específicos da metrópole paulistana?
Ab’Sáber - Levando em consideração, antes de mais nada, que são próprios de uma metrópole na conjuntura do subdesenvolvimento. Se todas as metrópoles modernas sofrem com a poluição, causada pela liberação de gases, industriais ou produzidos pelos veículos, e se todos os problemas naturais de abastecimento, reservas hídricas, habitação, podem se tornar críticos nelas, em São Paulo as dificuldades resultantes do subdesenvolvimento são especialmente graves e prementes. Todos nós - arquitetos, urbanistas, geógrafos, sociólogos, antropólogos culturais, políticos, administradores - somos responsáveis por propostas de soluções que possam minimizar as circunstâncias da trágica conjuntura ambiental em que vivemos. E na qual o fator humano - a superpopulação - é primordial. A nossa é uma tarefa imensa, que se comporta como uma resposta a uma provocação. Será preciso recriar, à custa de muitas experiências, um novo quadro de potencialidades urbanas sociais e culturais, levando em conta fatores como a produção de uma vigorosa classe média em algumas periferias de São Paulo. É necessário criar espaços para que ela possa se desenvolver. Abrir praças. Reurbanizar. Fazer avenidas-parques, em vez de avenidas tamponantes de fundos de vale. Proporcionar a esse importante segmento populacional espaços para esporte e lazer, além de escolas e mercados de trabalho bem distribuídos. E até mesmo pensar em realocações de alguns quarteirões de bairros pobres, já que o transporte urbano é tão deficiente. Sem falar nas favelas - estas simbolizam a dificuldade do encontro de nichos sociais receptivos e de dimensões elásticas, no interior do corpo urbano mais desenvolvido e consolidado. Representam a luta pelo espaço vital, por meio de uma "invasão" a qualquer custo, em todos os lugares em que sobrou uma área abordável. Enquanto não for possível eliminar as causas mais gerais dessa grande anomalia, será preciso estudar o mecanismo do seu desenvolvimento, prevenindo a sua multiplicação e evitando a especulação de terceiros. E certamente absorver o custo social, por meio de um planejamento alternativo tão perspicaz, silencioso e abrangente como a própria estratégia dos que fizeram as "invasões".
PB - E em relação às enchentes periódicas?
Ab’Sáber - São Paulo é um organismo urbano-industrial que tem a ver com dois rios, Tietê e Pinheiros, e não com um só, como é habitual em outras metrópoles, como Paris, Londres, Boston. A metrópole paulistana fica encravada entre rios de porte médio e vastas planícies. O número de pontes é pequeno, quase ridículo. Os poucos túneis privilegiam as camadas de alta renda. Seria mais interessante se os gastos com eles tivessem sido empregados na extensão da rede do metrô, para benefício da população em geral. Já tivemos algumas melhoras em relação aos bloqueios de circulação, nas grandes chuvas. Um dos pontos mais dramáticos era o da lateral de passagem da Ponte das Bandeiras, mas houve, no governo de Luiza Erundina, uma solução barata e eficiente, com desvios paralelos de vias auxiliares e, posteriormente, um sutil sistema de bombeamento de águas empoçadas. Esse exemplo deveria ser seguido em outros lugares. O que é imprescindível é uma ação bem coordenada entre prefeitura e estado, com debates que envolvam especialistas de todos os setores, tanto para a solução de problemas urgentes como para aqueles de longo prazo. Devemos partir de soluções reais para questões menores, como a do lixo urbano, com campanhas para evitar que nas favelas e bairros carentes os córregos se transformem em lixeiras a céu aberto, para que nos seja possível depois utilizar todos os recursos técnicos, os equipamentos e o pessoal no combate aos sérios problemas das enchentes, da poluição em geral e da qualidade de vida da população.